Acordam em secções reunidas no Supremo Tribunal de Justiça:
No juízo de direito de Coruche, Custódio Matias Fernandes, também conhecido por Custódio Fernandes Malha, instaurou acção de investigação com fundamento de que, sendo filho ilegítimo de Ana Maria, o é também de Manuel Francisco Olheiros, acção dirigida contra Joaquina Augusta e Jerónimo Francisco, viúva e filho do investigando.
Para prova da filiação materna juntou ao requerimento inicial uma certidão donde consta o assento lavrado no dia 8 de Abril de 1905 pelo pároco da freguesia de Lamarosa, Coruche, em que declara ter nesse dia baptizado um indivíduo a quem deu o nome de Custódio, filho de pai incógnito e da paroquiana Ana Maria, neto materno de Custódio Fernandes e de Gertrudes Maria.
Consta ainda do assento que os padrinhos são conhecidos do declarante.
Juntou ainda o requerente a certidão de óbito de Ana Maria, ocorrido em 1957, sendo ali indicadas como seus pais as pessoas que no aludido assento de baptismo figuram como avós do investigante.
Também, antes da audiência preparatória, foi certificada a escritura de doação feita pela Ana Maria em 4 de Novembro de 1943, em que declara doar a seu filho Custódio Matias Fernandes e nora um prédio ...
Na contestação aduziram os réus defesa directa, incluindo, além do que ora não interessa focar, a inviabilidade da acção, por entenderem que o investigante não fora perfilhado pela mulher de quem se diz filho, não se achando esta presente quando o pároco de Lamarosa lavrou o assento. Nem por qualquer meio confessou a pretendida filiação.
Em defesa indirecta alegaram a ilegitimidade da ré, por não ser herdeira do marido.
No saneador, proferido após réplica e tréplica, o Mmo. Juiz julgou a acção viável e parte ilegítima a ré.
Agravaram os réus, recurso limitado à parte do despacho que repeliu a pretendida inviabilidade da acção. Sem êxito, porém.
Do aresto confirmatório agravaram de novo, insistindo em que à data do referido assento paroquial vigoravam os artigos 123.º e 2467.º do Código Civil, cuja estatuição lhe retira valor probatório.
Mas o acórdão de fl. 112 negou provimento ao agravo in B. 96-332.
Daí o recurso para o tribunal pleno, com fundamento de que o aresto recorrido está em oposição com os proferidos por este Tribunal em 20 de Julho de 1880, de 8 de Julho de 1887 e de 7 de Dezembro de 1888, respectivamente publicados na Revista de Legislação, ano 20.º, fl. 272, no Boletim dos Tribunais, ano 2.º, p. 623, e ano 4.º, p.
228.
O ilustre conselheiro a quem inicialmente coube preparar o processo - no entendimento de que segundo o disposto nos artigos 763.º e 764.º do Código de Processo de 1939 não é admissível a invocação de mais de um acórdão por cada problema em aberto - ordenou que os recorrentes escolhessem o que devia fundar o recurso.
Seleccionado o de 20 de Julho de 1880, foi então o recurso admitido.
Procuraram seguidamente os recorrentes Jerónimo Francisco e mulher demonstrar que se verifica a aludida oposição, por isso que, e resumindo:
O aresto recorrido estabeleceu que até à vigência do Código do Registo Civil de 1911 eram aplicáveis ao registo de nascimento dos católicos as disposições do Decreto de 2 de Abril de 1862, provando-se a filiação materna com a simples referência ao nome da mãe.
O Acórdão de 20 de Julho de 1880 entendeu que o assento de baptismo dos filhos naturais não é suficiente para provar o reconhecimento ou perfilhação deles, a qual, para ser legal, é preciso que se faça pela maneira estabelecida no artigo 123.º do Código Civil.
Não alegaram os recorridos.
Pelo acórdão de fl. 144 foi mandado seguir o recurso, sobre cujo objecto alegou o recorrente a fl. 150, nos termos do artigo 767.º do Código de Processo, argumentando que da certidão do assento paroquial, junta a fl. 15, não consta:
A) Que a Ana Maria, que o autor diz ser sua mãe, tenha assistido ao baptizado;
B) Nem que ela tenha declarado a quem lavrou o assento que era seu filho o investigante.
Por outro lado, a certidão omite a pessoa que fez a declaração de tal maternidade.
Daí que este registo não vale como documento autêntico de perfilhação.
E abonando-se com a didáctica do prestigioso civilista Doutor Guilherme Moreira, in vol. I das Instituições do Direito Civil, afirma que a disposição do citado artigo 123.º é igualmente aplicável ao registo civil - paroquial e não paroquial.
Portanto, que a declaração do nome da mãe feita pelo pároco nunca pode considerar-se uma perfilhação feita por ela, como escreveu esse notabilíssimo mestre.
Acentua que esta opinião é também partilhada pelo Doutor Cunha Gonçalves no veemente comentário, a fl. 109, do Tratado do Direito Civil, vol. XIV.
Sustenta, por último, que deve tirar-se assento estabecendo que a partir da publicação do Código Civil entraram logo em vigor as disposições dos artigos 123.º e 2467.º O recorrido, na contra-alegação, a fl. ..., significando que são inteiramente diversas as situações de facto donde emanaram as decisões apontadas como contrastantes, entende que não existe a oposição exigida pelo artigo 763.º Assim, que, de harmonia com o preceituado no § único do artigo 767.º do Código de Processo, não deve conhecer-se do recurso.
Acautelando, porém, a hipótese da inaceitação desta maneira de ver, afirma que a sentença proferida na acção de investigação reconheceu já o recorrido como filho do Manuel Olheiros e, portanto, como irmão ilegítimo do recorrente.
Apoiado em seguida na jurisprudência que cita, sustenta que deve negar-se provimento ao recurso.
O Exmo. Representante do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal de Justiça, no muito douto parecer de fl. 182, suscitou também a questão prévia da inexistência do conflito entre os dois acórdãos, salientando:
O recorrido decidiu que até à publicação do Código do Registo Civil vigorava para os católicos o Decreto de 2 de Abril de 1862, à face do qual apreciou o valor de um registo de nascimento lavrado em 1905. Julgou válido esse assento, por conter todos os requisitos exigidos por esse decreto, como documento de perfilhação. E, como emanação lógica deste julgado, dispensou o apreço do reconhecimento como filho realizado pela escritura de doação de 1943, a que nos reportamos.
No Acórdão de 1880 decidiu-se (conforme o sumário indicado no douto parecer) que a insuficiência do registo de nascimento, derivada de não constar do registo a perfilhação dos pais, nos termos do artigo 123.º, não podia prevalecer sobre a escritura em que a mãe declarou que não tinha descendentes sucessíveis.
São, portanto, diversos os aspectos de facto e de direito apreciados nos aludidos acórdãos, faltando assim um dos pressupostos do recurso para o tribunal pleno.
Na perspectiva de improceder a questão prévia, analisou então o problema de fundo, produzindo um parecer notável, denso de método e de riqueza de informação, propondo se confirme o acórdão recorrido, lavrando-se assento de acordo com a doutrina ali estabelecida.
Tudo visto:
Pelo que concerne à questão prévia:
Decidiu o acórdão recorrido que no período compreendido desde a entrada em vigor do Código Civil até ao começo de execução do Código de Registo Civil de 1911 não podia aplicar-se aos assentos de nascimento dos católicos o disposto nos artigos 123.º e 2467.º do Código Civil para prova da filiação ilegítima materna, exigentes da declaração de maternidade feita pela mãe. Considerou, pois, que nesse período os referidos registos se regulavam pelo Decreto de 2 de Abril de 1862.
Pelo aresto invocado em oposição foi dado provimento ao recurso, entendendo-se que o assento do nascimento e baptismo dos filhos naturais não é suficiente para provar o reconhecimento da perfilhação deles, que, para ser legal, é preciso que se faça pela maneira estabelecida no artigo 123.º do Código Civil.
Temos como certo que não releva o facto de os acórdãos referidos terem incidido sobre casos concretos diferentes.
Na lição do Prof. José Reis - in Código Anotado, vol. VI - o que importa à fundamentação do acórdão para o pleno é que os arestos postos em confronto tenham resolvido em sentido contrário a mesma questão jurídica fundamental.
No caso vertido, sintetiza-se tal questão desta maneira: saber se no período anterior à publicação do Código do Registo Civil de 1911 têm aplicação ao registo de nascimento dos católicos as disposições dos artigos 123.º e 2467.º do Código Civil.
O simples enunciado das resoluções contidas nos indicados arestos mostra que solucionaram opostamente a mesma questão de direito.
Verifica-se, portanto, a oposição de doutrina entre eles, existindo assim um conflito de jurisprudência que cumpre resolver.
Sendo este o problema em apreço e uma vez que, pelo artigo 7.º do Código do Registo Civil de 1911 (que secularizou os respectivos serviços), todos os factos relativos ao estado das pessoas ocorridos antes da sua promulgação podem provar-se pelos mesmos documentos que eram admitidos para sua prova, importa conseguintemente determinar o regime legal que, quanto a essa matéria, vigorou até ao referido diploma.
Ora, constitui noção adquirida que o registo civil foi criação da Igreja, que, com o uso e costume de registar os baptismos, os casamentos e óbitos, o estabeleceu desde os primeiros séculos do cristianismo.
Mas porque, à falta de regras legais, se notaram muitas deficiências, o Concílio Tridentino providenciou, dando instruções a esse respeito e impondo a todas as paróquias a obrigação do registo dos nascimentos, casamentos e óbitos.
Volvidos alguns séculos, o Estado, como acentua o lapidar relatório do Decreto-Lei 41907, reconheceu a vantagem de tornar extensiva a todos os indivíduos a prática posta em vigor pela Igreja relativamente aos católicos.
Tornou, portanto, obrigatório o registo para todos os cidadãos pelo Decreto 23 de 16 de Maio de 1832.
A esse diploma outros sucederam acerca da mesma matéria; no entanto, as respectivas disposições não se executaram e o reconhecimento destes insucessos levou o legislador a publicar o Decreto de 19 de Agosto de 1859, que manteve o registo paroquial para os católicos, registo depois regulamentado, com vista ao seu aperfeiçoamento, pelo Decreto de 2 de Abril de 1862.
Esse diploma, que consideramos fundamental para resolver a questão posta, determinou no artigo 4.º que compreenderia o registo dos baptismos, casamentos e óbitos, o reconhecimento e a legitimação dos filhos.
Preceitou também que, sendo o baptizando filho ilegítimo, não se declarará o nome do pai, salvo se este expressamente consentir, devendo neste caso assinar o assento ou juntar título autêntico de consentimento.
O Decreto de 28 de Novembro de 1878 regulamentou as disposições sobre o registo não paroquial, estabelecendo que o registo civil dos súbditos portugueses não católicos era confiado aos administradores de concelho.
Entretanto o Código Civil, no artigo 123.º, determinara que a perfilhação pode ser feita por ambos os pais, de comum acordo, ou por qualquer deles separadamente, contanto que seja no registo de nascimento ou em escritura, testamento ou auto público.
E como norma reguladora desse artigo prescrevia o artigo 2467.º do mesmo diploma:
não será admitida no registo declaração de paternidade, maternidade ou avoenga de filhos ilegítimos, salvo quando o pai ou a mãe pessoalmente, ou por bastante procurador, fizer essa declaração e a assinar.
Alguns juristas de alto mérito a que fizemos referência consideraram aplicável ao registo paroquial e não paroquial o disposto nesses artigos, onde nenhuma diferença se estabelece entre os dois progenitores.
Não é essa, porém, a orientação dominante na doutrina e na jurisprudência. Mostra-o o exaustivo recenseio constante do douto parecer.
E não se vê razão bastante para modificar o que de longe vem sendo estabelecido e se reafirmou nos Acórdãos deste Tribunal de 22 de Fevereiro de 1957, in Boletim n.º 64, p. 524, e o proferido na mesma data, do qual se juntou cópia a fl. 197.
Os doutos civilistas opositores não consideraram que o artigo 4.º da Lei de 1 de Julho de 1867, que aprovou o projecto do Código Civil, estatuiu que todas as disposições desse código, cuja execução dependa absolutamente da existência de repartições públicas ou de outras instituições que ainda não estavam criadas, só obrigarão desde que tais instituições funcionem.
Ora essas instituições, com função específica de registo, só foram criadas em 1911 e, como as situações jurídicas se regulam pela lei em vigor ao tempo da sua constituição, é de tomar em conta para o caso em apreço o Decreto de 2 de Abril de 1862, já mencionado.
Para os não católicos é que desde Janeiro de 1879, ex vi do Decreto de 28 de Novembro de 1878, o registo civil se tornou obrigatório.
Por outro lado, como bem frisa o douto parecer, os defensores daquela posição aplicaram por analogia disposições excepcionais a casos não omissos ou que deviam ser solucionados à luz do texto e do espírito de preceitos especialmente reguladores do registo paroquial.
De aceitar também, pela sua densidade, o argumento do Doutor Pedro Chaves nos seus comentários aos Códigos do Registo Civil de 1911 e de 1932, acentuando que, existindo já no Código Administrativo de 1836 a proibição expressa da declaração de maternidade sem a presença da mãe, a supressão de tal proibição no Decreto de 1862 (que a manteve para a paternidade) significa que é dispensável a presença da mãe para a declaração legal de maternidade.
De resto, como foi acentuado, explica-se inteiramente esta exigência pelo velho princípio de que mater semper certa est, pater nunquem.
Na adesão à dominadora corrente jurisprudencial podemos concluir, como o fez Dias Ferreira ao anotar o artigo 2467.º, que os párocos podem declarar nos assentos do baptismo de filhos ilegítimos o nome da mãe, embora neles não haja a assinatura dela, ou de outra pessoa a seu rogo.
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, negando provimento ao recurso, estabelece-se o seguinte assento:
A maternidade dos filhos ilegítimos declarada pelo pároco e devidamente testemunhada, em assento de baptismo celebrado na vigência do Decreto de 2 de Abril de 1862, é válida independentemente dos requisitos exigidos para a perfilhação paterna no § 2.º do artigo 13.º daquele decreto.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 25 de Janeiro de 1963. - Bravo Serra - F. Toscano Pessoa - Barbosa Viana - Amorim Girão - José Osório - Gonçalves Pereira - Cura Mariano - Alberto Toscano - Eduardo Coimbra - Arlindo Martins - José Meneses - Ricardo Lopes - Fragoso de Almeida - Abreu Lobo - Lopes Cardoso.
Está conforme.
Secretaria do Supremo Tribunal de Justiça, 9 de Fevereiro de 1963. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.