Acórdão
Autos de recurso para tribunal pleno, em que são recorrentes José Manuel Serôdio, mulher e outra e recorridos Isilda Emiliano Teodoro Salvador e outros e Joaquim João Salvador e mulher.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
José Manuel Serôdio, Iva Baptista Teixeira Serôdio e a Sociedade Portuguesa de Seguros recorreram para tribunal pleno do Acórdão deste Supremo Tribunal, tirado em reunião conjunta das suas secções, de 8 de Maio de 1974, no processo 64651, por o acharem em contradição sobre as mesmas questões de direito com o Acórdão, também deste Supremo Tribunal e tirado em reunião conjunta das suas secções, de 29 de Outubro de 1971, publicado no Boletim, n.º 210/131.
No acórdão a que alude o artigo 766.º do Código de Processo Civil sobre a questão preliminar, considerou este Supremo Tribunal haver identidade nas situações de facto apreciadas nos dois arestos e caracterizadas como segue: o condutor e, simultaneamente, proprietário do veículo conduzido foi condenado na acção penal em indemnização, não houve pedido cível conjuntamente formulado nessa acção e, consequentemente, a seguradora não foi nela havida como parte. Entrando na apreciação dos dois julgados, concluiu serem contraditórios e tirados no domínio da mesma legislação:
a) Porque num - o de 29 de Outubro de 1971 - se decidiu ser o tribunal cível incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido formulado contra o condutor e proprietário do veículo causador do acidente, enquanto no outro - o recorrido - se decidiu que o tribunal cível é competente em razão da matéria para conhecer, em acção autónoma, do pedido formulado contra o condutor e proprietário do veículo causador do acidente;
b) Porque no primeiro se decidiu que a sentença penal constitui caso julgado entre o lesado e aquele réu, enquanto no segundo se decidiu que a sentença penal não constitui, quanto à indemnização nela arbitrada, caso julgado entre os dois; e
c) Porque no primeiro se decidiu que a seguradora não pode ser condenada em indemnização de montante diferente daquele em que foi condenado o seu segurado, e portanto superior, devendo esse montante considerar-se fixado desde que, pelo menos, a seguradora aceite pagá-lo, ao passo que no segundo se decidiu que também a seguradora pode vir a ser condenada na acção cível em montante diverso daquele que foi fixado na acção penal, naquele montante em que nessa acção vier a ser condenado o seu segurado.
Apreciado o pedido de aclaração do acórdão tirado sobre a questão preliminar, formulado pela recorrida, e produzidas alegações pelas partes, teve vista o Ministério Público.
Pronunciou-se o Exmo. Sr. Procurador da República nos seguintes termos:
a) Que se verifica efectivamente contradição quanto aos dois primeiros pontos: o de saber se, arbitrada ao ofendido no processo penal determinada quantia como «reparação de perdas e danos», por virtude do crime resultante do acidente de viação, se verifica a incompetência em razão da matéria do tribunal cível para conhecer da acção de indemnização posteriormente intentada contra o condutor do veículo causador, agora na qualidade de seu proprietário, e - segundo - o de determinar se a condenação definitiva proferida na acção penal constitui caso julgado quanto à «reparação» arbitrada para o condutor do veículo, ainda que ele seja demandado na acção de indemnização como seu proprietário; e
b) Que não existe idêntica contradição quanto à última questão, pois se é certo que o Acórdão de 8 de Maio de 1974 declarou expressamente não constituir a condenação do condutor caso julgado para a Companhia de Seguros sobre o montante da indemnização, o Acórdão de 29 de Outubro de 1971 não tomou posição no problema, baseando, sim, a condenação da seguradora na natureza do contrato que a liga ao segurado proprietário.
Quanto aos pontos de divergência, pronunciou-se também o Exmo. Sr. Procurador da República em termos que serão apreciados na discussão.
Cumpre apreciar e decidir:
1 - Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 766.º do Código de Processo Civil, o acórdão que reconheça a existência da oposição não impede que o tribunal pleno, ao apreciar o recurso, decida em sentido contrário.
Importa, portanto, começar por analisar de novo a questão preliminar.
Não pode constituir motivo de fundada dúvida a existência de contradição dos julgados quanto aos dois primeiros pontos, decididos no domínio da mesma legislação.
Com efeito, o Acórdão de 29 de Outubro de 1971 decidiu ser o tribunal cível incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido formulado contra o condutor e proprietário do veículo causador do acidente, enquanto o acórdão recorrido decidiu, pelo contrário, que o tribunal cível é competente em razão da matéria para, em acção autónoma, conhecer do pedido formulado contra o condutor e proprietário do veículo causador do acidente; e decidiu o Acórdão de 29 de Outubro de 1971 que a decisão penal quanto à indemnização arbitrada constitui caso julgado entre o lesado e aquele réu, enquanto o acórdão recorrido decidiu que a sentença penal não constitui caso julgado entre o lesado e aquele mesmo réu.
Menos líquida é a questão relativamente ao terceiro ponto.
Quanto a atribuir à decisão penal eficácia de caso julgado contra a seguradora, o Acórdão de 29 de Outubro de 1971 não tomou aberta posição. Escreveu-se nele que, «embora contra o entendimento da Revista dos Tribunais (ano 74/27), se possa entender que tal condenação não constitui caso julgado para a seguradora, o certo é que esta, por virtude do contrato de seguro [...] não pode ser condenada em montante diferente, e, portanto, superior ao fixado para aquele».
No acórdão recorrido também se aceita que a responsabilidade da seguradora se mede pela do segurado:
«O segurador é demandado pelo pagamento da quantia coberta pela apólice para indemnização ao lesado, sendo o acto do segurado e o consequente prejuízo o risco que ele assumiu».
A diferença está em que no Acórdão de 29 de Outubro de 1971, pressupondo o caso julgado formado pela decisão penal entre o segurado e o lesado, se entendeu que não poderia discutir-se novamente, em acção cível, a responsabilidade da seguradora, pelo menos quando esta aceite tal responsabilidade, e no acórdão recorrido, pressupondo diversamente que a decisão penal não constitui caso julgado entre o segurado (condutor e proprietário do veículo causador do acidente) e o lesado, entendeu-se que a responsabilidade da seguradora pode ser livremente discutida na acção cível autónoma.
Assim, a divergência entre os dois arestos, no que concerne a este terceiro ponto, não estará no decidido, mas em certo pressuposto. E o pressuposto em causa - que é o de saber se a sentença penal constitui caso julgado entre o segurado (condutor e proprietário do veículo causador do acidente) e o lesado - constitui o tema do segundo ponto, em que a contradição dos arestos se verifica.
Resumindo e concluindo, decide-se que os Acórdãos de 29 de Outubro de 1971 e recorrido decidiram, no domínio da mesma legislação, opostamente apenas os seguintes pontos:
1.º Se o tribunal cível é competente em razão da matéria para, em acção cível autónoma, conhecer do pedido formulado contra o condutor e proprietário do veículo causador do acidente, no caso de haver ou ter havido contra este acção penal;
2.º Se, quanto à indemnização arbitrada, a sentença penal constitui caso julgado entre o condutor, simultaneamente proprietário do veículo, e o lesado.
2 - Nos termos do artigo 29.º do Código de Processo Penal, o pedido de indemnização por perdas e danos resultantes de um facto punível, por que sejam responsáveis os seus agentes, deve fazer-se no processo em que correr a acção penal e só poderá ser feito separadamente em acção intentada nos tribunais civis nos casos previstos neste Código.
Estes casos são os do § 2.º do artigo 30.º - processo penal por infracção que dependa de participação ou acusação particular sem andamento por seis meses ou mais, sem culpa da parte acusadora, ou processo penal que tenha sido arquivado ou em que o réu tenha sido absolvido - e do artigo 33.º, que respeita à extinção da acção penal antes do julgamento.
É pelos artigos 29.º a 34.º do Código de Processo Penal que o artigo 67.º do Código da Estrada manda regular o exercício da acção cível em conjunto com a acção penal, o que dissipa qualquer possível dúvida sobre a actualidade daqueles preceitos.
Ora, Luís Osório (Código de Processo Penal, I, 323) considerou que a regra do artigo 29.º tinha o precedente do artigo 10.º do Decreto de 18 de Novembro de 1910. E acrescentou: «Desde que o juiz penal no processo crime devia sempre arbitrar ao ofendido a indemnização por perdas e danos, só excepcionalmente ao lesado devia ser permitido recorrer à acção civil.»
Noutro passo (a p. 329), escreveu o mesmo autor:
«Os casos em que se pode recorrer ao processo civil são determinados neste Código, e o presente artigo é muito claro com o emprego do advérbio só , não sendo possível ampliar as excepções.»
Pode não se subscrever o absolutismo desta afirmação. Certos casos, como os referidos no parecer do Ministério Público, apesar de não contemplados nas excepções consignadas no Código de Processo Penal, deverão ter-se por subtraídos ao rigor da regra legal, pois, na verdade, não se poderia compreender que a decisão penal esgotasse a reparação dos danos se estes ainda não existiam ou não eram conhecidos na oportunidade da acusação ou do julgamento penal.
Mas com o reconhecer que alguns desvios são de admitir ao absolutismo da regra do artigo 29.º do Código de Processo Penal, para além dos admitidos no próprio texto da lei, não fica justificado obnubilar o comando que deste preceito resulta e ter como dele subtraídos casos em que os pressupostos coincidem com os que enformam aquele mesmo comando.
Consagrou-se no artigo 29.º o princípio da interdependência ou adesão das acções penal e civil, mas com vincada dependência da acção civil à penal. Importa, para se respeitar minimamente o sentido expresso na lei, ter presente que a regra é da competência do foro criminal para a reparação civil emergente de facto criminoso, como projecção do princípio da suficiência do processo penal expresso no artigo 2.º do mesmo Código. No foro criminal se arbitrará ao lesado indemnização, conforme o disposto nos artigos 342.º e 450.º, n.º 5.º, assegurando-se aos ofendidos a alternativa de requererem que a indemnização se liquide em execução de sentença, nos termos do § 3.º do referido artigo 34.º; e outro termo de alternativa estará no exercício de acção civil conjunta, permitida pelo artigo 67.º do Código da Estrada.
Ora, nem no caso do Acórdão de 29 de Outubro de 1971, nem no caso do acórdão recorrido se verificam pressupostos que justifiquem, excepcionalmente, subtraí-los ao demando do artigo 29.º do Código de Processo Penal, nomeadamente a inexistência, na altura, de danos, ou o seu desconhecimento. O que sucedeu, como na maioria das hipóteses afins, foi que os lesados negligenciaram, nos dois casos, a defesa adequada das suas pretensões no foro criminal, o que não justifica a derrogação da regra de competência tão vincadamente expressa no artigo 29.º do Código de Processo Penal.
O acórdão recorrido, abonando-se com a autoridade do Prof. Figueiredo Dias (conforme estudo publicado no suplemento do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, ano XVI, p. 105), admitiu, para contrariar o anterior asserto, que a indemnização arbitrada como consequência de um facto criminoso constitui efeito penal da condenação, não tendo que coincidir, por isso, com a indemnização civil.
Mas, com o devido respeito, não se reconhece que no nosso direito tenha como cabimento a distinção.
O artigo 34.º do Código de Processo Penal alude expressamente à atribuição de uma quantia «como reparação de perdas e danos», o artigo 450.º, n.º 5.º, do mesmo diploma refere igualmente a «indemnização por perdas e danos» e o artigo 75.º do Código Penal, tratando dos efeitos não penais da condenação, alude, no n.º 3.º, à obrigação «de indemnizar o ofendido do dano causado».
Não se afigura, portanto, fundado atribuir à indemnização fixada na sentença penal, com tal objectivo, uma natureza ou uma finalidade diversas das que caracterizam a indemnização atribuída pela sentença cível para, nos termos do artigo 483.º do Código Civil, indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação do seu direito.
Aliás, a terem tais indemnizações diferente natureza, deveria logicamente concluir-se que a indemnização fixada na sentença penal é independente e autónoma relativamente à indemnização atribuída na sentença cível, quando na realidade, sem qualquer dúvida, o juiz penal não atribuirá indemnização quando houver pedido formulado em acção cível, e se houver indemnização paga por força da sentença penal, descontar-se-ia certamente na quantia que fosse atribuída no foro cível, se esta tivesse maior montante.
No sentido proposto é a doutrina nacional mais expressiva, só ultimamente contrariada pelos Profs. Figueiredo Dias e Castanheira Neves (cf., por necessidade de abreviar, as anotações do artigo 34.º do Código de Processo Penal do Dr. Maia Gonçalves).
Não pode constituir argumento adjuvante que o réu condutor e simultaneamente proprietário do veículo causador dos danos tenha no processo penal a qualidade de infractor e tenha no processo civil a qualidade de proprietário responsável pelo risco. A demonstração está convincentemente feita no parecer do Ministério Público, e será objecto de discussão a propósito da questão do caso julgado.
Todavia, no mesmo bem elaborado parecer sustenta-se que o recurso ao tribunal civil não estará vedado, mas por outras razões:
1.ª Porque o artigo 32.º,§ 3.º, do Código de Processo Penal manda que as provas relativas à indemnização sejam oferecidas nos mesmos prazos em que o devam ser na acção penal, e pode acontecer que o lesado não disponha dessas provas quando o Ministério Público deduza acusação, e até que não tenha conhecimento da dedução da acusação;
2.ª Porque enquanto o direito de indemnização não prescreva não deve coarctar-se ao lesado a possibilidade de formular contra o responsável o respectivo pedido, e para este não pode deixar de considerar-se competente o tribunal civil.
Crê-se que estas razões podem eventualmente ter valia para o direito a constituir, mas que não são eficazes em face do direito de que se dispõe.
Efectivamente, como antes se referiu, a nossa lei adoptou uma vincada expressão de dependência da acção civil em relação à acção penal. A regulamentação estabelecida não se compadece com as considerações de mera razoabilidade que enformam os discutidos argumentos.
Aliás, a questão da disponibilidade e das provas põe-se igualmente para a acção penal e para a acção civil, em ambas sendo igualmente interessado o lesado, no caso de culpa do réu (se numa se apurará o dano, na outra apurar-se-á o facto causal).
Por outro lado, a lei que estabelece o prazo prescricional fixa o tempo máximo abstracto em que o direito pode ser exercido, e esse prazo cederá se alguma circunstância o impuser: para ser indemnizado no caso de danos fundados em factos que são objecto da acção penal, exige-se do lesado um dever de diligência que pode indirectamente sacrificar o prazo de prescrição, e talvez por isso se imponha ao juiz que fixe a indemnização, ainda que o lesado a não tenha requerido.
Para a validade do argumento seria essencial demonstrar - e nem sequer se tentou - que o decurso do prazo prescricional tem para o critério legal maior importância do que a dependência da acção civil em relação à penal ou do que o ressarcimento do lesado na acção penal.
Finalmente, dir-se-á que não parece ter bom fundamento supor critérios divergentes para atribuir indemnização na acção penal e na acção civil.
O objectivo da indemnização é ressarcir danos e tem de estar presente, em termos idênticos, ao juiz penal e ao juiz civil.
De resto, o § 2.º do artigo 34.º do Código de Processo Penal manda observar prudente arbítrio e atender à gravidade da infracção, ao dano moral e material por ela causado, à situação económica e à condição social do ofendido e do infractor, idênticos sendo os factores a que a lei civil, nos artigos 483.º e seguintes, manda atender.
Não se reconhece que deva haver, em matéria de indemnização, um critério penal e um critério civil distintos, porque o primeiro deve considerar em primeira linha a gravidade da infracção. A circunstância de a gravidade da infracção figurar em primeiro lugar na enumeração feita no § 2.º do artigo 34.º do Código de Processo Penal não assume significado especial que do texto possa inferir-se, e bem pode tomar-se como alusão ao grau de culpa, também atendível no direito civil, e aos danos produzidos.
Em tais termos, entende-se que, havendo acção penal, o tribunal cível é absolutamente incompetente para conhecer do pedido de indemnização formulado contra o condutor que seja simultaneamente proprietário do veículo causador do acidente.
3 - O caso julgado constituído pela sentença penal que fixou indemnização ao lesado não foi reconhecido no acórdão recorrido, essencialmente por que a indemnização teria sido fixada no processo criminal em função do ilícito penal ou da culpa e será fixada no processo cível em função do risco pelo condutor na sua qualidade de proprietário, e assim porque «os interesses causais em apreciação são diferentes nas duas hipóteses e a interpretação não pode deixar de dar satisfação a todos esses interesses que determinaram concretamente o comando jurídico a observar».
Ora, afigura-se que a distinção entre o condutor-infractor e o condutor-proprietário não tem bom fundamento.
Já no Acórdão de 29 de Outubro de 1971 se exarou, com toda a objectividade, que «tal alegação é inconsistente, pois que a distinção, para efeitos de responsabilidade, entre as duas qualidades - que a Revista dos Tribunais (ano 77/251) classificou de subtileza, por a qualidade jurídica do condutor e do dono do automóvel ser a mesma nos dois processos, visto em ambas lhe ser imputada a responsabilidade pelo acidente, assim coincidindo a identidade física com a jurídica - não tem apoio na lei. Com efeito, no caso de culpa do condutor, que é o vertente, embora a lei estabeleça a responsabilidade dele e do proprietário pelo pagamento da indemnização devida ao lesado, também confere ao proprietário o direito de regresso pelo total dos danos contra aquele, o que significa ser subsidiária ou de garantia a responsabilidade solidária do proprietário, cujo fim é assegurar ao lesado a efecdutor do seu direito de indemnização, visto o condutor poder não ter uma situação patrimonial que permita tal efectivação (Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, 94-313».
Justificadamente, também o Exmo. Representante do Ministério Público neste Supremo Tribunal repudiou a tese do acórdão recorrido, observando que, sendo o condutor do veículo e o seu proprietário uma e a mesma pessoa, «a responsabilidade do proprietário - precisamente porque ele é simultaneamente o condutor - é uma responsabilidade por facto ilícito e não uma responsabilidade pelo risco. E, porque os elementos a atender na fixação da indemnização são então coincidentes (Código Civil, artigos 494.º e 496.º), não se vê que a mesma pessoa possa ser condenada em indemnizações diferentes».
Na verdade, infundado é admitir conclusão diversa, com base em especulação jurídica que obnubila as realidades. E esquecendo também que a causa de pedir nas acções por acidente de viação é o complexo constuído pelo dano e pelos factos constitutivos da responsabilidade, sejam a culpa ou o risco (cf. Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 2.ª ed., I, 562, Prof. Vaz Serra, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, 103-511, e os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 14 de Maio de 1971, no Boletim 207-155, e de 15 de Outubro de 1971, no Boletim 210-11).
Para o Exmo. Sr. Procurador da República haverá ou não caso julgado constituído pela sentença penal, consoante tenha ou não sido formulado na acção penal o pedido de indemnização. Se não foi formulado um pedido, não haverá a repetição de causas requerida pelo artigo 497.º do Código de Processo Civil.
Não parece, todavia, que a tese esteja de acordo com os princípios enformadores do nosso Código de Processso Penal, nos preceitos interpretandos.
Com efeito, seguramente por influência da escola positiva, pressupôs-se que a reparação do dano causado ao lesado importa também à sociedade, importa ao Estado, como meio de defesa social, e de reposição, do seu equilíbrio. E daí que, estabelecido o princípio da suficiência do processo penal, conforme o disposto no artigo 2.º daquele Código, se pretenda esgotar em tal processo a questão da reparação ao lesado - com a colaboração deste, se for diligente, ou por acção pública (atente-se, a propósito, na vincada expressão conferida ao artigo 29.º pelo advérbio «só»). Muitas são, aliás, as razões que militam para a preferência quase absoluta dada ao foro criminal «além de serem as que sempre influíram no critério do nosso legislador» (cf. o artigo 2373.º do Código Civil de 1867 e o Comentário de Cunha Gonçalves, vol. XII, pp. 644 e segs).
A formulação de um pedido pelo lesado não constitui, assim, pressuposto indispensável de concretização da repetição de causa. Bem poderá até entender-se que a formulação da acusação em processo penal, constituindo pedido de condenação do infractor, leva implícito o pedido de indemnização para o lesado, já que a lei sempre a esta impõe em consequência daquela.
De todo o modo, o que a excepção do caso julgado tem por fim é «evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior», como dispõe o artigo 497.º, n.º 2.º, do Código de Processo Civil. E este é que constituirá o escopo ou critério que permitirá a resolução das dúvidas, como dispunha o § único do artigo 501.º do Código de Processo Civil de 1939 e terá de continuar a entender-se.
Ora, desde que o tribunal pleno tem o dever de atribuir indemnização que repare os danos sofridos pelo lesado, necessariamente lhe compete investigar a extensão desses danos, discuti-los e fixar a reparação segundo os critérios legais.
A coincidência, no fundamental, destes critérios (em processo penal e em processo civil), já antes apontada, e bem assim da causa de pedir e do pedido não pode deixar de traduzir-se, para a acção cível, numa repetição da investigação, da discussão e da decisão, com a consequência de repetir ou de contradizer a decisão proferida na acção penal.
Haverá então uma verdadeira repetição de causas.
Nesta ordem de ideias se pronuncia também o Dr. Pinheiro Farinha (Código de Processo Penal, 2.ª ed., p. 60) ao definir o regime legal nos seguintes termos: a indemnização devida pelo condutor há-de ser fixada no processo crime quanto aí for condenado. Tal indemnização é inalterável quanto a ele em qualquer causa posterior, a que não pode ser chamado como parte.
Concluiu-se, pelo exposto, que a sentença penal constitui caso julgado, quanto ao montante da indemnização, contra o lesado, tenha ou não formulado pedido cível, e contra o condutor, ainda que ele seja também proprietário do veículo causador do acidente.
4 - Considerando o disposto nos artigos 660.º e 288.º do Código de Processo Civil, poderia concluir-se que, optando pela tese da incompetência absoluta do tribunal cível, não haveria já lugar a conhecer da excepção peremptória do caso julgado.
Porém, o artigo 768.º, n.º 3, do mesmo Código impõe a decisão do conflito de jurisprudência «ainda que a resolução do conflito não tenha utilidade alguma para o caso concreto em litígio», o que se entende como prevalência do objectivo de pôr termo ao conflito de jurisprudência sobre o da resolução do caso concreto. Acresce ser de certo modo fundado no caso julgado constituído pela sentença penal que se conclui pela incompetência absoluta do tribunal cível, ou é também por esse fundamento que assim se conclui.
São estas as razões determinantes da discussão da resolução dos dois temas.
5 - Nestes termos, revogando, em parte, o acórdão recorrido, julgam o tribunal comum incompetente em razão da matéria, absolvem o réu José Manuel Serôdio da instância e tiram o seguinte «assento»:
O tribunal cível é incompetente em razão da matéria para a acção de indemnização proposta contra o condutor, e simultaneamente proprietário do veículo, por danos resultantes de acidente de viação, quando na acção penal contra ele movida tenha sido proferida condenação a indemnizar.
A decisão penal constitui caso julgado, quanto à indemnização arbitrada, entre o condutor, ainda que simultaneamente proprietário do veículo, e o lesado.
Custas pelos recorrentes, um terço, e pela recorrida, dois terços.
Lisboa, 28 de Janeiro de 1976. - Eduardo Arala Chaves - Daniel Ferreira - José Garcia da Fonseca - José Montenegro - Amadeu de Carvalho - Eduardo Correia Guedes - José António Fernandes - João Moura - Ferreira da Costa - Miguel Caeiro - Avelino Costa Ferreira Júnior - Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos [vencido. Votei que se firmasse assento no sentido em que decidiu o Acórdão de 8 de Maio de 1974 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 237, p. 201). Entendo que é diferente a qualidade jurídica em que é chamada a mesma pessoa, como autor de um ilícito penal ou como criadora do risco da circulação de um veículo automóvel, sendo diferentes as fontes de que emergem o direito às respectivas indemnizações (culpa e risco); afiguram-se-me, também, diversos os objectos da acção penal e o da acção cível; finalmente, creio que a solução que defendemos asseguraria melhor o interesse dos lesados e evitaria a grave dúvida que a doutrina agora imposta deixa em aberto, relativamente à exigência do montante da indemnização à companhia seguradora, contra a qual não se vê possibilidade, nestes casos, de executar a sentença penal] - Oliveira Carvalho (vencido pelas razões constantes do voto que antecede).
Está conforme.
Supremo Tribunal de Justiça, 23 de Fevereiro de 1976. - O Secretário, António Abrantes Mendes.