Assento
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (STJ):
I - Relatório
1 - João Manuel Severino, José Francisco Severino e mulher, Natália Cunha Paredes Severino, interpuseram recurso ordinário para o tribunal pleno do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, certificado de fl. 6 a fl. 10 v.º e com data de 3 de Maio de 1984. Invocaram, como acórdão-fundamento, o de 15 de Dezembro de 1964, publicado no Boletim do Ministério da Justiça (BMJ), n.º 142, a pp. 369 e segs.
2 - No acórdão recorrido decidiu-se ser o «sócio ostensivo» obrigado, num contrato de conta em participação regulado nos artigos 224.º a 229.º do Código Comercial (CC), «a prestar contas da exploração ao 'sócio oculto', com vista à distribuição de resultados, independentemente da liquidação, em caso de dissolução da conta».
No acórdão-fundamento decidiu-se que o «sócio ostensivo» nunca é obrigado a prestar contas ao «sócio oculto».Foi nos termos expostos que o acórdão sobre a questão preliminar equacionou a questão de direito e a oposição.
3 - Os recorrentes alegaram sobre o fundo da questão e propõem a formulação de um assento no sentido oposto ao do acórdão recorrido, ou seja, nestes termos: «Antes da publicação do Decreto-Lei 231/81, de 28 de Julho, desde que nada tivesse sido pactuado no sentido de tal prestação de contas ser obrigatória, o sócio ostensivo de uma conta em participação não era obrigado a prestar contas ao sócio oculto.»
4 - Os recorridos entendem não existir oposição relevante para a formulação do assento e, no caso de assim não se considerar, propõem uma norma contrária à sugerida pelos recorrentes.
5 - O Mmo. Procurador-Geral-Adjunto também entende não existir a referida oposição, mas para o caso de tal questão não proceder propõe a seguinte redacção para o assento: «No domínio dos artigos 224.º a 229.º do Código Comercial, independentemente de estipulação contratual, o sócio oculto pode, na vigência do contrato, exigir do sócio ostensivo a prestação de contas.»
II - Discussão e fundamentação
A) Existência de oposição relevante.
1 - Nos termos do artigo 766.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), nada impede que o tribunal pleno, nesta altura, venha decidir no sentido contrário ao acórdão que julgou preliminarmente a invocada oposição.
Assim, vejamos se os recorridos e o Ministério Público (MP) têm razão quanto à não oposição dos dois acórdãos.
O argumento invocado para alterar a tese do acórdão de fls. 19 e seguinte é somente este: «Enquanto no caso do acórdão recorrido a conta em participação estava em plena vigência quando os sócios ocultos exigiram que os sócios ostensivos prestassem contas, no aresto que se apresenta com solução oposta (15 de Dezembro de 1964) o contrato de conta em participação fora já dissolvido por decisão judicial.» Apesar de ser exacta a apontada diferença, ela não teve qualquer influência na solução de cada um dos casos. E a melhor forma de comprovar esta afirmação consiste na comparação entre as conclusões de um e do outro dos recursos, uma vez que o tema decidido assenta sobre elas, tal como resulta dos artigos 684.º, n.º 3, e 690.º n.º 1, do CPC.
Desta maneira, quer no acórdão-fundamento quer no acórdão recorrido, as conclusões das alegações dos respectivos recursos resumiram-se, ao fim e ao resto, à seguinte: nem dos artigos 224.º a 229.º do CC, nem de qualquer outra disposição legal, resulta que o sócio ostensivo ou associante de uma conta em participação tenha a obrigação de prestar contas ao outro sócio ou associado, pois não administra bens alheios.
No primeiro acórdão julgou-se procedente esta conclusão e, por tal motivo, revogou-se a decisão da 2.ª instância que sustentava tese jurídica oposta; no segundo acórdão julgou-se improcedente a mesma conclusão e, assim, confirmou-se a tese jurídica que já vinha sendo propugnada pelas instâncias.
2 - Segundo o modelo clássico para a resolução do tema da oposição, é costume exigir-se coincidência no chamado silogismo judiciário: a premissa maior identifica-se com a norma jurídica aplicável; a premissa menor é a situação de facto, e a conclusão a sentença final.
Ora, esta coincidência de silogismo judiciário verifica-se nos dois acórdãos em análise: a premissa maior é constituída pelas mesmas normas (artigos 224.º a 229.º do CC); a premissa menor identifica-se igualmente, na medida em que em ambos os arestos estava em causa a necessidade invocada pelo autor de saber ou conhecer o saldo (positivo ou negativo) de operações de «deve e haver» estabelecidas entre aquele e o réu (no primeiro caso, o requerente expressamente afirmou, desde o início, não pretender a liquidação, mas tão-somente o apuramento do saldo das contas que expressassem as relações de «deve e haver»; no segundo caso, o autor e o réu apenas discutiram se, antes da liquidação de conta, existia a possibilidade de conhecer o saldo), finalmente, a conclusão foi diferente nos dois processos.
3 - Pelo exposto e salvo o merecido respeito, é meramente literal ou formal o argumento do MP quando salienta que no primeiro acórdão a conta em participação estava já dissolvida e que no segundo esta estaria em vigor. Meramente formal ou literal porque «dissolução» não equivale a «extinção». A primeira, ao contrário da segunda, é um efeito e não um facto jurídico. Desde a dissolução até à extinção ou liquidação mantêm-se as relações jurídicas entre os contraentes até se chegar ao apuramento final dos respectivos direitos (ver nota 1) e se no novo diploma regulador do contrato de associação em participação (ver nota 2) foi utilizado o termo extinção em vez de dissolução, isso aconteceu apenas porque, dada a experiência da nossa doutrina e jurisprudência, era de recear que, mantendo-se a segunda expressão, tal concorresse para equiparar este contrato especial com o das sociedades comerciais, o que foi considerado inconveniente (ver nota 3).
Parece, assim, ter ficado demonstrada a inutilidade (para o efeito de os dois acórdãos se considerarem não contraditórios) do facto de no primeiro a conta em participação já estar dissolvida, embora não liquidada, e de no segundo ainda não ter ocorrido aquela dissolução.
4 - O que acaba de ser referido concretiza ou exemplifica o pensamento legislativo quando, substituído em 1961 o CPC de 1939, se alterou no artigo 765.º a expressão «dois acórdãos opostos sobre a mesma questão de direito» para «dois acórdãos que, relativamente à mesma questão fundamental de direito, assentam sobre soluções opostas». Com efeito, o sentido da alteração foi assim explicado: «O Supremo tem recusado a admissão do recurso em casos em que se julga manifesta a oposição dos acórdãos sobre a mesma questão essencial de direito, a pretexto de diferenças de pormenor que nunca será difícil descortinar entre diferentes espécies de facto. Só para vincar expressamente a ideia - que já estava, aliás, no pensamento do legislador de 1939 - de que a oposição, que serve de fundamento ao recurso, existe sempre que os acórdãos marquem posições diferentes em relação à mesma questão fundamental, se deu nova redacção à parte introdutória do artigo. Quer isto dizer que, para apreciar a oposição invocada pelo recorrente, o tribunal tem de separar, nas questões decididas pelos acórdãos, aquilo que é o núcleo essencial do problema jurídico solucionado do que não passa de mero acidente ou pormenor sem relevância para a solução firmada num e noutro.» (ver nota 4)
Por assim ser, não se entende muito bem como é que o ilustre magistrado do MP sustenta ter sido incidental a afirmação feita nos acórdãos sobre a circunstância de a «prestação de contas» ter sido pedida «durante a vigência do contrato». É que, conforme já expôs, é esta a questão essencial ou fundamental decidida de maneira diversa nos dois arestos em causa.
Nestes termos, verificam-se os três pressupostos indispensáveis para se concluir pelo preenchimento do exigido na segunda parte do artigo 763.º, n.º 1, do CPC: nos dois acórdãos é idêntica a situação de facto; em ambos houve expressa resolução de uma questão de direito, e a oposição respeita às decisões e não aos seus fundamentos. Por outro lado, os dois acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação (artigos 224.º a 229.º do CC) em processos diferentes e ninguém pôs em dúvida o trânsito em julgado do acórdão-fundamento. Assim, há que conhecer e decidir sobre o objecto do recurso.
B) A questão a decidir.
1 - Os recorrentes, nas suas alegações de fls. 23 e seguintes, mostram-se surpreendidos por ainda não terem conseguido fazer triunfar a sua tese, ou seja, a inexistência legal, no contrato de conta em participação, da obrigação de prestar contas por parte do chamado sócio ostensivo relativamente ao denominado sócio oculto. Vejamos, pois, a questão com o possível detalhe.
2 - Como se trata de justificar um assento, parece aconselhável tentar esboçar uma construção dogmática, sem esquecer, como é óbvio, o caso concreto a decidir.
No último balanço conhecido e bem fundamentado sobre a controvertida questão da natureza jurídica da conta em participação (ver nota 5) alinharam-se assim as duas correntes: a favor da tese identificadora com o instituto societário pronunciaram-se Adriano Antero, Barbosa de Magalhães, Cunha Gonçalves, Costa Nora, Rocha Souto e alguma jurisprudência; contra esta identificação apontam-se Veiga Beirão, J. M. Barbosa de Magalhães, José Tavares, Galvão Telles, Raul Ventura e alguma jurisprudência. Recentemente, surgiu um importante acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (relatado pelo ilustre conselheiro Oliveira Carvalho), bem como uma desenvolvida anotação de Vaz Serra (ver nota 6). Enquanto o acórdão considera a conta em participação como «um contrato sui generis e não uma sociedade perfeita e regular», já Vaz Serra é de parecer que ela é uma sociedade por satisfazer aos requisitos que o artigo 980.º do CC exige para esse efeito. Este professor, que, a propósito da larga investigação que precedeu o actual CC, tão exaustivamente descreveu o contrato da sociedade civil, afirma que tanto o associante (impropriamente também designado por sócio ostensivo) como o associado (incorrectamente designado por sócio oculto) «se obrigam a contribuir com bens ou serviços (acaso de pouca importância por parte do associado) para o exercício em comum de certa actividade económica, a fim de repartirem os lucros resultantes dessa actividade».
3 - Surpreende como Vaz Serra, tendo lido com tanta atenção o estudo de Raul Ventura (ver nota 7), a ponto de, com todo o rigor que lhe é conhecido, fazer extensas transcrições deste último, não ter considerado a crítica certeira formulada à corrente a que aderiu. Com efeito, Raul Ventura denuncia o vício de raciocínio da tese em referência nestes termos sugestivos:
A nossa doutrina tem tido - ou parece ter tido - apenas em vista hipóteses em que cada uma das partes destina certos bens à associação, mas cai num circulo vicioso quando, por um lado, considera essa destinação juridicamente consistente numa colocação dos bens em comum porque a conta em participação é uma sociedade e, por outro lado, qualifica a conta em participação como sociedade porque há colocação dos bens em comum.
Embora a tese de Vaz Serra não incorra no apontado círculo vicioso, o certo é que tem em vista apenas as hipóteses em que cada uma das partes destina certos bens à associação, o que, perante o nosso enquadramento legal (artigo 224.º do CC), não é exacto. Se o associado efectua uma contribuição, já o mesmo não sucede com o associante, que se limita a interessar aquele nos seus ganhos e perdas. Assim, estes ou estas pertencem ao comerciante que faz interessar neles outra pessoa. Sendo assim, os ganhos e perdas são obtidos por uma qualquer via que permita ao associante considerá-los seus e não se está a ver que esse meio prescinda da titularidade sobre os seus bens patrimoniais (ver nota 8).
Acresce que também falta à conta em participação outro dos requisitos exigidos por lei para a caracterização de um contrato como de sociedade: é o exercício em comum de certa actividade económica, De facto, exercício em comum não é seguramente o exercício de uma actividade por uma só pessoa, embora tenha em vista interesses de uma outra ligada àquela por um negócio jurídico (ver nota 9).
Há ainda quem veja na fundamentação do Assento de 9 de Maio de 1952 («o processo estabelecido nos artigos 1122.º e seguintes do CPC é o meio próprio para a liquidação da conta em participação») a consagração da tese da sociedade, mas após a crítica de Galvão Telles (ver nota 10), já ninguém sustentará esse ponto de vista.
4 - Excluída a tese da sociedade, vejamos agora a sustentada pelo acórdão do Supremo referido no n.º 2: a conta em participação constitui um contrato sui generis e não uma sociedade perfeita e regular, pertencendo os bens que juridicamente lhe estão afectos ao associante ou partícipe, como resulta do seu regime jurídico.
A solução ou caracterização do acórdão aproxima-se mais da tese sustentada por Galvão Telles (ver nota 11) e que assim foi resumida por Raul Ventura: se a conta em participação não é uma sociedade, tem semelhanças com as sociedades e, em particular, com as comerciais, e tanto naquela como nestas há mais de uma pessoa com interesse nos resultados aleatórios de uma actividade mercantil, visto que a todos tocará, em termos que aliás podem variar, uma parte desses resultados.
Do confronto entre as duas teses (sociedade ou negócio jurídico atípico) verifica-se, porém, não existir uma total oposição entre ambas: enquanto os defensores da caracterização como sociedade terminam por dizer tratar-se de uma sociedade de natureza especial, os que perfilham a opinião negativa procuram aplicar à conta em participação, em toda a medida possível, o regime das sociedades. E esta espécie de conciliação ou de «abrandamento dos afeitos» tem um objectivo claro: procurar o preenchimento das lacunas da regulamentação legal da «conta» através dos preceitos reguladores das sociedades. Todavia, como refere Raul Ventura, quer uma quer outra das teses não resolve satisfatoriamente o problema ou, antes, não consegue correctamente o citado objectivo, pois «admitida a especialidade da conta em participação relativamente às sociedades, para cada ponto omisso deveria perguntar-se se a especialidade não repele a analogia e assim se voltará a abrir as questões que se julgava ter fechado» (ver nota 12).
5 - Do exposto, parece mais aconselhável seguir a tese ou a análise de Raul Ventura: face ou perante o conceito português de sociedade (atrás referido), a associação em participação não é uma sociedade. Ora, constituindo este conceito um elemento fixo imposto pelo legislador ao intérprete, aquela «conta» não pode ser sociedade (ver nota 13). Mas, então, o que será? Fundamentalmente e para cobrir todas as modalidades deste negócio jurídico-mercantil, existem três elementos para o caracterizar: a actividade económica de uma pessoa; participação de outra pessoa nos lucros ou perdas daquela actividade, e a estrutura associativa.
Aliás - e isto é fundamental -, estes três elementos respeitam o artigo 224.º do CC, que procura definir a associação em participação. Desta maneira, parece ser a melhor opção a que identifica esta «conta» com um tipo de contrato de carácter associativo. Como é sabido, o contrato associativo contrapõe-se ao contrato comutativo, porque neste, ao contrário daquele, cada uma das partes sabe que, a surgir efeito o contrato, dá e recebe e quanto dá e quanto recebe. No contrato associativo (ou aleatório) «as partes têm em vista uma possibilidade de ganho ou perda, no sentido de possibilidade de só receber ou só dar, ou receber mais ou menos do que se dá» (ver nota 14).
6 - Como já se disse, o problema da caracterização da «conta» tem interesse para o preenchimento das lacunas e a questão a decidir, já que os artigos 224.º a 229.º do CC (hoje revogados pelo Decreto-Lei 231/81, de 28 de Julho) eram omissos sobre o problema a decidir. Se se tivesse optado pela caracterização como sociedade, o problema estava resolvido, na medida em que o artigo 118.º, n.º 4.º, do CC [hoje revogado pelo artigo 3.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei 262/86, de 2 de Setembro, que aprovou o Código das Sociedades Comerciais], é expresso em obrigar todo o sócio a prestar contas justificadas do mandato social. Mas, configurando a «conta» com um contrato associativo, a solução também se afigura igual, pois «tem de prestar contas todo aquele que trata de negócios alheios ou de negócios próprios e alheios» (ver nota 15). Com efeito, todos os preceitos da lei substantiva ou adjectiva que expressamente obrigam à prestação de contas constituem simples aplicação ou revelação de um princípio geral (ver nota 16). Ora, na associação em participação existe igualmente uma gerência que, por definição legal, é exercida em nome próprio mas no interesse comum; o associante (sócio ostensivo) administra mas não representa, porque a lei não dá projecção à «conta» para com terceiros (ver nota 17); o mesmo associante, nas relações externas, não se apresenta como «gerente», mas nas internas o interesse comum serve para aferir a sua actividade. Assim, o «sócio ostensivo» trata efectivamente de negócios próprios e dos do «sócio oculto», ou, antes, administra no interesse de ambos (é evidente que o que se acaba de referir nada tem com a errada opinião de existir um fundo patrimonial comum nas relações internas de associante e associado).7 - O acórdão-fundamento (15 de Dezembro de 1964) argumenta assim:
a) Não se encontra nos artigos 224.º a 229.º do CC ou em qualquer outra disposição legal a determinação de o sócio ostensivo de uma conta em participação ser obrigado a prestar contas;
b) Pelo contrário, o artigo 228.º indica que após a dissolução se segue a liquidação;
c) Admite-se que entre os associados de uma conta em participação possa existir um fundo comum, mas a sua divisão tem de realizar-se no processo de liquidação, como consta dos fundamentos do Assento de 9 de Maio de 1952, e está hoje consagrado legalmente no artigo 1131.º do CPC.
Que dizer?
8 - A primeira parte do primeiro argumento (não regularem o caso os artigos 224.º a 229.º do CC) está certa, mas tudo o resto, salvo o merecido respeito pelos dois ilustres conselheiros que fizeram vencimento, não se pode admitir.
Em primeiro lugar, como se viu no n.º 6, constitui princípio geral que quem trata de negócios alheios é obrigado a prestar contas e ninguém duvidará de o associante, além de tratar do seu interesse, também trata dos interesses daquele que chamou a participar (associado).
Depois, o artigo 228.º do CC não indica o que se refere no dito acórdão. O que impede a interposição de uma fase de prestação de contas? O conceito de dissolução, utilizado para este caso de «conta em participação», tem conotação com o contrato da sociedade, mas não envolve a identificação daquela com este pelos fundamentos já mencionados atrás, acrescentando-se agora ser o argumento profundamente errado, visto partir de «uma simples coincidência de palavras para determinar a natureza jurídica de um instituto» (ver nota 18). Ora, tendo-se demonstrado a não analogia da «conta» com o contrato de sociedade, a dissolução para um contrato associativo (tese defendida) tem significado diverso do utilizado para o direito das sociedades. De qualquer forma, mesmo que se identificasse dissolução com extinção, ficariam ainda a existir relações entre os contraentes da conta em participação para se chegar ao apuramento final dos respectivos direitos (cf. n.º 3 da secção A desta parte II) e por assim ser, o «sócio ostensivo» (associante), como se justifica atrás, fica obrigado a prestar contas ao «sócio oculto» (associado). Desta maneira, também não tem razão, salvo o merecido respeito, Alberto dos Reis (ver nota 19).
Por outro lado, o tema em debate não consiste em saber se à dissolução se segue necessária e exclusivamente a liquidação, tal como se explicou quando se tratou da oposição entre os dois acórdãos (o recorrido e o anterior).
Resta o argumento descrito na alínea c) do n.º 7 anterior: assinale-se, desde já, não existir qualquer fundo comum entre associante e associado. A este respeito nunca se atentou devidamente no artigo 224.º do CC: aqui se diz expressamente que os «ganhos ou perdas» pertencem ao «sócio ostensivo». Consequentemente, a doutrina do mencionado assento, hoje consagrada no artigo 1131.º do CPC, apenas diz o que lá está e nada mais: serem aplicáveis à liquidação da conta em participação, com as necessárias adaptações, as disposições da liquidação em benefício dos sócios. Ora uma destas adaptações tem de ser a resultante da inexistência de património comum. Também aqui se deverá acentuar não ser este o tema a decidir, como deriva do que se refere na parte da oposição motivadora do assento a proferir.
9 - Um outro aspecto importante, aliás arredado pelo douto acórdão recorrido, urge ponderar, qual seja o de saber se o Decreto-Lei 231/81, de 28 de Julho (ver nota 20), pode ser considerado, na parte reguladora do contrato da associação ou participação, como interpretativo da lei antiga (artigos 224.º a 229.º do CC).
Segundo Baptista Machado (ver nota 21), para que uma lei nova seja realmente interpretativa são necessários dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta, ou que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela pudessem chegar sem ultrapassar os limites impostos à interpretação e aplicação da lei.
Ora o diploma de 1981 prescreve expressamente no seu artigo 31.º a obrigação de o «sócio ostensivo» (associante) prestar contas ao «sócio oculto» (associado) e, por outra banda, esta solução não só será controvertida, como vimos, na lei anterior, como também a ela se podia chegar, neste domínio da lei velha, sem romper ou ultrapassar os limites mencionados quanto à realização do direito.
Julga-se, pois, a nova lei como interpretativa do direito anterior e, como tal, integra-se, nos termos do artigo 13.º do CC, na lei interpretada.
III - Decisão
Perante os fundamentos expostos na II parte deste acórdão, nega-se provimento ao recurso, com custas pelos recorrentes, formulando-se o seguinte assento:
No contrato de conta em participação, regulado pelos artigos 224.º a 229.º do CC, o associante (sócio ostensivo) é obrigado a prestar contas ao associado (sócio oculto), salvo havendo convenção em contrário.
(nota 1) Raul Ventura, «Associação em participação», separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.os 189 e 190, pp. 195-196.
(nota 2) Decreto-Lei 231/81, de 28 de Julho.
(nota 3) A. cit. e ob. cit. na nota 1, p. 196.
(nota 4) «Observações», Boletim do Ministério da Justiça n.º 123,p. 192.
(nota 5) A. cit. e ob. cit. na nota 1, pp. 68 e segs.
(nota 6) O acórdão está publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 255, pp. 177 e segs., e na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 110.º, pp. 67 e segs., encontrando-se a anotação nesta última revista a pp. 70 e segs.
(nota 7) Ob. cit. na nota 1.
(nota 8) A. cit. e ob. cit. na nota 1, pp. 76-77.
(nota 9) A. cit. e ob. cit. na nota 1, p. 76.
(nota 10) Revista da Ordem dos Advogados, ano 4.º, n.º 4.º, p. 207, e O Direito, ano 89, 1957, pp. 3 e segs.
(nota 11) «Conta em participação (algumas notas)», in O Direito, ano 89, pp. 3 e segs.
(nota 12) Estudo citado na nota 1, p. 78.
(nota 13) Estudo citado na nota 1, p. 83.
(nota 14) Manuel Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, ed. de 1960, pp. 57-58.
(nota 15) Vaz Serra, Scientia Ivridica, Obrigação de Prestar Contas, t. XVIII, n.os 95 e 96, 1969, p. 115.
(nota 16) A. e est. cits. na nota 15.
(nota 17) A. cit. e ob. cit. na nota 1, p. 168.
(nota 18) A. cit. e ob. cit. na nota 1, p. 195.
(nota 19) Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 81.º, pp. 191 e segs.
(nota 20) A. disposição revogatória deste diploma (artigo 32.º) contém uma gralha manifesta, pois deve ler-se «artigos 224.º a 229.º», e não «artigos 224.º a 227.º».
(nota 21) Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p.247.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 1984. - José Menéres Pimentel - Soares Tomé - Salviano de Sousa - Cesário Dias Alves - Cura Mariano - Fernandes Fugas - Abel Delgado - José Saraiva - José Calejo - António Poças - José Domingues - Pinheiro Farinha (com a declaração de que não considerou o Decreto-Lei 231/81 interpretativo do direito anterior) - Melo Franco - Solano Viana (voto o assento com a declaração de que entendo não dever considerar-se o Decreto-Lei 231/81 como lei interpretativa do direito anterior) - Joaquim Figueiredo - Pedro de Lima Cluny - Silvino Villa Nova - Almeida Ribeiro - Licínio Caseiro - Frederico Batista - Júlio dos Santos - Rodrigues Gonçalves - Manso Preto - Pinto Gomes - Gama Prazeres - Gama Vieira - Almeida Simões - Alcides de Almeida.