Mensagem do Presidente da República
Mensagem de renúncia do general António de Spínola ao cargo de Presidente
da República, em 30 de Setembro de 1974.
A crescente deterioração do clima social, económico e político, ultimamente mais acentuado, tem constituído, para mim, motivo da mais funda preocupação. Sobre as origens da situação a que chegámos me tenho debruçado num esforço de análise que sempre se orientou pela pureza dos princípios que enformaram o espírito do 25 de Abril. Esforço de análise a que me obrigaram a minha consciência de português e a minha responsabilidade de Presidente da República, pois assumi perante o País o compromisso de responder pela restauração das liberdades cívicas e pela construção de uma democracia institucional autêntica; e nessa tarefa me empenhei com sinceridade inequívoca e férrea determinação.
É dessa análise e da posição que assumo, com base nas conclusões alcançadas, que desejo informar o Conselho de Estado e o País, para que sobre elas se não teçam interpretações inexactas, nem se deturpe a honestidade das intenções que lhes presidiram.
Começarei por afirmar que não é de hoje nem de ontem a minha adesão ao espírito do Movimento das Forças Armadas. Desde a nomeação para o cargo de Governador da Guiné que sempre expus frontalmente, primeiro sem publicidade por dever de ética e depois publicamente, a minha total oposição ao ideário e aos métodos do velho regime. E isso sem rodeios nem eufemismos, antes falando a rude linguagem da verdade que, como soldado e como combatente, jamais deixei de utilizar.
Estive com o Movimento desde a primeira hora, pelo que conheço perfeitamente o seu espírito e as suas intenções, a que aderi com uma sinceridade de que ninguém ousará duvidar. E são exactamente esse conhecimento e essa identificação que me conferem irrecusável autoridade moral para concluir que a origem da situação a que chegámos reside na desvirtuação do ideário do Movimento. Encontro-me perante a evidência de o Programa do Movimento das Forças Armadas estar a evoluir no quadro de uma acção política tendente, afinal, à sua própria neutralização, em verdadeiro clima de inversão de uma moral cívica, à margem da qual se torna impossível a prática da democracia e da liberdade. Inversão em que, por fidelidade ao espírito do Movimento e pelo respeito aos compromissos que assumi ao aceitar este cargo, não devo nem posso participar. Dois ou três pontos bastarão para o justificar.
Esteve no espírito do Movimento das Forças Armadas definir, concreta e objectivamente, uma política ultramarina que conduzisse à paz entre os Portugueses de todas as raças e credos, objectivo que o anterior regime se revelou totalmente incapaz de atingir. Essa política definimo-la nós, ao estabelecer inequivocamente e com geral aceitação os princípios programáticos do processo de descolonização que o Mundo e os homens de sã consciência reconheceram válidos. Toda essa política e o consequente processo de descolonização foram deturpados, numa intenção deliberada de os substituir por medidas antidemocráticas e lesivas dos reais interesses das populações africanas.
Esteve igualmente no espírito do Movimento das Forças Armadas promover a harmonia entre todos os credos políticos; mas essa harmonia jamais será possível quando, por um lado, os chefes declarados de alguns partidos políticos fazem apelo ao bom senso, e por outro lado os respectivos grupos de acção enveredam pela via da coacção psicológica através dos grandes meios de informação, e até da violência, em flagrante negação da liberdade e a pretexto da insinuação caluniosa logo lançada sobre os seus oponentes.
Esteve no espírito do Movimento das Forças Armadas reservar à Nação, através das suas legítimas instituições democráticas, a definição do perfil da sociedade que os Portugueses desejam construir. Mas esse princípio encontra-se claramente ameaçado, se não já de todo comprometido, pela sistemática cedência perante a realização larvar das reformas de fundo, que dia a dia se vão operando face ao clima vigente de ausência de lei. Daí resulta que, no fim deste longo período de anomalia, a Nação Portuguesa se encontrará perante situações irreversíveis, fortemente limitativas do estatuto constitucional que vier a ser escolhido em consenso popular. Tais situações estão desse modo retirando ao Povo a sua real capacidade para o exercício da soberania.
O Programa do Movimento previa também que a substituição do regime deposto teria de processar-se sem convulsões internas que afectassem a paz, o progresso e o bem-estar do povo português. A situação é, infelizmente, bem diferente. Forjam-se reivindicações, postas nas mãos dos trabalhadores por burgueses frustrados do velho regime, subitamente titulados também de trabalhadores. A paz, o progresso e o bem-estar da Nação são comprometidos pela crise económica para que caminhamos aceleradamente, pelo desemprego, pela inflação incontrolada, pela quebra no comércio, pela retracção dos investimentos e pela ineficácia do Poder Central. Isto porque quanto se vem fazendo à sombra do Programa do Movimento das Forças Armadas pouco menos é do que o assalto aos meios de produção; é a reivindicação com base em decisões tomadas a níveis sem competência nem legitimidade para o fazer; enfim, é a inversão das estruturas, à margem da sanção democrática do Povo.
Anulam-se as leis do velho regime antes que novas leis regulem a vida política, social e económica do País, e mesmo algumas das leis já publicadas são impunemente escarnecidas. Neste clima generalizado de anarquia, em que cada um dita a sua própria lei, a crise e o caos são inevitáveis, em flagrante contradição com os propósitos do Movimento. Por várias vezes chamei a atenção do País para as consequências a que tal estado de coisas acabaria por conduzir; e após profunda e demorada reflexão tomei a nítida consciência de não estarmos a caminhar para o País novo que os Portugueses desejam construir.
Conclui assim ser inviável a construção da democracia sobre este assalto sistemático aos alicerces das estruturas e instituições por grupos políticos cuja essência ideológica ofende o mais elementar conceito de liberdade, em flagrante desvirtuação do espírito do 25 de Abril. Encontro-me, portanto, perante a impossibilidade de execução fiel do Programa do Movimento das Forças Armadas. O meu sentido de lealdade inibe-me de trair o Povo a que pertenço e para o qual, sob a bandeira de uma falsa liberdade, se estão preparando novas formas de escravidão.
Tenho dedicado toda a minha vida ao serviço da Pátria e não desejo que fique a pesar-me na consciência haver alguma vez traído os meus concidadãos. Nestas condições, e perante a total impossibilidade de, no actual clima, se construir uma democracia autêntica ao serviço da paz e do progresso do País, renuncio ao cargo de Presidente da República.
Ao dirigir ao Conselho de Estado e ao povo português esta mensagem de renúncia, desejo reafirmar a minha indestrutível vinculação aos ideais da liberdade e da democracia e a minha inabalável obediência a princípios básicos de ética militar, que me inibe de participar em projectadas estruturas revolucionárias. E no momento em que, uma vez mais, o País está na iminência de ver esses ideais comprometidos, lanço o meu último apelo para que cada português conserve a necessária serenidade de espírito, se mantenha em paz, confie na força do voto secreto, a grande arma democrática dos homens ordeiros e livres, e jamais consinta que a sua consciência seja violada.
Termino formulando os mais ardentes votos para que a causa da liberdade e da democracia triunfe de facto sobre quantos dela se vêm apenas servindo. E levo comigo o conforto da certeza de tudo haver feito para manter intacto o espírito do 25 de Abril, do qual me constituí intransigente defensor e garante.
ANTÓNIO DE SPÍNOLA.