Acórdão doutrinário
Processo 31976. - Autos de recurso para tribunal pleno vindos do Tribunal da Relação de Lourenço Marques. Recorrente, Ministério Público. Recorrido, António Camilo Pereira Leite.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lourenço Marques interpôs, ao abrigo do disposto no artigo 765.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável por força do § único do artigo 668.º, com referência ao § único do artigo 669.º, ambos do Código de Processo Penal, recurso para o tribunal pleno do Acórdão do mesmo tribunal de 3 de Agosto de 1965 que, relativamente à mesma questão fundamental de direito, teria assentado em solução oposta ao Acórdão do mesmo tribunal de 20 de Julho do mesmo ano.
Em julgamento da questão preliminar, conforme disposição do artigo 766.º do Código de Processo Civil, decidiu a secção criminal, por acórdão de fl. 23, que se verificavam os pressupostos legais para o prosseguimento do recurso e respectivo conhecimento pelo tribunal pleno.
E, uma vez assim decidido, produziu o ilustre representante do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal a sua alegação, na qual termina por emitir parecer no sentido de que se deve solucionar o conflito de jurisprudência firmando assento nos termos que indica.
Tendo-se colhido os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
Como o tribunal pleno não está vinculado à decisão da secção sobre a existência da oposição (artigo 768.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), é esse ponto que deve examinar-se em primeiro lugar.
Vejamos, pois.
O Acórdão de 20 de Julho, transitado em julgado, decidiu no sentido da legalidade do artigo 35.º da postura de trânsito do concelho de Lourenço Marques, com a redacção dada pelo edital de 28 de Junho de 1963 (Boletim Oficial, 3.ª série, de 6 de Julho de 1963), que na nova postura de trânsito publicada pelo edital de 16 de Junho de 1965 passou a constituir o artigo 37.º
Por sua vez, o Acórdão de 3 de Agosto de 1965 decidiu pela ilegalidade do mesmo artigo 35.º e, consequentemente, no sentido de que não deve ser cumprido pelos tribunais.
É, assim, incontroverso que existe a invocada oposição, o que, aliás, resulta à evidência da simples leitura dos acórdãos aludidos e das decisões neles contidas, referidas, como se vê, à mesma norma.
Assente isto, pode agora encarar-se o problema fundamental que está em causa.
A disposição citada da referida postura é, na parte que nos interessa, do seguinte teor:
Nos locais onde estiverem colocados aparelhos de medir o tempo de estacionamento, fica este sujeito em todos os dias úteis das 8 às 12 horas e das 14 às 18 horas, excepto aos sábados depois das 12 horas, ao pagamento da taxa de 1$00 por cada meia hora, paga pela introdução da moeda respectiva no referido aparelho.
Nesses locais fica proibido o estacionamento de motociclos simples, velocípedes, carroças e veículos pesados.
As infracções ao disposto neste artigo serão punidas com a multa de 50$00 por cada período do dia, isto é, de manhã ou de tarde.
No acórdão impugnado decidiu-se que o artigo 25.º, n.º 4, do Código da Estrada faz a exigência de guardas privativos dos parques de estacionamento, para que possa ser cobrada taxa pela utilização, donde a ilegalidade do artigo 37.º da postura, que manda cobrar taxa sem que os parques sejam guardados pela forma prescrita na lei geral.
E ao contrário disto se decidiu no Acórdão de 20 de Julho de 1965, pois se considerou suficiente que, no caso dos parquímetros, haja pessoal encarregado da sua vigilância e fiscalização, pelo que se concluiu, e sem sombra de dúvida, que se trata de parques guardados iguais aos que têm aí pessoal incumbido da cobrança das taxas.
E, anteriormente, o mesmo acórdão dizia: "quando aí há uma pessoa (nos parques) encarregada da cobrança de taxas devidas, é habitual ela auxiliar os condutores dos veículos na arrumação destes no parque. Porém, como no caso dos parquímetros as taxas são cobradas por meios mecânicos automáticos, os espaços de reservas estão devidamente assinalados e orientados e, portanto, tudo mais simplificado e até mais perfeito.
O serviço prestado, quer num caso, quer noutro, é o mesmo e os processos adoptados são idênticos, embora um seja pessoal e outro mecânico, ambos permitidos por lei, que não determinou concretamente qual o que devia ser seguido. Assim, é razoável que seja devida a taxa desse serviço, nos precisos termos do artigo 25.º, n.º 4, do Código da Estrada, dado que o pressuposto e fim do legislador foram objectivado e atingido, sendo de salientar que no caso dos parquímetros o serviço é mais ordenado, seguro e perfeito.»
Do que vem de ser transcrito não só se vê claramente qual é a questão, como também se descortina em que consiste a divergência.
O ilustre representante do Ministério Público junto deste Tribunal, depois de discorrer, alias com muita proficiência, sobre a competência das câmaras municipais em matéria de posturas, termina por concluir que não cumpre, adentro dos limites deste processo, mais do que indagar qual das divergentes interpretações da norma do n.º 4 do artigo 25.º do Código da Estrada é exacta, e firmá-la por meio de assento. Face à interpretação que assim for fixada, os tribunais, perante cada caso concreto sobre que tiverem de debruçar-se, dirão se a postura de trânsito, designadamente ao versado artigo 37.º, é eficaz, ou carece de eficácia por ser ilegal. A respectiva anulação erga omnes só por muito diferente via - a do recurso contencioso administrativo - poderá ser obtida.
E, quanto à discutida norma do artigo 25.º, n.º 4, do Código da Estrada, é de parecer que ela não exige que nos parques de estacionamento haja guardas privativos ou exclusivamente para o serviço de vigilância.
Não há a menor observação a fazer, por ser inteiramente correcta, à posição assumida na primeira parte da alegação; mas importa saber - e no fundo é essa a questão - se é aceitável a interpretação que faz, condizente, aliás, com a do Acórdão de 20 de Julho de 1965, que em parte se transcreveu, da citada disposição do Código da Estrada.
Prescreve ela, na parte que nos interessa:
Poderá limitar-se o tempo de estacionamento e, sempre que o parque seja guardado, cobrar-se uma taxa correspondente a cada período de utilização.
O que importa, portanto, determinar é o significado da expressão "parque guardado», pois só neste caso a citada disposição permite a cobrança de uma taxa.
Do n.º 1.º do referido artigo 25.º conclui-se o que sejam parques de estacionamento - locais especialmente destinados ao estacionamento de veículos - e, desses parques, há os que são guardados e os que o não são, os que estão sujeitos a limites de tempo de estacionamento e aqueles em que tal limite não existe.
O que se pergunta, e por aí se pode encontrar a solução, é porque se exige, ou pode exigir-se, o pagamento de uma taxa no caso de o parque ser guardado.
A resposta a esta pergunta parece-nos muito simples. Na verdade, naquele caso, o dono do veículo, ou o seu condutor, tira daí uma vantagem, que se traduz, precisamente, na guarda do mesmo. É, pois, compreensível que se lhe exija uma compensação, traduzida no pagamento da taxa.
Ora, no caso do chamado parquímetro, este serve apenas para controlar o pagamento pelo estacionamento, mas não confere, como é evidente, nenhuma espécie de garantia quanto à guarda do veículo, sendo nítido, e contràriamente ao que se afirma na transcrita passagem do Acórdão de 20 de Julho, que um simples processo mecânico de cobrança não equivale, não é igual, à guarda.
Efectivamente, aqueles objectos destinam-se à cobrança de uma taxa pelo estacionamento do veículo, de tal forma que, introduzida uma moeda na caixa destinada à sua recepção, a máquina marca exactamente um certo período de tempo, findo o qual, ou se introduz nova moeda ou, não se procedendo assim, passará a haver contravenção por haver decorrido o lapso de tempo correspondente a taxa paga.
Ora, é perfeitamente nítido que os agentes encarregados da fiscalização se limitam a verificar se o estacionamento excedeu ou não o período, o que é acusado pela máquina; mas é também claro não só que tais agentes não podem assegurar a guarda dos veículos, pois não podem encontrar-se permanentemente junto de cada parquímetro, como também que tais objectos não se destinam, em princípio, a parques, pois a cada veículo tem de corresponder um.
E se não se destinam a parques - e este vocábulo tem um significado que não pode corresponder a simples locais onde é permitido, por pequenos períodos de tempo, o estacionamento, como seja uma rua -, é então nítido que a questão nem sequer se pode pôr, ou existe, por ser por de mais evidente que o citado artigo do Código da Estrada nunca poderia ter querido referir-se aos referidos parquímetros - objectos cuja designação parece bem pouco própria, pelo menos em face da nossa lei e dado o fim a que se destinam.
E com isto não se quer dizer que a guarda a que se refere o n.º 4 do artigo 25.º do Código da Estrada deva, necessàriamente, ser feita por pessoas.
Efectivamente, para que um parque se possa dizer guardado basta que seja instalado em recinto fechado, ou vedado (tipo que começa a ser usado em várias cidades), mas que dá sempre aos donos dos veículos uma certa garantia, ou segurança, relativamente aos mesmos veículos.
Aliás, nesse tipo de parque já é possível conceber o pagamento da taxa por meio mecânico, mas quanto a ele o que sucede é que o veículo fica guardado, sendo a forma do pagamento o que menos interessa.
Pode ainda acrescentar-se que os parquímetros a que se refere o processo não impedem o estacionamento por todo o período de tempo designado na postura de que os acórdãos em divergência se ocuparam, bastando, para tanto, que, por cada parcela de tal período, se pague uma taxa - e daí o poder parecer que os locais onde estão colocados são parques de estacionamento.
Mas este aspecto não traz qualquer contributo para a resolução do problema, pois sempre se havia de chegar à conclusão de que tais parques não são guardados.
Com efeito, funcionando ou não o parquímetro por todo o período de tempo permitido de estacionamento, o agente fiscalizador não tem de averiguar, paga a taxa, de que veículo se trata - só deve fazê-lo quando esta deixa de ser paga.
E por aí também se chega à conclusão de que o veículo não está guardado.
Aliás, o texto da postura, como se vê do que ficou transcrito, não fala em parques - refere-se apenas a locais onde estiverem colocados aparelhos de medir o tempo de estacionamento, sendo certo que o vocábulo "parque» tem na nossa lei um significado especial, como resulta a toda a evidência do n.º 3 do artigo 25.º do Código da Estrada.
Em face de tudo o que vem de ser exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso, confirmando, consequentemente, o acórdão impugnado, de 3 de Agosto de 1965, e, em aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 768.º do Código de Processo Civil, estabelecem o seguinte assento:
Entende-se por parque guardado, para os efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 25.º do Código da Estrada, aquele que está submetido à vigilância de agentes de tal encarregados ou que se encontra instalado em recinto fechado.
Não é devido imposto de justiça.
Lisboa, 20 de Dezembro de 1966. - Adriano Vera Jardim - Gonçalves Pereira - J. Santos Carvalho Júnior - Eduardo Correia Guedes - Lopes Cardoso - Albuquerque Rocha - Torres Paulo - Ludovico da Costa - Joaquim de Melo - H. Dias Freire - Fernando Bernardes de Miranda - José Cabral Ribeiro de Almeida - António Teixeira de Andrade - Francisco Soares.
Está conforme.
Supremo Tribunal de Justiça, 10 de Janeiro de 1967. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.