Acórdão doutrinário
Processo 58690. - Autos de revista vindos da Relação de Lisboa. Recorrente para o tribunal pleno, Dr. Sebastião Trindade Pinto. Recorrida, Maria José Gomes.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
O Dr. Sebastião Trindade Pinto, já identificado nos autos, recorreu para o tribunal pleno do acórdão de fl. 564, que julgou improcedente a acção de divórcio que, com fundamento em injúrias graves, moveu contra sua mulher, Maria José Gomes Trindade Pinto.
E alegou: o acórdão recorrido, para julgar a acção improcedente, decidiu ser matéria de direito o conhecimento da gravidade das injúrias.
Esta sua decisão está porém em oposição com o julgado no Acórdão de 17 de Fevereiro de 1950, publicado no Boletim n.º 17, a fl. 343.
Neste último acórdão decidiu-se expressamente que o dito conhecimento era matéria de facto.
Existe assim a oposição alegada, pelo que deve conhecer-se do recurso.
Quanto ao seu merecimento:
No Código de Processo Civil - no actual e no de 1939 - estabelece-se que a matéria de facto fixada pela Relação não pode, regra geral, ser alterada.
E que aos factos fixados o Supremo aplicará definitivamente o regime jurídico que julgar adequado.
Donde tem de concluir-se que os mesmos factos, as circunstâncias em que foram praticados e as determinantes da sua eclosão escapam à competência do tribunal de revista, que tem de limitar-se a aplicar-lhes o devido regime jurídico.
Esta doutrina - que é a do acórdão invocado em oposição - é, sem dúvida, a única legal.
Se assim não for, verificar-se-á a instabilidade do direito aplicável, pois a qualificação das injúrias dependerá de condições meramente subjectivas e cair-se-á no completo arbítrio.
Prova disto é o acórdão recorrido, que imaginou uma discussão e uma exaltação de momento, para retirar às injúrias a gravidade que a Relação lhes atribuiu.
A decisão de haver ou não injúria grave em determinada expressão verbal é puramente matéria de facto.
É um facto que se avalia pelo seu conteúdo, pelo grau de educação da pessoa a quem é dirigido e pela contumácia com que é proferida pelo ofensor.
Fazer dessa gravidade uma questão de direito é criar a incerteza da lei, com todas as agravantes que moral e jurìdicamente comporta.
A recorrida sustenta que o recurso não merece provimento.
O objecto do presente recurso é decidir se a qualidade das injúrias graves é ou não matéria de direito.
Ora, admitindo a lei recurso de revista da decisão da Relação, e tendo este recurso como fundamento a violação da lei substantiva, tem de concluir-se que a referida qualificação é matéria de direito.
Assim o entendem a doutrina e jurisprudência:
A doutrina, como pode ver-se nos estudos dos Profs. Manuel Rodrigues, Barbosa de Magalhães, Alberto dos Reis e Manuel de Andrade;
A jurisprudência, à parte o acórdão em oposição, tem sempre entendido ser essa questão matéria de direito.
O ilustre magistrado do Ministério Público pronuncia-se no sentido de se tratar de questão de direito.
No seu douto parecer, depois de afirmar a evidência da oposição entre os acórdãos recorrido e invocado, salienta que, com clareza e sem hesitação, se manifesta no sentido de ser questão de direito a qualificação das injúrias em injúrias graves, como causa legítima de divórcio.
Para tanto, baseia-se nas disposições legais, na doutrina e na jurisprudência deste Supremo Tribunal.
Nas disposições legais, pois estas ordenam que as partes exponham claramente os factos e as razões de direito;
Que o juiz conheça no saneador da questão, se esta for só de direito ou de direito e facto, se o processo contiver os necessários elementos;
Que o juiz seleccione os factos que interessam à decisão da causa;
Que o colectivo conheça das questões de facto ..., etc.
Se este ordenamento legal derrama - diz - alguma luz para facilitar a distinção, entram na matéria de facto os factos da vida real integradores das relações materiais controvertidas;
Entram no campo jurídico os aspectos da decisão e da interpretação e aplicação das leis àqueles factos.
Nos recursos também se verifica o interesse da mesma distinção.
As decisões em matéria de facto são inalteráveis, e no de revista só pode conhecer-se da violação da lei substantiva e aplicar-se aos factos materiais o regime adequado.
Daqui resulta também que entra no campo das questões de direito o definir-se o direito aplicável a cada caso, a determinação, interpretação e aplicação da norma jurídica e a qualificação jurídica dos factos materiais.
Indica depois o mesmo douto magistrado longa lista de autores que trataram desta questão, de cujas lições extraiu os ensinamentos que sumariou.
E que se resumem no de incluir na matéria de facto apenas os factos materiais ou concretos que têm de ser articulados e quesitados.
Na matéria de direito, tudo o mais, incluindo tudo quanto se obtém através dos raciocínios lógicos construídos com as premissas anteriores formadas pelos factos materiais ou concretos que se articulam e quesitam.
Afirma-se ainda, no mesmo douto parecer, que a unanimidade doutrinal tem tido eco na jurisprudência deste Supremo Tribunal, que, com excepção do acórdão invocado em oposição, sempre tem decidido ser matéria de direito a qualificação das injúrias.
E sustenta que, antes do apuramento da gravidade das injúrias, se há-de apurar se os actos ou factos são injuriosos e enumera os aspectos com influência na sua determinação.
Depois, apurar-se-á se as ditas injúrias são ou não graves e indica os critérios que hão-de presidir a esta qualificação.
Termina o mesmo ilustre magistrado por propor o seguinte assento:
Considerar injúrias graves, para o efeito do n.º 4.º do artigo 4.º do Decreto de 3 de Novembro de 1910, é matéria de direito da competência do Supremo Tribunal de Justiça.
Tudo visto:
I) Embora a secção já tenha decidido haver oposição entre acórdão recorrido e o invocado, o n.º 3 do artigo 766.º do Código de Processo Civil obriga a novamente examinar a questão.
O artigo 764.º deste mencionado código exige, como condições de admissão do recurso para o tribunal pleno, que os acórdãos recorrido e invocado sejam proferidos no domínio da mesma legislação e que, relativamente à mesma questão fundamental de direito, assentem sobre soluções opostas.
Verificam-se estes requisitos no caso vertente.
No acórdão recorrido - Boletim n.º 110, fl. 458 - para julgar a acção improcedente, assentou-se em que era matéria de direito a qualificação das injúrias;
No invocado, de 17 de Fevereiro de 1950 - Boletim n.º 17, fl. 343 -, decidiu-se que essa qualificação era matéria de facto.
Ambos os acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação - o n.º 4.º do artigo 4.º do Decreto de 3 de Novembro de 1910.
Exige ainda o n.º 3 do artigo 763.º do mesmo código que os acórdãos tenham sido proferidos em processos diferentes ou em incidentes diferentes do mesmo processo.
E que o invocado haja transitado, embora se presuma o seu trânsito.
Também estes requisitos se verificam no caso em apreço, pois os acórdãos foram proferidos em processos diferentes e é de presumir que o invocado transitou.
Deve, portanto, considerar-se verificada a oposição e conhecer do recurso, como decidiu a secção.
II) Injúrias são factos ou expressões susceptíveis de ofender a honra e consideração devidas a outrem.
Para efeitos de divórcio ou separação de pessoas e bens, devem esses factos ou expressões constituir a violação por um dos cônjuges dos deveres resultantes do casamento.
Factos - injúrias reais - ou expressões - injúrias verbais - que hão-de ter significação pejorativa em si próprios ou ser-lhes imputada pelas circunstâncias em que foram praticados ou ditas.
A significação dos factos ou expressões é a que lhes atribui a generalidade das pessoas e, relativamente às expressões, está recolhida nos dicionários.
A significação dos factos e das expressões varia no tempo e no espaço.
Há palavras ou gestos que foram ultrajantes e agora não são.
Igualmente pode acontecer que tenham significação pejorativa num lugar e não o tenham noutro.
Pode suceder ainda que os factos ou expressões não tenham em si significação pejorativa, mas que esta resulte das circunstâncias em que foram praticados ou ditas.
E também que as mesmas circunstâncias retirem aos factos ou expressões a significação injuriosa que em si contêm.
Circunstâncias que se referem ao modo, tempo e lugar da prática dos ditos factos e ainda à relação, posição e temperamento do ofensor e ofendido.
Do modo, porque da maneira de proferir as palavras ou executar os gestos pode resultar para estes significação ultrajante, ainda que a não tenham, ou retirar-lha, no caso contrário;
Do tempo, visto o serem praticados numa ou noutra ocasião - sobretudo referida ao estado em que se encontra o ofensor - lhes poder alterar ou modificar a significação;
Do lugar, porque a publicidade nos gestos e expressões pode dar-lhes ou aumentar-lhes a significação ultrajante;
À relação existente entre ofensor e ofendido, porque a situação de facto existente entre ambos tem grande influência na significação da sua conduta;
À posição, visto haver expressões e gestos que são considerados ultrajantes em certas classes e não o são noutras.
III) Os conhecimentos humanos são elaborados pela inteligência, que para o efeito utiliza os elementos - percepções - fornecidos pelos sentidos.
Estes, dada a sua natureza, sòmente fornecem elementos materiais.
A inteligência despe esses elementos da sua materialidade e formula conceitos aplicáveis a todos os casos da mesma espécie, independentemente da sua concreta figuração.
Dado este processo dos conhecimentos humanos, desde logo se poderia concluir que cabe no âmbito da matéria de facto a averiguação dos elementos que podem ser apreendidos pelos sentidos.
E reservar à matéria de direito tudo o que diz respeito à formulação de juízos de valor, elaborados pela inteligência, com base naqueles elementos fornecidos pelos sentidos.
Na verdade, o objecto da prova são os factos, e estes são os acontecimentos externos ou internos susceptíveis de percepção.
E não são objecto de prova os juízos jurídicos, a não ser que eles contenham a subjunção de um acontecimento a um conceito jurídico do conhecimento geral.
Esta questão - matéria de facto e de direito - tem sido das mais versadas na doutrina e na jurisprudência.
Na doutrina, versaram a questão vários ilustres professores das nossas Faculdades de Direito e alguns magistrados.
Dos ensinamentos de todos eles, como nota o douto magistrado do Ministério Público, se colhe a lição de que se confina no âmbito da matéria de facto a averiguação dos factos materiais.
E que se reserva à matéria de direito a sua qualificação e valoração, em face das normas jurídicas aplicáveis.
Doutrina de perfilhar e que a nossa legislação processual consagra.
Em várias das suas disposições se faz nítida distinção entre a actividade processual relacionada com os factos e a relativa à matéria de direito.
Na obrigação da articulação dos factos; nos órgãos competentes para deles conhecer, no poder cognitivo do juiz, etc.
Em via de recurso, preceituando que no de revista sòmente se possa conhecer da violação da lei.
Na jurisprudência - à parte o acórdão invocado em oposição - sempre se tem entendido que a averiguação dos factos materiais, e só essa, constitui matéria de facto.
Definida a noção de factos materiais, como sendo em regra os perceptíveis pelos sentidos, tem de concluir-se que a matéria de facto se confina normalmente na averiguação dos acontecimentos que eles podem apreender.
IV) As injúrias, como se disse, são factos ou expressões a que se atribui significação pejorativa.
Averiguar quais os factos ou expressões que foram praticados ou ditas constitui manifestamente matéria de facto.
Como há factos e expressões que têm significado pejorativo nuns lugares e não o têm noutros e como há circunstâncias que lhes podem dar ou retirar essa significação, é também matéria de facto averiguar essas circunstâncias.
Decidir, ponderadas as circunstâncias averiguadas, se os factos ou expressões são injuriosos é atribuir-lhes essa qualidade em função de um conceito de injúria.
É formular um juízo, conclusão intelectual baseada na adequação de predicado ao sujeito.
Sendo assim, esta definição dos factos ou expressões é um juízo de valor formulado pelo julgador, tendo em atenção os ditos factos e o conceito de injúria que, para o efeito e em face da lei, formulou.
Nìtidamente matéria de direito, pois que para essa formulação do juízo do valor teve de considerar os fins e consequências legais da mesma definição.
Depois desta decisão, isto é, depois de considerar os factos ou expressões como injúrias, tem de definir-se se elas são ou não graves, para o efeito de servirem de fundamento ao divórcio ou separação de pessoas e bens.
A lei - a não ser nos casos dos artigos 34.º e 45.º do Decreto de 3 de Novembro de 1910 - não especifica quais sejam as injúrias graves para o dito efeito, nem estabelece critérios por que se hajam de classificar.
Compete assim ao julgador formular o conceito de gravidade, da gravidade necessária para o efeito de as injúrias poderem fundamentar o divórcio ou a separação.
O casamento - artigo 2.º do Decreto 1 de 25 de Dezembro de 1910 - presume-se perpétuo;
Os cônjuges têm obrigação de viver juntos - n.º 2.º do artigo 38.º do mesmo decreto;
O divórcio ou separação de pessoas e bens dissolve ou interrompe o vínculo conjugal - n.º 2.º do artigo 1.º do Decreto de 3 de Novembro e artigo 1203.º do Código Civil.
Dadas estas noções, a gravidade da injúria deve ser bastante para impossibilitar o cônjuge ofendido de viver junto do ofensor, sem grave detrimento da sua dignidade pessoal, do respeito que deve a si próprio.
Há também circunstâncias que influem na gravidade da injúria.
Circunstâncias que se referem à posição social, cultura, educação, hábitos de linguagem, temperamento, estado físico e mental do ofendido, etc.
Factos e expressões há que, para indivíduos de esmerada educação e cultura, são muito injuriosos e não o são para outros.
E também a reiteração das injúrias, a ocasião em que foram ditas, ter havido ou não provocação do cônjuge ofendido, são circunstâncias que manifestamente influem na sua gravidade.
Definir se as injúrias são ou não graves é igualmente definir, em face de um conceito de gravidade e das circunstâncias de facto averiguadas, se pode ou não atribuir-se-lhes essa qualidade.
É um juízo de valor a formular pelo julgador, baseado nas referidas circunstâncias e no conceito de gravidade, tal como o formulou para o efeito de assim qualificar as injúrias suficientes para fundamentar o divórcio ou separação de pessoas e bens.
Matéria de direito, portanto, já que o julgador tem de ter em atenção na formulação do conceito as consequências legais da sua definição.
Nestes termos, negam provimento ao recurso e condenam o recorrente nas custas.
E formulam o seguinte assento:
Constitui matéria de direito decidir se as injúrias são graves para o efeito de servirem de fundamento do divórcio litigioso.
Lisboa, 3 de Abril de 1963. - Arlindo Martins - José Meneses - F. Toscano Pessoa - Barbosa Viana - Amorim Girão - Bravo Serra - José Osório - Fragoso d'Almeida - Abreu Lobo - Eduardo Coimbra - Cura Mariano - Alberto Toscano.
Está conforme.
Secretaria do Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Abril de 1963. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.