Assento
Acordam no pleno do Supremo Tribunal de Justiça:
1 - O Ministério Público, ao abrigo do disposto nos artigos 668.º do Código de Processo Penal e 763.º e seguintes do Código de Processo Civil, recorreu para o pleno deste Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão de 2 de Julho de 1986 (processo 38479), que estaria em oposição com o anteriormente decidido no Acórdão de 5 de Março de 1986 (processo 38200).
Pede se profira assento na orientação desta última decisão, isto é, no sentido de que o artigo 9.º do Decreto-Lei 14/84, de 11 de Janeiro, deve ser interpretado em sentido lato, amplo, de forma a referir-se aos estabelecimentos de crédito onde os cheques são inicialmente apresentados, mesmo que não sejam o sacado.
Cumpre decidir.
2 - Quanto à oposição de acórdãos.
A Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça já decidiu, no douto acórdão a fl. 23, existir a referida oposição.
Isso, porém, não impede que o tribunal pleno decida em sentido contrário (artigo 766.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).
Porém, no caso concreto, a oposição é manifesta.
Efectivamente, enquanto o Acórdão de 5 de Março de 1986 interpretou a disposição legal citada em sentido amplo, de forma a atribuir competência ao tribunal em cuja área se situa o estabelecimento bancário onde o cheque sem provisão foi inicialmente apresentado, e não ao da área do estabelecimento bancário sacado (ou da câmara de compensação), já o acórdão recorrido entendeu o contrário, atribuindo à mesma disposição um sentido técnico-jurídico restrito.
Os dois acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação e em processos diferentes.
Presume-se o trânsito em julgado do acórdão anterior (artigo 763.º, n.º 4, do Código de Processo Civil).
Verificam-se, portanto, os pressupostos para este tribunal pleno emitir assento.
3 - Quanto à questão de direito.
Preceitua o artigo 9.º do Decreto-Lei 14/84:
O tribunal territorialmente competente para conhecer do crime de emissão de cheque sem provisão é o da comarca onde se situe o estabelecimento da instituição de crédito no qual o cheque foi apresentado a pagamento.
O conflito jurisprudencial em apreciação versa sobre o entendimento a dar à expressão «estabelecimento [...] no qual o cheque foi apresentado a pagamento».
Enquanto uns entendem que a esta expressão deve ser dado um sentido lato, amplo, de forma a ser tomado em consideração o estabelecimento de crédito onde o cheque foi inicialmente entregue para eventual pagamento, já outros entendem que se lhe deve, antes, dar um sentido técnico-jurídico restrito, pelo que o relevante será apenas a apresentação no estabelecimento bancário sacado ou numa câmara de compensação.
Integram-se na primeira orientação:
O Acórdão de 8 de Maio de 1985 (B. 347, 294);
O Acórdão de 30 de Janeiro de 1986 (B. 353, 320);
O Acórdão de 5 de Março de 1986 (B. 355, 299);
O Acórdão de 9 de Julho de 1986 (processo 38304); e
O Acórdão de 22 de Outubro de 1986 (processo 38304);
e integram-se na segunda:
O Acórdão de 14 de Novembro de 1984 (B. 341, 356); e
O Acórdão de 20 de Novembro de 1985 (B. 351,299).
Não obstante os doutos argumentos invocados pelos defensores desta última orientação, entendemos que a razão está, antes, com os defensores da outra.
Efectivamente, «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo» (artigo 9.º do Código Civil).
Ora, como resulta do relatório do Decreto-Lei 14/84, o legislador, em virtude do «aumento preocupante do número de cheques sem provisão», procurou encontrar «medidas que modifiquem esta situação».
Introduziu, assim, «alterações na tramitação processual (...] visando atingir uma mais eficiente e célere administração da justiça».
Uma das novas medidas processuais é a obrigatoriedade de o ofendido comparecer em julgamento (artigo 8.º, n.º 2.º, do Decreto-Lei 14/84).
Parece-nos, assim, evidente que o legislador, no artigo 9.º citado, conexionou a competência territorial do tribunal para conhecer da infracção com o lugar do estabelecimento de crédito onde o cheque foi apresentado a pagamento, e não com o do local do banco sacado ou o da câmara de compensação.
De outra forma, nunca a finalidade visada pelo legislador seria atingida.
Basta pensar só nas hipóteses de entrega no Algarve de cheques sacados sobre bancos do Minho e vice-versa, em que o ofendido, ante a obrigação legal de comparecer a julgamento (certamente com vários adiamentos), quase de certeza preferiria abster-se da denúncia para evitar deslocações a lugares distantes, muitas delas, como se disse, em pura perda.
Quanto às câmaras de compensação, basta dizer que apenas existem duas, uma em Lisboa e outra no Porto.
Portanto, a atender-se a estas (e isso seria a hipótese normal e corrente), teríamos que a quase totalidade destes crimes teria de ser julgada naquelas duas cidades.
Não foi isso o que o legislador quis.
O que se pretendeu foi facilitar e incrementar a luta contra este verdadeiro flagelo, imposta pelas necessidades económicas dos dias de hoje, em que o uso do cheque se vem implantando cada vez mais nos hábitos do cidadão comum.
Assim, a expressão citada deve ser entendida num sentido amplo, lato.
Aliás, na linguagem comum e segundo o costume mercantil, apresentar a pagamento significa entregar o cheque a um banco intermédio, que providenciará que o sacado reembolse o tomador ou portador do cheque, seu cliente.
Se fosse outra a vontade do legislador, certamente que teria utilizado expressões como «apresentação a pagamento à instituição de crédito sacada» ou no «estabelecimento onde está aberta a conta respeitante ao cheque», etc.
É sintomático que tal não tenha acontecido.
4 - Assim, decidimos:
a) Revogar o douto acórdão recorrido, declarando competente o Tribunal de Alcanena;
b) Formular o seguinte assento:
Nos termos do artigo 9.º do Decreto-Lei 14/84, o tribunal competente para conhecer do crime de emissão de cheque sem provisão é o da comarca onde se situa o estabelecimento de crédito em que o cheque foi inicialmente entregue para eventual pagamento, e não a do estabelecimento bancário sacado ou a da câmara de compensação;
c) Sem imposto de justiça.
16 de Novembro de 1988. - Vasco Lacerda Tinoco - Pedro Augusto Lisboa de Lima Cluny - Silvino Alberto Villa-Nova - António Carlos Vidal de Almeida Ribeiro - Licínio Adalberto Vieira de Castro Caseiro - Augusto Tinoco de Almeida - Júlio Carlos Gomes dos Santos - José Alfredo Soares Manso Preto - Manuel Augusto Gama Prazeres - José Manuel Meneres Sampaio Pimentel - António de Almeida Simões - João Alcides de Almeida - António Alexandre Soares Tomé - Abel Pereira Delgado - Salviano Francisco de Sousa - Joaquim José Rodrigues Gonçalves - Fernando Maria Xavier de Figueiredo Brochado Brandão - Cesário Dias Alves - Mário Sereno Cura Mariano - Jorge de Araújo Fernandes Fugas - Alberto Carlos Antunes Ferreira da Silva - José Saraiva - José Isolino Enes Calejo - José Manuel de Oliveira Domingues - Eliseu Rodrigues Figueira Júnior - Mário Augusto Fernandes Afonso - Adelino Barbosa de Almeida - José Alexandre Paiva Mendes Pinto - Alberto Baltazar Coelho - Pedro de Lemos e Sousa Macedo - Flávio Parreira da Trindade Pinto Ferreira - João de Deus Pinheiro Farinha - João Solano Viana - Cláudio César Veiga da Gama Vieira.