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Acórdão do Tribunal Constitucional 173/2009, de 4 de Maio

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Sumário

Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, na medida em que impõe que o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente (Processo n.º 777/08).

Texto do documento

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 173/2009

Processo 777/08

Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei 53/2004, de 18 de Março, «que impõe que o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente».

Alega-se no pedido que a norma em causa foi, no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade, julgada, por três vezes, materialmente inconstitucional, por ofensa ao artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º da Constituição, no segmento em que consagra o direito à capacidade civil. Tal sucedeu no Acórdão 564/2007 e nas decisões sumárias n.os 615/2007 e 85/2008.

2 - Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, o Primeiro-Ministro, em resposta, ofereceu o merecimento dos autos.

3 - Debatido o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal, nos termos do artigo 63.º da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, procedeu-se à distribuição do processo, cumprindo agora formular a decisão.

II - Fundamentação

4 - Não se suscitam dúvidas quanto ao preenchimento dos pressupostos de que os artigos 281.º, n.º 3, da CRP e 82.º da LTC fazem depender a apreciação de um pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral.

Na verdade, como se aduz no pedido, a mesma norma já foi julgada inconstitucional em três casos concretos. No Acórdão 564/2007, foi decidido «julgar inconstitucional a norma do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do mesmo diploma [Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas], por ofensa ao artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º da Constituição da República, no segmento em que consagra o direito à capacidade civil». Na decisão sumária n.º 615/2007, por sua vez, decidiu-se julgar inconstitucional a mesma norma «quando aplicada a administrador de sociedade comercial declarada insolvente». Na decisão sumária n.º 85/2008, o julgamento de inconstitucionalidade obedeceu aos mesmos termos dos constantes no acórdão 564/2007.

A mais destas três decisões identificadas pelo requerente, também os Acórdãos n.os 570/2008, 571/2008 e 584/2008 e as decisões sumárias n.os 267/2008, 323/2008, 376/2008, 417/2008 e 425/2008 se pronunciaram pela inconstitucionalidade da norma constante da alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE, com fórmulas decisórias idênticas à do Acórdão 564/2007. Os Acórdãos n.os 581/2008 e 582/2008, bem como as decisões sumárias n.os 288/2008, 321/2008, 371/2008 e 421/2008 julgaram essa norma inconstitucional «na parte em que impõe que o juiz, na sentença, decrete a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente».

Como se vê, não há coincidência total na identificação das pessoas sujeitas à aplicação da medida de inabilitação. De facto, enquanto que, num grupo de decisões (aí incluída a primeiramente tomada), não se faz qualquer enunciação restritiva, já num outro se circunscreve o juízo de inconstitucionalidade a uma certa dimensão aplicativa da norma: a aplicação a administradores de sociedade comercial declarada insolvente.

Há, no entanto, que ter presente que, em todas as situações alvo das decisões apontadas pelo requerente, sempre os sujeitos afectados pelo decretamento da inabilitação revestiam essa qualidade. Daí que, tratando-se de fiscalização concreta, a «norma do caso» tinha forçosamente esse âmbito directo de incidência, ainda quando a decisão o não refira expressamente.

O requerente pede a declaração de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do CIRE, «que impõe que o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente».

Pode concluir-se, atento o exposto, que há correspondência entre o objecto do pedido e o objecto das decisões de inconstitucionalidade, em três casos concretos.

5 - O artigo 189.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei 53/2004, estabelece, sob a epígrafe «Sentença de qualificação»:

«Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:

a) Identificar as pessoas afectadas pela qualificação;

b) Decretar a inabilitação das pessoas afectadas por um período de 2 a 10 anos;

c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;

d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.» A disposição legal prevê, portanto, para além de outras medidas, a inabilitação obrigatória das pessoas afectadas pela qualificação da falência como culposa, independentemente da verificação dos requisitos gerais da inabilitação.

Ainda que com antecedentes remotos no direito pátrio, que remontam ao Código Comercial de 1833, e se prolongaram até ao Código de Processo Civil de 1939, a solução não se encontrava prevista no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei 132/93, de 23 de Abril, pelo que tem carácter inovador.

Parece poder retirar-se de uma alusão expressa no n.º 40 do preâmbulo do Decreto-Lei 53/2004, de 18 de Março, que a fonte directa da norma em causa foi a Ley Concursal espanhola (Ley 22/2003), promulgada pouco antes, em 9 de Julho de 2003. Mas aí (artigo 172., 2., 2.), a condição pessoal designada como «inabilitação» afecta bem menos a capacidade do sujeito afectado, pois retira-lhe apenas legitimidade para administrar bens alheios e para representar outras pessoas - cf.

Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, I, 6.ª ed., Coimbra, 2006, p. 125, n.

100.

Na doutrina, aventa-se a hipótese de que este diverso alcance se ficou a dever a uma tradução à letra do vocábulo «inhabilitácion», sem representar o seu significado próprio no direito espanhol, não coincidente com o da figura como tal designada e regulada no nosso Código Civil, que o direito dos nossos vizinhos desconhece - cf. Luís Carvalho Fernandes, «A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente pelo devedor», Themis, 2005, p. 104, n. 36, e Rui Pinto Duarte, «Efeitos da declaração de insolvência quanto à pessoa do devedor», ibidem, p. 146 (Autor, este, que não hesitou em afirmar que «parece, pois, que o legislador do CIRE se equivocou quanto ao sentido da sua fonte inspiradora»).

Seja como for, a consagração da medida provocou, quase de imediato, viva reacção crítica na doutrina nacional, dela merecendo epítetos como «estranha» (Coutinho de Abreu, ob. loc. cit.), ou «absurdas» (Rui Pinto Duarte, ob. cit., p. 145, em referência às normas que a regulam: para além da norma sub judicio, o artigo 190.º do CIRE).

Mas, para lá das críticas que possa suscitar no plano do direito ordinário, será que a norma da alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE está também ferida de inconstitucionalidade? 6 - Assim o entendeu o Acórdão 564/2007, considerando que a disposição, ao impor a inabilitação como efeito necessário da situação de insolvência culposa, violava o artigo 18.º, n.º 2, e o artigo 26.º da Constituição, na parte em que este último reconhece o direito à capacidade civil.

Para decidir em tal sentido, o mencionado Acórdão, depois de afastar a violação de outros parâmetros constitucionais invocados pelo requerente, expendeu a fundamentação que a seguir se transcreve:

«De facto, a inabilitação a que a insolvência pode conduzir só pode ser a correspondente ao instituto jurídico civilístico com essa designação, previsto nos artigos 152.º e seguintes do Código Civil - neste sentido, Carvalho Fernandes, "A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente pelo devedor", Themis, ed. esp., 2005, p. 97. Trata-se, pois, de uma situação de incapacidade de agir negocialmente, traduzindo a inaptidão para, por acto exclusivo (sem carecer do consentimento de outrem), praticar "actos de disposição de bens entre vivos e todos os que, em atenção às circunstâncias de cada caso, forem especificados na sentença" (artigo 153.º, n.º 1, do Código Civil).

Ora, o reconhecimento constitucional da capacidade civil, como decorrência imediata da personalidade e da subjectividade jurídicas, cobre, tanto a capacidade de gozo, como a capacidade de exercício ou de agir. É certo que, contrariamente à personalidade jurídica, a capacidade, em qualquer das suas duas variantes, é algo de quantificável, um posse susceptível de gradações, de detenção em maior ou menor medida. Mas a sua privação ou restrição, quando afecte sujeitos que atingiram a maioridade, será sempre uma medida de carácter excepcional, só justificada, pelo menos em primeira linha, pela protecção da personalidade do incapaz. É "em homenagem aos interesses da própria pessoa profunda" (Orlando de Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil, polic., Coimbra, 1981, p. 83), quando inabilitada, por razões atinentes à falta de atributos pessoais, para uma autodeterminação autêntica na condução de vida e na gestão dos seus interesses, que a incapacidade, em qualquer das suas formas, pode ser decretada.

Daí que, para além do disposto no n.º 4 do artigo 26.º da Constituição, as restrições à capacidade civil, incluindo a capacidade de agir, só sejam legítimas quando os seus motivos forem "pertinentes e relevantes sob o ponto de vista da capacidade da pessoa", não podendo também a restrição "servir de pena ou de efeito de pena"

(Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007, p. 465).

Nenhuma destas duas condições está aqui preenchida. De facto, neste âmbito, a inabilitação não resulta de uma situação de incapacidade natural, de um modo de ser da pessoa que a torne inapta para a gestão autónoma dos seus bens, mas de um estado objectivo de impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas (artigo 3.º, n.º 1, do CIRE), imputável a uma actuação culposa do devedor ou dos seus administradores. Forma de conduta que, só por si, não é, evidentemente, indiciadora de qualquer característica pessoal incapacitante.

Em vez de acorrer em tutela de um "sujeito deficitário", precavendo os seus interesses, a inabilitação é, no quadro da insolvência, uma resultante forçosa de uma dada situação patrimonial, efectivada com total abstracção de características da personalidade do inabilitado, que possam ter conduzido a essa situação.

Que essa correlação inexiste, prova-o, além do mais, o facto de a inabilitação ser decretada por um prazo fixo, sem possibilidade de levantamento, previsto no regime comum, para o caso de desaparecimento das causas de incapacidade natural que, nesse regime, a fundaram.

E nem se diga que a figura é instrumentalizada para defesa dos interesses dos credores, pois a inabilitação em nada contribui para a consecução da finalidade do processo de insolvência. Este, nos termos do artigo 1.º do CIRE, "é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência [...]."

Para atingir essa finalidade, já existe um mecanismo adequado no processo, tendente à conservação dos bens penhorados. Trata-se da transferência para o administrador da insolvência dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente (artigo 81.º, n.º 1, do CIRE).

Mas esta limitação de actuação negocial não pode ser confundida com uma incapacidade, quer pela sua causa e função, quer pelos efeitos dos actos praticados pelo insolvente em contravenção daquela norma: esses actos estão feridos de ineficácia (n.º 6 do artigo 81.º), não de anulabilidade, como seria o caso se fosse a incapacidade a qualificação apropriada. Assim se protege, na justa medida, os interesses dos credores.

Foi por reconhecer que a situação não pode ser qualificada de incapacidade que o Acórdão 414/2002 deste Tribunal se pronunciou pela conformidade constitucional do, entre outros, artigo 147.º do anterior Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, a que corresponde, no actual Código, o artigo 81.º, n.º 1. Diz-se aí que essa norma não viola o artigo 26.º da CRP porque "tão pouco afecta o seu [do falido] direito à capacidade civil, mesmo entendido o sentido constitucional deste direito de uma forma ampla (há unanimidade na doutrina, no sentido de que não se trata de uma situação de 'incapacidade') [...]".

Nada acrescentando à defesa da integridade da massa insolvente, não se vê também que a inovação introduzida pelo artigo 189.º, n.º 2, alínea b), possa contribuir eficazmente para a defesa dos interesses gerais do tráfego, resguardando a posição de eventuais credores futuros do inabilitado. Pois, na verdade, e de acordo com o regime da inabilitação, estes não terão legitimidade para arguir a invalidade dos actos celebrados pelo inabilitado sem o consentimento do curador. Essa legitimidade, por força do disposto no artigo 125.º do Código Civil, aplicável, com as devidas adaptações, por remissão dos artigos 156.º e 139.º do mesmo Código - v., por todos, C. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed. por A. Pinto Monteiro/P. Mota Pinto, Coimbra, 2005, p. 243 - cabe apenas ao curador, ao próprio inabilitado, uma vez readquirida a capacidade plena, e aos seus herdeiros.

A inabilitação prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE só pode, pois, ter um alcance punitivo, traduzindo-se numa verdadeira pena para o comportamento ilícito e culposo do sujeito atingido.

Sintomaticamente, a sua duração é fixada dentro de uma moldura balizada por um mínimo e um máximo, tal como as penas do foro criminal. E os critérios para a sua determinação, em concreto, não andarão longe dos que operam nesta área (designadamente, o grau de culpa e a gravidade das consequências lesivas), pois não se vê que outros possam ser utilizados.

Essa "pena" fere o sujeito sobre quem recai com uma verdadeira capitis diminutio, sujeitando-o à assistência de um curador (artigo 190.º, n.º 1). Ele perde a legitimidade para a livre gestão dos seus bens, mesmo os não apreendidos ou apreensíveis para os fins da execução, situação que se pode prolongar para além do encerramento do processo [artigo 233.º, n.º 1, alínea a)].

Consequência que, tendo também presente a globalidade dos efeitos da insolvência, e em particular a inibição para o exercício do comércio, não pode deixar de ser vista como inadequada e excessiva.

O que tudo leva a concluir pela desconformidade do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do CIRE com o artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º, da Constituição da República.» 7 - Estando em juízo a violação do princípio da proporcionalidade - o que é um denominador comum a todas as decisões que sustentam o pedido em apreciação neste processo - , é determinante, para a formação dos juízos ponderativos que a aplicação desse princípio subentende, a identificação da teleologia imanente à norma sub judicio e dos interesses que ela procura acautelar.

Não existe, nesta matéria, unanimidade de concepções, como se pode constatar pela simples análise da jurisprudência deste Tribunal. Enquanto que o Acórdão 564/2007 não logrou descortinar outra intenção legislativa, por detrás da imposição de decretar a inabilitação, que não fosse a de sancionar a conduta culposa dos sujeitos afectados, a decisão sumária n.º 615/2007, fazendo-se eco de algumas posições doutrinárias, deixa em aberto o entendimento alternativo de que ela visa proteger esses sujeitos.

Diga-se, além do mais que já ficou expresso naquele acórdão, que os pressupostos aplicativos da inabilitação, só imposta em caso de culpa qualificada (nos termos do artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, a culpa relevante circunscreve-se aqui ao dolo ou à culpa grave), criam obstáculos decisivos ao acolhimento desta segunda hipótese, fornecendo, ao invés, um bom argumento em prol da primeira.

Na verdade, se o destinatário da tutela fosse o próprio afectado pela medida, não se compreenderia a restrição do âmbito subjectivo dos destinatários aos administradores menos merecedores dessa protecção, por lhes ser imputável uma conduta gestionária altamente censurável, deixando de fora aqueles que actuaram sem culpa ou com culpa leve.

De resto, a ser esse o fundamento da inabilitação, ficaria sempre por explicar porque é que os pressupostos gerais dessa medida, tal como estabelecidos no Código Civil, se mostram aqui insuficientes ou inadequados, abrindo campo para a aplicação de uma medida restritiva da capacidade, como efeito acessório necessário de uma situação de insolvência culposa, sem dependência da comprovação, pelos meios processuais próprios, de um défice de capacidade natural.

O ponto decisivo é mesmo este. Na verdade, não pode excluir-se que a impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas, justificativa da insolvência, seja o resultado de um comportamento anómalo, revelador da falta de qualidades exigíveis para uma autónoma e auto-responsável gestão dos interesses próprios. Mas, para os casos em que assim é, não se vislumbram, sob o prisma da tutela do incapaz, especiais razões determinantes de desvios ao regime comum, quanto à certificação da ocorrência (e permanência) de qualquer das causas de inabilitação em geral previstas.

Ao dispensar inteiramente os pressupostos condicionantes consagrados no artigo 152.º do Código Civil, impondo ao juiz, em caso de insolvência culposa, o dever de, sem mais, decretar a inabilitação, o legislador mostra que a instituiu, em si mesma, como uma adicional causa autónoma dessa medida, por razões distintas da que subjaz ao regime das normas codicísticas.

É seguro, pois, que a medida não é determinada pela intenção de tutela do interesse do próprio inabilitado - incontroversamente o interesse visado por todas as formas de incapacidade submetidas ao regime comum, incluindo a inabilitação por habitual prodigalidade, como é entendimento unânime da doutrina privatista (cf., por todos, além de Orlando de Carvalho, ob. loc. cit. no Acórdão 564/2007, Carlos Mota Pinto, ob. cit. no mesmo acórdão, pp. 227-228, e Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 2005, 3.ª ed., pp. 109 e 117).

8 - O Acórdão 564/2007 assumiu que a vinculação das incapacidades a esse fim é também um imperativo constitucional, pelo que não é constitucionalmente admissível a instrumentalização das restrições à capacidade civil para atingir outros objectivos, designadamente como sanção à conduta culposa dos administradores da sociedade comercial declarada insolvente. Este entendimento já foi sufragado na doutrina (cf.

Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Coimbra, 2009, pp. 275-276).

No quadro desta posição, a solução em causa contraria o princípio da proporcionalidade logo no primeiro patamar do controlo da sua observância, pois a «legitimidade constitucional dos fins prosseguidos com a restrição», bem como a «legitimidade dos meios utilizados» constituem um «pressuposto lógico» da sua idoneidade (nesse sentido, Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, p. 166). Ora, se admitirmos - como se decidiu no Acórdão 564/2007 - que só a tutela do naturalmente incapaz goza de credencial bastante como justificação constitucionalmente relevante de medidas restritivas da capacidade civil, fica, à partida, irremediavelmente comprometida a validação da utilização das incapacidades como meio de prossecução de qualquer outro fim. Independentemente da justeza intrínseca desse outro fim, é ilegítima a sua prossecução por meio da sujeição dos administradores a um regime de incapacidade como o da inabilitação.

Mas, mesmo adoptando uma posição mais complacente, acolhedora da legitimidade constitucional de uma concepção da inabilitação como um instrumento multivocacionado, idóneo a servir outros interesses, que não apenas os do próprio incapaz, a norma em questão não passa o test da proporcionalidade.

Na verdade, sendo nula a relevância da inabilitação no processo de insolvência e seus resultados (Luís Carvalho Fernandes, ob. cit., 102) não serão os interesses dos credores da massa insolvente (tutelados por outra via), mas interesses gerais do tráfico, designadamente mercantil, os visados com a medida. Nesta óptica (em que se coloca a declaração de voto de vencido exarada no Acórdão 564/2007), tendo um carácter sancionatório, a medida estaria reflexamente abonada em razões de prevenção de condutas culposamente atentatórias da segurança do comércio jurídico em geral.

Simplesmente, para esse fim, continua a estar prevista a tradicional medida de inibição do exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa [alínea c) do n.º 2 do artigo 189.º], como sanção adicionável, e não alternativa, à da inabilitação.

Tendo em conta o obrigatório decretamento da inibição - medida só justificável por atenção àqueles interesses gerais - e o universo dos afectados, coincidente com os sujeitos à inabilitação, pode concluir-se que a sanção mais gravosa da inabilitação não é indispensável para a salvaguarda desses interesses. Sendo assim, resulta violado o critério da necessidade ou exigibilidade, postulado pelo princípio da proporcionalidade.

Noutra óptica, para quem possa entender que a eficácia preventiva resulta melhor satisfeita com a inabilitação, será sempre de decidir que a cumulação e aplicação simultânea das duas restrições atenta contra a proibição do excesso.

É de concluir, pois, que, seja qual for a perspectiva elegida, quanto à finalidade do regime em apreciação, e quanto à teleologia do instituto da inabilitação, a norma do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do CIRE viola o princípio da proporcionalidade.

III - Decisão

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional acorda em declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto Lei 53/2004, de 18 de Março, por violação dos artigos 26.º e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que impõe que o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente.

Lisboa, 2 de Abril de 2009. - Joaquim de Sousa Ribeiro (com declaração de voto) - Maria Lúcia Amaral - José Borges Soeiro - Vítor Gomes - Maria João Antunes - Carlos Fernandes Cadilha - Ana Maria Guerra Martins - Carlos Pamplona de Oliveira - Mário José de Araújo Torres - Gil Galvão - João Cura Mariano (com declaração de voto que anexo) - Benjamim Rodrigues (vencido de acordo com a declaração anexa) - Rui Manuel Moura Ramos.

Declaração de voto do relator

Em observância do princípio do pedido, e tendo em conta o objecto do requerimento apresentado pelo Ministério Público, a decisão de inconstitucionalidade recaiu apenas sobre uma dimensão da norma constante do artigo 189.º, n.º 2: a que impõe que o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente.

Mas entendo que o pedido poderia ter ido mais longe, facultando uma decisão de âmbito subjectivo não circunscrito a esses sujeitos, antes coincidente com o universo dos afectados com a medida (os identificados no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE), para o que, aliás, já dispunha de decisões em processos de fiscalização concreta em número bastante.

Partindo, como parto, da convicção firme de que uma medida restritiva da capacidade civil, mesmo da capacidade de agir negocial, está, também por imperativo constitucional, vinculada ao fim de tutela do próprio incapaz, e de que não é essa a teleologia da norma em questão, não descortino qualquer razão para circunscrever o alcance da decisão àquela categoria de inabilitados. - Joaquim de Sousa Ribeiro.

Declaração de voto Não acompanho a fundamentação do presente acórdão por entender que sendo a declaração de inconstitucionalidade limitada à aplicação da medida de inabilitação prevista no artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do CIRE, aos administradores de sociedade comercial declarada insolvente, o juízo radical de que a aplicação de tal medida a qualquer insolvente não é constitucionalmente admissível, além de me suscitar sérias reservas, é certamente excessivo.

Conforme se encontra melhor explicado na decisão sumária n.º 615/07 deste Tribunal, de 27 de Novembro de 2007 (acessível no site www.tribunalconstitucional.pt), aplicando-se a medida de inabilitação, nos termos do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do CIRE, a um administrador de uma sociedade comercial declarada insolvente, ao qual também é aplicável a medida de inibição para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, nos termos da alínea c), do n.º 2, do mesmo artigo 189.º, independentemente da perspectiva que tivermos da motivação da utilização daquela figura civilista (medida de protecção ou sanção ao inabilitado), a sua previsão legal surge sempre manifestamente desproporcionada.

Na verdade, a conduta causadora da insolvência não ocorreu na gestão do património pessoal do administrador da sociedade comercial, mas sim no exercício da sua actividade profissional, pelo que nem o seu interesse, nem o dos seus credores pessoais, nem sequer o do tráfego jurídico-económico, reclamam tal medida, a qual se revela, assim, desnecessária e desadequada ao facto que a desencadeia.

Não existindo qualquer manifestação por parte do administrador da sociedade declarada insolvente que este não se encontra apto a gerir convenientemente o seu património, a aplicação da medida de inabilitação, limitadora da sua capacidade jurídica, não é proporcionada, pelo que não é admitida, nos termos do artigo 18.º, da CRP, mostrando-se, pois, violado o direito constitucional à capacidade civil, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da CRP.

Este raciocínio era o bastante para se ter atingido a decisão que subscrevi. - João Cura Mariano.

Declaração de voto

Votei vencido pelo essencial das razões constantes da declaração de vencido, aposta ao Acórdão 564/07. Em rectas contas, o acórdão acaba por abonar-se num entendimento segundo o qual o instituto da inabilitação é um instrumento jurídico que está ao serviço da protecção dos interesses da pessoa inabilitada, procedendo a uma espécie de «constitucionalização» da figura da inabilitação.

Ora, no quadro do direito fundamental à capacidade civil, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, a inabilitação não é mais do que uma restrição a esse direito cuja constitucionalidade tem de obedecer às regras constantes no artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição, podendo o instituto ser acolhido para dar satisfação a outros interesses que não apenas da pessoa inabilitada, como os interesses gerais do comércio e da segurança jurídica, como se adensou na referida declaração de voto.

Por outro lado, ao contrário da linha metodológica adoptada, afigura-se-me que o teste do cumprimento das exigências condensadas no princípio da proporcionalidade deve ser estabelecido, apenas, num diálogo entre aqueles interesses, com relevância constitucional, exteriores ao sujeito inabilitado e o seu direito fundamental à capacidade civil plena e não no interior do próprio instituto.

E dentro desta linha, continuamos a não descortinar razões, como já expusemos na mencionada declaração de vencido, para censurar a opção normativa feita pelo legislador ordinário, sendo que, como se disse no Acórdão 187/01, disponível em www.tribunalconstitucional.pt:

«[...] não pode deixar de reconhecer-se ao legislador - diversamente da administração - [...] uma 'prerrogativa de avaliação', como que um 'crédito de confiança', na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empíricas entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução dos objectivos visados com a medida [...]. Tal prerrogativa da competência do legislador na definição dos objectivos e nessa avaliação [...] afigura-se importante sobretudo em casos duvidosos, ou em que a relação medida objectivo é social ou economicamente complexa, e a objectividade dos juízos que se podem fazer (ou suas hipotéticas alternativas) difícil de estabelecer.

[...] em casos destes, em princípio, o Tribunal não deve substituir uma sua avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os efeitos das medidas, à que é efectuada pelo legislador, e que as controvérsias geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro manifesto de apreciação - como é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas não serem sequer compatíveis com a finalidade prosseguida - , ser resolvidas contra a posição do legislador». - Benjamim Rodrigues.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2009/05/04/plain-251214.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/251214.dre.pdf .

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  • Tem documento Em vigor 1993-04-23 - Decreto-Lei 132/93 - Ministério da Justiça

    Aprova o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, visando auxiliar as empresas nacionais em dificuldades financeiras, mas economicamente viáveis. Altera também o Código de Processo Civil, o Estatuto Judiciário, o Código das Custas Judiciais, o Código Penal e o Código de Processo Tributário, bem como demais legislação avulsa.

  • Tem documento Em vigor 2004-03-18 - Decreto-Lei 53/2004 - Ministério da Justiça

    Aprova o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Altera o Código de Processo Civil, o Código do Registo Comercial, o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, o Código Penal, o Código de Registo Civil e o Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado.

Ligações para este documento

Este documento é referido no seguinte documento (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

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