Acórdão doutrinário
Processo 31007. - Autos de recurso extraordinário vindos da Relação de Lisboa. Recorrente, Ministério Público.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, em sessão de tribunal pleno:
No 2.º juízo do tribunal da comarca de Almada foi julgado em processo de polícia correccional, à revelia e com observância do preceituado nos artigos 569.º e 564.º do Código de Processo Penal, o réu Evangelista Simões Lourenço, acusado da autoria do crime de ofensas corporais voluntárias, previsto e punível pelo artigo 360.º, n.º 1, do Código Penal, e não foram escritos os depoimentos por não se haver declarado expressamente que não se prescindia de recurso, em harmonia com o disposto naquele artigo 569.º
Julgada procedente a acusação, foi o réu condenado na pena de 90 dias de prisão, substituída por igual período de multa, e em 15 dias de multa, uma e outra à razão de 10$00 por dia, ou seja na multa global de 1050$00, e no imposto de justiça mínimo.
Efectuada a competente liquidação e prestada pela secretaria a informação de o réu não possuir bens que pudessem ser executados, nem possibilidade de pagar o imposto de justiça, promoveu o magistrado do Ministério Público que esse imposto fosse declarado inconvertível em prisão, nos termos do artigo 169.º, § 3.º, do Código das Custas Judiciais, então em vigor; e que a pena de multa fosse convertida em 105 dias de prisão, e se passassem e lhe fossem entregues os respectivos mandados de captura.
O Mmo. Juiz declarou inconvertível em prisão o imposto de justiça; mas, por o réu ter respondido à revelia, entendeu que o prazo para pagamento das multas em que foi condenado só decorria da notificação da sentença condenatória, nos termos dos artigos 564.º, § 5.º, n.º 2.º, e 639.º, § 2.º, do Código de Processo Penal, não havendo lugar a conversão em prisão antes de o pagamento se não mostrar feito no decêndio posterior àquela data - citado artigo 639.º, § 10.º; a execução imediata, a que se refere o artigo 579.º do mesmo código, é apenas execução patrimonial. Por estas razões, indeferiu a conversão em prisão das multas em que o réu foi condenado.
Desse despacho recorreu o Ministério Público, mas o Tribunal da Relação de Lisboa, pelo acórdão de fl. 119, proferido em 16 de Março de 1962, confirmou-o, negando assim provimento ao recurso.
O Exmo. Procurador da República junto dessa Relação veio então recorrer extraordinàriamente para este Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 669.º do já referido código, por desse órgão não poder interpor-se recurso ordinário - n.º 6.º do artigo 646.º do mesmo diploma -, com o fundamento de estar em oposição com o Acórdão de 12 de Novembro de 1958, proferido por essa mesma Relação no recurso penal n.º 5876, 2.ª secção, de que juntou cópia, sobre a mesma matéria de direito, ou seja a aplicação do § 2.º do já citado artigo 639.º aos processos de polícia correccional em que a sentença, proferida à revelia, é definitiva por se haver prescindido de recurso.
Admitido o recurso, foi pelo acórdão de fl. 138 reconhecida a evidente oposição entre os dois acórdãos sobre a mesma matéria de direito.
Seguindo o recurso os seus termos, e por o magistrado recorrente já haver alegado no sentido de demonstrar a existência de oposição entre os dois acórdãos, apresentou o Exmo. Ajudante do Procurador-Geral da República junto da secção criminal deste Supremo Tribunal o douto parecer de fl. 143 sobre o objecto do recurso, no qual sustenta dever solucionar-se o conflito de jurisprudência no sentido de a norma do citado § 2.º do artigo 639.º não ser aplicável aos processos de polícia correccional em que a sentença proferida à revelia é definitiva por se haver prescindido de recurso.
Tudo visto e ponderado:
É de presumir o trânsito em julgado do Acórdão de 12 de Novembro de 1958, junto por cópia a fl. 125 e invocado em oposição - n.º 4.º do artigo 763.º do Código de Processo Civil; tanto ele como o acórdão recorrido foram proferidos em processos diferentes e no domínio da mesma legislação; e não era possível interpor recurso ordinário para este Supremo Tribunal de Justiça, por se tratar de processo de polícia correccional - n.º 6.º do artigo 646.º do Código de Processo Penal.
A oposição entre os dois acórdãos, sobre a mesma matéria de direito, é manifesta.
Esta consiste, como já se referiu, em saber se o preceito do § 2.º do artigo 639.º desse código é aplicável ao réu julgado à revelia em processo de polícia correccional quando se haja prescindido de recurso, só podendo, consequentemente, converter-se em prisão a multa em que foi condenado se, decorrido o decêndio após a notificação ao réu da sentença proferida, o pagamento dessa multa não se mostrar efectuado; ou se, sendo o réu julgado naquelas circunstâncias, é inaplicável o aludido preceito, podendo, por isso, fazer-se a imediata conversão da multa em prisão, independentemente da notificação da sentença proferida.
Enquanto no acórdão recorrido se decidiu no sentido da aplicação do aludido preceito, no invocado em oposição julgou-se não ser o mesmo aplicável.
É essa a questão de direito diversamente decidida nos dois acórdãos, cumprindo, por isso, a este Supremo Tribunal fixar sobre ela a jurisprudência.
No julgamento dos processos de réus ausentes, se a sentença é absolutória, considera-se geralmente a decisão como definitiva, pois que se o réu foi absolvido estando ausente, por maioria de razão o seria se estivesse presente.
Mas, quando a sentença é condenatória, em regra não deverá ser definitiva, uma vez que o réu, comparecendo, pode destruir a prova em que se alicerçou a condenação, explicando e contrariando os factos que lhe eram imputados.
Por isso, a lei concede-lhe dois meios para reagir contra a decisão condenatória: a faculdade de recorrer ou de requerer novo julgamento.
Este meio, porém, é limitado ao processo de querela e no caso de condenação em pena maior - § 3.º do artigo 571.º do Código de Processo Penal, na redacção do Decreto-Lei 42756, de 23 de Dezembro de 1959.
O legislador quis evitar, o mais possível, a instabilidade dos julgados, que resultaria da faculdade ampla de requerer novo julgamento; de resto, isso redundaria na inutilidade do primeiro julgamento quando a decisão fosse condenatória.
De igual modo, a faculdade de recorrer não se justifica quando o próprio defensor do réu dela prescinda.
Assim, o legislador na alteração feita pelo Decreto 22627, de 6 de Junho de 1933, ao primitivo artigo 565.º do Código de Processo Penal, ao tornar extensivo o Julgamento à revelia também aos acusados em processo de polícia correccional - que esse código não previa - preceituou que os depoimentos só seriam escritos quando o representante da acusação ou da defesa declarasse expressamente que não prescindia de recurso.
A sentença era, por isso, definitiva se essa declaração não fosse feita.
Mais tarde, o Decreto-Lei 42756, de 23 de Dezembro de 1959, dando nova redacção ao artigo 569.º do referido código, manteve o julgamento à revelia no aludido processo e com a mencionada particularidade.
Foram os expedientes de toda a ordem, usados pelos acusados nessa forma de processo, para se subtraírem ao julgamento, que levaram o legislador a adoptar também em relação ao processo de polícia correccional o julgamento à revelia, consoante se mostra dos relatórios desses diplomas legais.
Ora, o § 2.º do artigo 639.º do Código de Processo Penal não sofreu ainda qualquer alteração, mantendo por isso a redacção primitiva, que lhe foi dada quando não havia julgamentos à revelia no processo de polícia correccional.
E quando neste a sentença é definitiva, por não se declarar que não se prescinde de recurso, não se descortina qualquer razão para que se faça a notificação a que esse preceito alude.
Seria uma diligência sem sentido útil, que contrariaria o princípio geral, formulado no artigo 137.º do Código de Processo Civil, em harmonia com o qual não é lícito realizar no processo actos inúteis.
Sòmente serviria para os réus, usando das mesmas habilidades com que procuravam evitar o julgamento, diligenciarem subtrair-se à notificação.
E nem se pretenda que, procedendo-se à conversão do imposto de justiça ou da multa em prisão, independentemente da notificação da sentença ao réu, ficam diminuídas as garantias deste.
Assiste-lhe o direito de efectuar o pagamento, tanto antes como depois da prisão, evitando-a ou fazendo-a cessar.
De resto, o artigo 579.º do Código de Processo Penal preceitua que a sentença condenatória proferida à revelia contra réus ausentes executar-se-á desde logo quanto à multa, imposto de justiça, indemnização e quaisquer outras quantias em que o réu for condenado.
Não se exclui, na execução do imposto de justiça e da multa, a sua conversão em prisão.
E desde que a lei não faz essa restrição, não é lícito ao intérprete fazê-la, designadamente quando há razões para que assim se não proceda, como sucede quando a sentença é definitiva.
O confronto desse preceito com os do artigo 580.º e § 10.º do artigo 639.º não conduz necessàriamente à conclusão de se tratar ùnicamente de execução patrimonial.
Acresce que o artigo 569.º manda observar no julgamento à revelia dos acusados em processo de polícia correccional o disposto no artigo 564.º e seus parágrafos; ora, no n.º 2.º do § 5.º deste artigo prescreve-se que «a sentença será lida pùblicamente em audiência e será notificada ao réu, logo que seja preso ou se apresente voluntàriamente em juízo».
Deste modo, a notificação da sentença ao réu, mesmo em processo de polícia correccional, é feita posteriormente à sua prisão ou apresentação voluntária em juízo.
A lei não prevê, em nenhum dos casos de julgamento à revelia, a notificação do réu antes da sua prisão ou apresentação em juízo. Por isso, na interpretação do estabelecido no § 2.º do artigo 639.º, há que atender ao que se dispõe no n.º 2.º do § 5.º do artigo 564.º, sob pena de ficarem esses preceitos em colisão.
E este último preceito, aplicável em todas as formas de processo, é expresso quanto ao momento em que deve ser efectuada a notificação da sentença ao réu.
No sentido que fica exposto, já havia opinado o conselheiro Luís Osório - Comentário ao Código de Processo Penal Português, vol. 6.º, pp. 280 e 281 -, interpretando o § 2.º do artigo 639.º de forma a permitir a conversão em prisão quando a sentença seja definitiva ou transitada em julgado.
A diligência da notificação só deve ser feita quando tenha algum significado e alguma utilidade.
Não se compreenderia que a execução de uma sentença legalmente definitiva devesse aguardar a diligência de notificação, pràticamente vazia de sentido e de conteúdo útil.
O conflito de jurisprudência tem, por isso, de solucionar-se considerando inaplicável o preceito do § 2.º do artigo 639.º do Código de Processo Penal.
Nessa conformidade se formula o seguinte assento:
O disposto na parte final do primeiro período do § 2.º do artigo 639.º do Código de Processo Penal não é aplicável ao réu ausente julgado em processo de polícia correccional, quando se tenha prescindido de recurso.
Não é devido imposto.
Lisboa, 3 de Abril de 1963. - Eduardo Coimbra - F. Toscano Pessoa - Barbosa Viana - Amorim Girão - Bravo Serra - José Osório - Cura Mariano - Alberto Toscano - Arlindo Martins - José Meneses - Fragoso de Almeida - Abreu Lobo.
Está conforme.
Secretaria do Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Abril de 1963. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.