Acórdão doutrinário
Processo 60708. - Autos de recurso para tribunal pleno em que são recorrentes Maria do Carmo Serra de Lacerda, Maria Manuela Pery de Linde Limpo de Lacerda, marido e outros e recorridos Mariana Angélica Fialho Pinto de Lacerda e outros.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Maria Manuela Pery de Linde Limpo de Lacerda e marido, Gualdino Leite da Silva Matos, Maria Teresa Pery de Linde Limpo de Lacerda e marido, Francis Josef Barrel, e ainda Fernanda Pery de Linde Limpo Pereira de Lacerda recorreram para o tribunal pleno do acórdão, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 138, p. 337, pelo qual foi concedida a revista pedida por Mariana Angélica Fialho Pinto de Lacerda, Maria Feliciano Pinto de Lacerda e outro na acção de prestação de contas em que estes foram réus e os ora recorrentes e outra foram autores.
Alegaram oposição do acórdão recorrido com o de 9 de Março de 1915, publicado em Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal de Justiça, ano 14.º, p. 103, sobre a solução dada à questão de saber se o mandatário fica constituído em mora e deve juros pelo saldo das suas contas mesmo antes de apurado em juízo o referido saldo.
Aquelas, Mariana Angélica e Maria Feliciana, sem negarem a oposição dos dois acórdãos, contestaram que tivessem sido proferidos no domínio da mesma legislação, e isto porque o actual se fundara essencialmente na solução da questão de saber se a acção de prestação de contas é ou não constitutiva, questão que teria de resolver-se segundo a lei de processo, profundamente modificada depois de 1915.
A secção, porém, mandou seguir o recurso, depois de justificar a sem-razão da alegação das recorridas e de afirmar que havia, efectivamente, a oposição invocada, pois, enquanto o acórdão recorrido decidiu que só após o julgamento das contas e fixação do saldo o mandatário fica em mora e deve pagar juros desse saldo, o de 1915 decidiu que os juros são devidos já antes disso.
Nos termos do artigo 766.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o acórdão da secção não é definitivo, cumprindo rever agora as soluções que ele deu aos referidos problemas, tanto mais que as recorridas não só voltam a suscitar o de os acórdãos não terem sido proferidos no domínio da mesma legislação, mas também negam a existência da oposição entre eles, que de início aceitaram por forma tácita.
Para negarem que os acórdãos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação, aduzem um argumento diferente daquele que invocaram perante a secção: atêm-se a que, depois de 1915, a legislação aplicável foi alterada pelo acrescentamento da disposição hoje contida no n.º 4 do artigo 1016.º do Código de Processo Civil vigente.
É manifesta a falta de razão das recorridas neste ponto.
A referida disposição surgiu, realmente, muito depois de 1915; apareceu, pela primeira vez, no artigo 1015.º, § 2.º, do Código de Processo Civil de 1939. Nada interferiu, todavia, na resolução da questão de direito que se controverte, pois se limitou a estabelecer a exequibilidade imediata do saldo confessado pelo réu, nas contas por ele apresentadas, sem prejuízo da contestação dessas contas e prosseguimento da acção para apurar o saldo verdadeiro.
É óbvio que isso nada tem com o problema de saber se o réu deve debitar-se ou deve ser debitado pelos juros.
Para contestarem que os dois acórdãos se tivessem baseado em soluções opostas da mesma questão de direito, as recorridas dizem, textualmente:
O acórdão recorrido constatou que o devedor do saldo, no caso dos autos, não estava em mora; o acórdão de 1915 constatou que a mora existia no caso submetido à sua apreciação e, mais ainda, que o mandatário retinha em seu poder indevidamente determinada quantia.
Repare-se ainda que enquanto o acórdão de 1915 fundamentou a sua decisão na doutrina de Dias Ferreira - anotação ao artigo 1251.º do Código Civil -, onde expressamente se fala em distracção de fundos em proveito particular, o acórdão recorrido não refere que tenha havido qualquer espécie de retenção indevida de qualquer quantia por parte do seu mandatário.
Por outro lado, no caso destes autos não se trata de quaisquer contas prestadas por mandatário, mas sim prestadas pelos herdeiros deste, hipótese bem diferente daquela que o acórdão de 1915 foi chamado a resolver.
Também aqui não têm razão.
O caso do acórdão de 1915, segundo o respectivo relatório, traduziu-se no seguinte:
Apresentadas as contas pelo réu e embargadas, o tribunal de 1.ª instância julgou procedentes os embargos, mandando acrescentar à receita apresentada «a quantia de 3230$670 rs. em poder do embargado», eliminar duas verbas da despesa e acrescentar uma outra verba à mesma despesa, e concluindo por condenar o dito embargado no saldo assim apurado, mas sem juros.
A Relação confirmou a sentença com algumas alterações e condenou o réu não só no saldo, mas também nos juros deste.
Ainda segundo o acórdão de 1915, a Relação julgou que o embargado «estava constituído em mora desde que, tendo caducado o mandato, não prestou voluntàriamente as contas, e indevidamente retinha em seu poder a referida quantia de 3230$670 rs.; e, firmando-se na opinião emitida por Dias Ferreira no seu comentário ao artigo 1251.º do Código Civil e ainda no que dispõe o artigo 1340.º, entendeu que o embargado era responsável pelo pagamento dos juros pedidos».
Sobre isso decidiu o Supremo:
Não se mostra que com esta decisão se ofendesse o citado artigo 1340.º, que, se por si só não resolve a questão, todavia está de acordo com os princípios gerais de direito, enquanto o artigo 711.º do mesmo código também fornece argumento que justifica a decisão aludida.
É certo, pois, que o acórdão de 1915 confirmou e decidiu estar o mandatário em mora por não ter prestado contas no termo do mandato e reter certa importância que devia entregar à mandante, mas não é menos certo que, no caso do acórdão actual, as recorridas, para quem se transmitiu a obrigação de prestar contas do mandato conferido ao falecido mandatário, não as prestaram voluntàriamente após esse falecimento, e antes retiveram mais de vinte anos, se é que não retêm ainda, os 768779$10, que veio a apurar-se ser o saldo devedor daquele mandatário.
Carece, portanto, de exactidão a alegação das mesmas recorridas de que no caso do acórdão antigo há a mais o elemento da retenção de quantia devida pelo mandatário.
Também não é exacto que o acórdão de 1915 se tenha fundado na doutrina de Dias Ferreira, expressa na anotação ao artigo 1215.º do Código Civil. Nessa doutrina fundou-se o acórdão da Relação, que ele confirmou.
O tribunal de revista apenas disse, como ficou transcrito, que o artigo 1340.º, realmente respeitante à distracção de fundos pelo mandatário, não fora ofendido pela 2.ª instância. Teve até o cuidado de afirmar que este artigo 1340.º, «por si só, não resolve a questão», mas é afloramento de princípios gerais segundo os quais ela podia ser resolvida, ainda com a ajuda do artigo 711.º, expressamente invocado.
Por conseguinte, não se pode dizer que o acórdão de 1915, ao contrário do ora recorrido, se tivesse fundado em que houvera distracção de fundos.
Resta considerar a alegação de que os pressupostos de facto diferem, por no primeiro acórdão se tratar da responsabilidade de procurador originário e no segundo se tratar da responsabilidade de herdeiras dele.
Esta alegação final visa demonstrar que, enquanto no acórdão de 1915 se podia ter por meramente objectiva a iliquidez do saldo, visto que o mandatário devia e podia saber quanto devia, no de 1964 a liquidez não podia deixar-se de ter por subjectiva, dado que as herdeiras não podiam, nem deviam, ter tal conhecimento, tanto mais que uma delas era menor.
O certo, porém, é que as recorridas sucederam ao originário devedor em todos os direitos e obrigações, inclusivamente na obrigação de prestar contas do mandato e pagar o que, por virtude do contrato, ele devia, como expressamente determina o artigo 703.º do Código Civil.
E a menoridade de uma estava suprida pela representação incumbida à outra, sua mãe.
Nem o acórdão de 1964 se fundou no desconhecimento, por parte das rés, dos elementos das contas a prestar. Não consta que o pedido tenha sido contestado com esse fundamento e de presumir não é que o tivesse sido.
Ao decidir, o acórdão recorrido referiu-se sempre e exclusivamente a «mandatário», designando por este nome as pessoas a quem competiam as obrigações decorrentes do mandato. Afirmou que o «mandatário», abstractamente considerado, não está em mora nem deve juros pelo saldo das contas, antes de sentenciada a acção de prestação dessas contas.
Julgou, assim, por duas únicas razões, aliás contraditórias:
1.ª A dívida existe antes de proferida a sentença daquela acção, mas não é líquida senão depois dela, o que impede se inicie a mora antes da mesma sentença, dado que in iliquidis non fit mora;
2.ª A dívida não existe antes da sentença, porque «a prestação de contas não é uma liquidação de crédito já existente; é um acto constitutivo ou gerador do crédito».
A solução, com estes dois únicos fundamentos, está em franca oposição com a do acórdão de 1915.
O recurso era, pois, de seguir.
Passa-se a resolver o conflito jurisprudencial.
Os recorrentes pretendem que ele se decida revogando-se o acórdão recorrido e assentando-se em que «o mandatário é responsável pelos juros respeitantes ao saldo apurado em processo de prestação de contas, a partir da interpelação».
As recorridas contra-alegam, pugnando por que, a julgar-se haver conflito, se assente em que o mandatário não está em mora senão depois de fixado judicialmente o saldo das contas do mandato ou, quando se entenda o contrário, não se dite o assento «de forma que ao direito nele definido corresponde a acção de prestação de contas», se não aplique aos herdeiros do mandatário e se exija, para haver mora, que haja culpa do mandatário.
O Ministério Público adere, sem restrições, à tese dos recorrentes.
Vejamos:
Começar-se-á por apreciar o segundo fundamento do acórdão recorrido, visto que, aceitá-lo como válido, prejudicaria a apreciação do primeiro.
Consoante a transcrição feita atrás, é esse segundo fundamento que a acção de prestação de contas não representa liquidação do saldo, mas antes o constitui e gera.
Louvou-se o aresto na opinião isolada de um grande processualista, que a emitiu acidentalmente e em termos breves, quando tratava de questões de processo.
Processualmente, o crédito derivado de contas não pode, na verdade, ser exigido senão através da acção de prestação, e não pode ser executado, salva a excepção do artigo 1016.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, senão com base na sentença que as julga.
No caso presente, porém, não se trata de uma questão de forma; trata-se de uma questão de fundo. O problema não é de processo; é de direito substantivo.
Ora, substantivamente, o saldo das contas não é gerado pela sentença da acção de prestação; preexiste, porque resulta da receita cobrada e da despesa feita no exercício do mandato, ou seja, cobrada e feita antes de tal sentença.
Esta reporta-se ao pretérito, ao que o mandatário recebeu e ao que ele pagou, em momentos anteriores. Não é constitutiva das verbas atendidas e, portanto, também não constitui o saldo resultante do balanço dessas verbas.
No voto de vencido do acórdão recorrido, infelizmente publicado com graves erros tipográficos, mas em todo o caso aplaudido pelas revistas jurídicas que o anotaram, já se afirmava que a sentença referida não era constitutiva, mas declarativa.
Note-se que se qualificou a sentença e não se classificou a acção. Aliás, classificar esta como declarativa não excluía que fosse constitutiva, dado que, nos termos do artigo 4.º do Código de Processo, as acções constitutivas pertencem à categoria legal das acções declarativas.
A acção, essa, embora seja declarativa, não é constitutiva, segundo a definição da alínea c) do n.º 2 daquele artigo 4.º, mas condenatória, em harmonia com a alínea b) do mesmo número.
Convém dizer isto porque se vê não terem as recorridas interpretado correctamente as palavras do mencionado voto.
E vem igualmente a propósito negar desde já que o artigo 1016.º, n.º 4, do dito Código de Processo leve a concluir, como pretendem as recorridas, não ser a acção de contas uma acção de condenação. Conforme já se fez notar, esse preceito trata apenas da exequibilidade do saldo confessado pelo réu, mesmo antes de julgada a acção.
Isso é até mais um valiosíssimo argumento para concluir que o crédito existe antes de declarado pela sentença, que não é gerado por ela.
Esta preexistência do crédito foi, aliás e contraditòriamente, aceite, como se disse, no outro fundamento do acórdão recorrido que é agora ocasião de apreciar.
Conforme esse outro fundamento, já a acção de prestação de contas é uma liquidação, não constitui o saldo, apenas o torna líquido. O que sucede é que a mora não se inicia antes de tal liquidação, ou seja, antes de transitada a sentença das contas, e isto porque não há mora relativamente a dívidas ilíquidas.
Também esta razão se não considera aceitável.
O princípio in iliquidis non fit mora não está explìcitamente consignado na lei. Pode deduzir-se dela, mas com uma limitação que o acórdão recorrido não respeita e antes ultrapassa - o princípio só é exacto para a iliquidez objectiva; para aquela que deriva de o devedor não estar em condições de saber quanto deve.
Realmente, o artigo 711.º do Código Civil indica que só há lugar a indemnização pela mora quando esta é imputável ao devedor. Se a determinação da quantia devida incumbe a outrem ou depende de circunstâncias eventuais não verificadas, é claro que o atraso no pagamento não é atribuível a quem deve.
A situação é, porém, muito diferente, e até diametralmente oposta, quando a liquidação incumbe ao próprio devedor. Neste caso, já não há razão de lei ou de princípio jurídico para o isentar de culpa por não ter pago o que sabia dever quando foi interpelado.
Na hipótese dos acórdãos em conflito, era ao mandatário, ou a quem lhe sucedeu, que cumpria apresentar as contas, com indicação do respectivo saldo; havia uma dívida que, por força do texto expresso no artigo 1339.º do Código Civil, devia ser tornada líquida pelo próprio devedor. A liquidez era meramente sujectiva; a dívida podia ser ilíquida para toda a gente, menos para esse devedor.
No caso do acórdão recorrido, transmitiu-se para as rés, nos termos categóricos do artigo 703.º do mesmo código, não só a obrigação de pagar a dívida, mas a de a tornar ilíquida, mediante prestação de contas.
Nem o acórdão recorrido se fundou em que tal obrigação não tivesse sido transmitida para elas.
Também esse acórdão se não fundou na agora alegada menoridade de uma das rés, à data da interpelação. Aliás, e como já se disse, tal incapacidade estava suprida pela forma que a lei determina.
Ninguém poderá afirmar, com seriedade, que o citado artigo 703.º deixe de funcionar, ou funcione com restrições, relativamente a sucessores incapazes. A protecção que a lei lhes dispensa não vai além de exigir o referido suprimento.
E também não teve o acórdão recorrido por base que as rés, por serem sucessoras do originário devedor, não estivessem em condições de prestar as contas e assim tornar líquido o saldo, facto que não consta ter sido articulado sequer.
Sendo, por conseguinte, inaceitáveis, quer um, quer outro dos fundamentos discordantes da solução em que assentou o acórdão recorrido, julga-se justa e legal a adoptada pelo acórdão de 1915, que também é a que derivaria do artigo 1164.º do novo Código Civil, cuja disposição é a seguinte:
O mandatário deve pagar ao mandante juros legais correspondentes às quantias que recebeu dele ou por conta dele, a partir do momento em que devia entregar-lhas ou remetê-las, ou aplicá-las segundo as suas instruções.
A disposição não pode considerar-se absolutamente inovadora. A sua regra já resulta do direito actual, como se procurou demonstrar, e já aflora no artigo 1340.º do Código Civil hoje vigente, embora este apenas se reporte à distracção de dinheiro do constituinte, em proveito do mandatário. No fim de contas, a simples retenção do saldo faz presumir desvio em proveito do retentor, sobretudo quando, como no caso do acórdão recorrido, se prolongou por mais de vinte anos e respeitou a muitas centenas de contos.
Por tudo o exposto:
Revoga-se o acórdão recorrido, condenando-se as recorridas a pagar juros legais do saldo das contas a partir da data em que foram citadas para as prestar e, condenando-as ainda nas custas, assenta-se em que:
O mandatário deve juros legais pelo saldo das contas do mandato a partir da data em que é interpelado para as prestar.
Lisboa, 20 de Dezembro de 1966. - Lopes Cardoso - Torres Paulo - H. Dias Freire - Fernando Bernardes de Miranda - Adriano Vera Jardim - J. S. Carvalho Júnior - António Teixeira de Andrade - José Cabral Ribeiro de Almeida - Albuquerque Rocha (com a declaração de que faria, ao assento, o seguinte aditamento: «Falecido o originário obrigado à prestação das contas, sem estar constituído em mora, os seus representantes só respondem - como responderia o seu representado - por juros desde que, interpelados, têm todos os elementos para saber qual era o montante do seu débito») - Gonçalves Pereira [vencido quanto à oposição, pois sustentei que não era a mesma a questão fundamental de direito. Mantenho a doutrina do acórdão recorrido porque, antes da fixação do saldo, não se pode saber quem é o devedor (o mandatário ou o mandante) e a quantia em dívida e, no caso dos autos, nem sequer vem provado pelas instâncias que as recorridas conheciam ou deviam conhecer o saldo ou que houve retardamento culposo no pagamento] - Eduardo Correia Guedes (vencido pelos mesmos fundamentos do voto antecedente e ainda porque, à face do artigo 1340.º do Código Civil, quanto a mim, o mandatário, sem que esteja fixado judicialmente o saldo das contas, só deve juros de mora quando distrair em seu proveito o dinheiro do seu constituinte, isto é, quando haja culpa do mesmo mandatário. E essa culpa em relação a este e a quem o represente nesta acção não se provou nos autos que existisse) - Ludovico da Costa (vencido quanto à oposição e quanto ao fundo, pelos fundamentos dos dois votos que antecedem) - Joaquim de Melo (vencido nos mesmos termos dos votos dos meus Exmos. Colegas que me antecederam) - Francisco Soares (vencido pelas razões indicadas no voto do Exmo. Colega que antecede).
Está conforme.
Secretaria do Supremo Tribunal de Justiça, 10 de Janeiro de 1967. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.