Assento de 28 de Novembro de 1969
Assento de 28 de Novembro de 1969, proferido nos autos de recurso para tribunal pleno com o n.º 62592, em que são recorrente, Papeleira de S. Paio de Oleiros, Lda., e recorridos, Valentim Francisco do Couto e mulher.
Acordam em tribunal pleno no Supremo Tribunal de Justiça:
A Papeleira de S. Paio de Oleiros, Lda., nos termos do artigo 763.º do Código de Processo Civil, recorre para o tribunal pleno do Acórdão deste Supremo de 19 de Julho de 1968, certificado a fls. 6 e seguintes e publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 179, pp.
170 e seguintes, proferido na revista em que ficou vencida na acção que lhe moveram
Valentim Francisco do Couto e mulher.
Para esse efeito alegou que este acórdão, sobre a mesma questão fundamental de direito, está em oposição com a solução emitida no Acórdão deste mesmo Supremo de 1 de Julho de 1966, transitado em julgado, publicado no citado Boletim, n.º 159, a fls. 419 e 420; e que ambos foram proferidos no domínio da mesma legislação - Código Civil de 1867.O caso contemplado no acórdão recorrido visava a reivindicação de um prédio rústico adquirido por compra titulada por escritura pública e inscrito na respectiva Conservatório do Registo Predial a favor do comprador Valentim, ocupado pela ré recorrente sem título legítimo. Este prédio, após a aquisição, foi afectado com consentimento do respectivo proprietário Valentim à exploração da sociedade Couto & Irmãos, constituída por aquele Valentim e seus irmãos, como se a esta pertencesse, conjuntamente com outro prédio rústico já adquirido pela citada sociedade, e nos dois prédios foram construídas edificações. Pela dissolução da sociedade Couto & Irmãos os prédios urbanos edificados nos dois referidos terrenos foram adjudicados ao sócio Manuel, irmão do Valentim.
Posteriormente o Manuel constituiu com os filhos a sociedade Francisco do Couto, Lda., que passou a exercer a sua indústria e comércio nos mesmos dois prédios. Presentemente esses dois prédios estão integrados no activo da sociedade recorrente - Papeleira de S.
Paio de Oleiros, Lda.
O acórdão recorrido reconheceu: que o autor Valentim ainda conserva o domínio do seu prédio rústico que comprou, não obstante as andanças que tem passado; que se operou uma acessão por indústria do homem, prevista no artigo 2289.º do Código Civil de 1867, proveniente de incorporação das edificações no prédio rústico comprado pelo Valentim;que esta acessão imobiliária só seria relevante para o dono das edificações, nos termos do artigo 2306.º daquele Código, se o terreno alheio onde foram feitas fosse possuído em próprio nome, com boa fé e justo título; que não há justo título por falta de título válido de aquisição do prédio em que o transmitente não é o titular do direito que transmitiu; nem boa fé, dado que a sociedade sabia que o terreno era do Valentim.
No acórdão opositor ventilou-se a hipótese seguinte: pedia-se a entrega de uma parcela de terreno vendida sem escritura pública onde os compradores construíram um prédio urbano com consentimento e aprovação dos vendedores.
Este acórdão reconheceu existir a favor dos demandados compradores a acessão imobiliária, nos termos do artigo 2306.º do Código Civil de 1867, porque teve por justo título a autorização da construção do prédio urbano e a boa fé derivou da autorização dada para a construção e do convencimento da sua validade.
O acórdão da secção de fls. 20 e 21 decidiu que existe a oposição que serve de fundamento legal ao recurso entre os dois julgados.
O reconhecimento da existência da oposição de julgados não impede que este tribunal pleno, ao apreciar o recurso, decida em sentido contrário (n.º 3 do artigo 766.º do Código
de Processo Civil).
Ambos os acórdãos se pronunciaram sobre uma situação de facto semelhante, qual foi a da construção urbana em prédio rústico alheio, e emitiram pronúncia sobre a mesma questão fundamental de direito, sobre a figura jurídica da acessão imobiliária contemplada no artigo 2306.º do Código Civil de 1867. Só que prestaram entendimentos opostos aos conceitos essenciais daquela figura de justo título e de boa fé, como já evidenciou oacórdão da secção.
Assim, o acórdão recorrido entendeu que o justo título implica um título válido de aquisição do prédio em que o transmitente não é titular do direito que transmitiu, quando o acórdão opositor teve como justo título a própria concessão de autorização do vendedor para a edificação. No concernente a boa fé, o acórdão recorrido entendeu que ela procede de título, cujos vícios não são conhecidos do possuidor, mas o acórdão opositor extraiu-a da autorização da construção do prédio e do convencimento da sua validade.O digno agente do Ministério Público junto deste Supremo, no seu parecer de fls. 41 e seguintes, pronuncia-se pela existência de oposição entre os julgados, pela confirmação do acórdão recorrido e emissão de assento nos termos seguintes:
É justo título, para o efeito do artigo 2306.º do Código Civil de 1867, aquele que obedece aos requisitos da segunda parte do artigo 518.º do mesmo diploma.
É, pois, manifesta a oposição entre os julgados proferidos no domínio da mesma legislação - Código Civil de 1867 - sobre a mesma questão fundamental de direito, pelo que importa decidir o conflito de jurisprudência que eles suscitaram.
Vejamos:
Os acórdãos em apreço submeteram ao comando do corpo do artigo 2306.º do Código Civil de 1867 a situação de facto semelhante neles desenhada e derivada da construção deum prédio urbano em terreno alheio.
A colisão dos julgados opera-se exclusivamente no domínio das características enunciadas no corpo do artigo 2306.º citado da posse do terreno, onde foram feitas as construções.A solução do conflito jurisprudencial terá uma repercussão deveras limitada, em virtude de vigorar o Código Civil de 1966, que, na acessão imobiliária, oferece uma regulamentação bastante diferente da contida no Código Civil anterior.
Presentemente quem construa obra, sementeira ou plantação em terreno alheio, desconhecendo que o terreno era alheio ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno está de boa fé (n.º 4 do artigo 1340.º do Código Civil de 1966).
O Código actual é mais tolerante com o conceito de boa fé e não exige que o autor da acessão seja possuidor de boa fé do prédio alheio.
O acórdão opositor aceitou a existência legal da acessão imobiliária do prédio urbano construído pelo comprador do terreno - que o pagou, e até a respectiva sisa -, sem que, contudo, o negócio tivesse sido titulado pela indispensável escritura pública, através do consentimento para construir prestado pelo vendedor.
Essa autorização seria eficaz, à luz do artigo 1340.º do Código Civil de 1966, se fosse de aplicar, mas não é aplicável, por a tal se opor o n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º
47344, que o aprovou.
O Código Civil em vigor moldou de forma bastante diferente da do Código Civil anterior osrequisitos legais da acessão imobiliária.
O que importa, porém, é o regime do Código Civil de 1867, pois é, segundo ele, que o conflito da jurisprudência terá de ser decidido.
O corpo do artigo 2306.º preceitua:
Se o dono de quaisquer materiais, sementes ou plantas tiver feito em terreno alheio obras, sementeiras ou plantações, possuindo, aliás, esse terreno em próprio nome, com boa fé e justo título, observar-se-á o seguinte: ...Em face deste preceito, para que haja acessão é indispensável que o autor da acessão possua o terreno em próprio nome, com boa fé e justo título.
A acessão imobiliária só é possível quando o autor das obras, sementeiras ou plantações é não só possuidor em nome próprio, mas até proprietário aparente, como a exigência do
justo título mostra.
A questão da acessão imobiliária só surge quando o proprietário reivindica o seu terreno.Daqui resulta que a posse tem de ser titulada, isto é, tem de fundar-se em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente do direito do transmitente, como impõe o artigo 518.º do Código Civil de 1867, e deve o possuidor ignorar os vícios do título de aquisição para estar de boa fé, como ressalta do artigo 476.º do mesmo Código.
Sempre que, exigindo a lei uma forma solene, esta não exista, não há justo título de
aquisição da propriedade.
Justo título quer dizer título capaz, eficiente, em face da lei, para transmitir a propriedade de bens imobiliários. Esse título é a escritura pública que pode transmitir a propriedade através de vários negócios jurídicos, tais como: compra, dação em pagamento, doação,permuta, etc.
Contudo, como é sabido, para que o direito de propriedade se transmita não basta que o adquirente tenha a seu favor justo título, é necessário, além disso, que o transmitente fosse proprietário, pela regra nemo plus alio transferre potest quam ipse habet.Para a transmissão da posse a lei não exige a escritura pública.
A boa fé supõe o justo título, como inculca o artigo 406.º citado, e este não existe no caso
de contrato nulo por falta de forma.
Por isso o executor da obra, sementeira ou plantação age na qualidade de proprietário aparente, estando a possuir o terreno como seu, por tê-lo adquirido a título oneroso ougratuito a non domino.
Acresce que o artigo 2306.º refere que o dono da obra esteja «possuindo, aliás, esse terreno em próprio nome, com boa fé e justo título».A exegese do texto reporta-se ao início da posse do terreno com suporte na existência do justo título de aquisição e nunca protege uma posição posterior, alheia e indiferente ao justo título, fundada na autorização para as obras.
Tem sido esta, de longe, a orientação dominante na doutrina e na jurisprudência.
O acórdão recorrido, à sombra dos conceitos referidos exarados no corpo do artigo 2306.º do Código Civil de 1867, afastou a existência da acessão imobiliária, uma vez que se não verificavam dois dos seus requisitos: o do justo título da aquisição do terreno por parte da sociedade Couto & Irmãos, onde esta fez a construção urbana e o da boa fé, porque esta sociedade sabia que o terreno era propriedade do sócio Valentim.
Pelo exposto, negam provimento ao recurso, com custas a cargo da recorrente, e lavram o
assento seguinte:
Para os feitos do artigo 2306.º do Código Civil de 1867, os conceitos de boa fé e justo título são os definidos, respectivamente, nos artigos 476.º e 518.º do mesmo diploma.Lisboa, 28 de Novembro de 1969. - Torres Paulo - Ludovico da Costa - Fernando Bernardes de Miranda - Oliveira Carvalho - Adriano Vera Jardim - Adriano de Campos Carvalho - José Manuel da Cunha Ferreira - Rui Guimarães - António Pedro Sameiro - Albuquerque Rocha - Santos Carvalho Júnior (vencido pelas razões constantes do Acórdão deste Supremo Tribunal de 27 de Julho de 1962, publicado no Boletim, n.º 119, p.
461, segundo o qual não estava regulado expressamente na lei o caso de obras feitas com o consentimento do proprietário, devendo aplicar-se-lhe por analogia o disposto no artigo 2306.º) - Eduardo Correia Guedes (vencido pelos fundamentos de voto do conselheiro Santos Carvalho) - Alberto Nogueira (vencido pelas razões constantes das declarações de
voto do conselheiro Santos Carvalho).
Está conforme.
Secretaria do Supremo Tribunal de Justiça, 16 de Dezembro de 1969. - O Secretário,Joaquim Múrias de Freitas.