Processo 67594. - Autos de recurso para o tribunal pleno em que são
recorrente João Viegas Nabais e recorrido Francisco Amaro Martins.
Acordam, em pleno, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça:
João Viegas Nabais, identificado nos autos, recorreu para o tribunal pleno do acórdão certificado a fls. 6 e seguintes, proferido por este Supremo Tribunal em 4 de Maio de 1978, com o fundamento de que ele está em oposição, relativamente à solução dada à mesma questão fundamental de direito, com o Acórdão deste Tribunal de 25 de Fevereiro de 1975, transitado em julgado e publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 244, a pp. 227 e seguintes.
Por acórdão da 2.ª Secção Cível deste Tribunal, a fl. 18, foi reconhecida a existência da oposição invocada e mandado prosseguir o recurso.
Na sequência deste e quanto ao objecto do mesmo, apresentou o recorrente a alegação a fls. 23 e seguintes, na qual terminou por pedir a revogação do acórdão recorrido e a condenação do réu no pedido, visto ter sido citado para a causa e não ter oferecido nela a sua contestação e que fosse formulado assento no sentido de que «condenado o réu em processo criminal por acidente de viação, na indemnização a liquidar em execução de sentença pode o ofendido demandá-lo também na acção declarativa de condenação que proponha posteriormente contra a companhia seguradora da respectiva responsabilidade civil que foi estranha àquele processo criminal em que foi condenado o seu segurado e autor do acidente, pedindo, em conjunto, a condenação no pedido certo e determinado que nesta acção se deduz».
Adoptava o recorrente, fundamentalmente, a doutrina que resultava do acórdão citado em oposição de 25 de Fevereiro de 1975.
O recorrido não alegou.
O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, analisando o tema do conflito jurisprudencial exposto nestes autos, emitiu o douto parecer de fls. 32 e seguintes e concluiu que deve firmar-se assento no sentido de que «condenado o lesante em processo penal a indemnizar no que se liquidar em execução de sentença por responsabilidade civil conexa com a responsabilidade penal decorrente de infracção à disciplina do trânsito, não pode o lesado, na acção que proponha nos termos do artigo 68.º do Código da Estrada contra a seguradora, demandá-lo também a ele, por a tal obstar a excepção de caso julgado».
Corridos os vistos, cumpre decidir:
1 - Como resulta do n.º 3 do artigo 766.º do Código de Processo Civil, pode agora e ainda este Tribunal decidir em sentido contrário do acórdão da Secção que, nos termos já ditos, reconheceu a existência de oposição dos julgados postos em confronto.
Reexaminando tal questão, este Tribunal não encontra fundamento para concluir em contrário do que a referida Secção decidiu. Na verdade, a oposição notada entre os Acórdãos de 25 de Fevereiro de 1975 e o de 4 de Maio de 1978 consiste no seguinte:
Enquanto no primeiro destes acórdãos se decidiu que o lesado em acidente de viação, depois de ter obtido, em processo crime, a condenação do lesante por sentença transitada em julgado no pagamento de indemnização a liquidar em execução de sentença (isto de conformidade com o § 3.º do artigo 34.º do Código de Processo Civil), pode demandar em posterior acção com processo especial nos termos do artigo 68.º do Código da Estrada, não só a companhia seguradora mas também o lesante sem que, quanto a este, o pedido formulado em tal acção importa contradição com a causa de pedir, irregularidade da petição, ofensa de caso julgado e erro no emprego da forma do processo.
No segundo acórdão (o recorrido) entendeu-se, perante o mesmo condicionalismo, que a acção cível, proposta subsequentemente, importa, quanto ao lesante, erro no emprego da forma de processo por o adequado ser o da acção executiva.
Embora os fundamentos invocados nos acórdãos em presença não coincidam em toda a sua extensão, a questão fundamental de direito que ambos decidiram é essencialmente esta: se o lesado pode demandar em acção especial de condenação nos termos do artigo 68.º do Código da Estrada, também o lesante, além da companhia seguradora que, como simples responsável civil, não interviera no processo crime anteriormente instaurado e no qual o lesante fora condenado por sentença transitada em julgado a pagar indemnização a liquidar em execução de sentença.
Os dois acórdãos pronunciando-se sobre esta questão, embora apoiados em fundamentos diferentes, chegaram a conclusões diametralmente opostas, como resulta do que foi exposto.
Ora, é a oposição das respectivas soluções que, nos termos do artigo 763.º, n.º 1, do Código do Processo Civil, precisamente fundamenta e justifica o recurso de que se trata e a intervenção deste tribunal pleno.
2 - Passemos, pois, a conhecer do fundo, em ordem a solucionar o exposto conflito de jurisprudência:
a) Contrariamente ao que o recorrente pretende insinuar, a sentença proferida em processo crime nos termos do § 3.º do artigo 34.º do Código de Processo Penal, constitui verdadeiro título exequível ou executivo.
Esta disposição o declara expressamente na sua parte final e o mesmo decorre dos termos latos em que a expressão «sentença condenatória» se encontra empregada no artigo 46.º, alínea a), do Código de Processo Civil.
Aliás, a falta de indicação em termos precisos do quantum indemnizatório não subtrai à dita sentença virtualidade executiva.
Refere a este propósito o Prof. José Alberto dos Reis, com a autoridade e clareza que todos lhe reconhecem: «Em regra, a liquidez do crédito não é condição de exequibilidade dos títulos. Uma sentença, um auto de conciliação e uma escritura pública não deixam de ser títulos executivos pelo facto de ser ilíquida a obrigação do condenado ou do devedor; o que a lei determina é que a execução se não promova sem que a obrigação se torne líquida ... É nos termos dos artigos 805.º a 810.º que se faz a liquidação, que se converte em líquida a prestação ilíquida» - Processo de Execução, 1.º vol., p. 177.
Esta liquidação constitui uma fase da própria execução e só por isso é que foi alterada a anterior redacção do artigo 804.º daquele Código (conselheiro Lopes Cardoso - Código de Processo Civil Anotado, p. 476).
b) O recorrente retira do artigo 449.º, n.os 1 e 2, alínea c), do Código de Processo Civil argumento no sentido de que o uso do processo executivo tem carácter facultativo, ficando o autor que esteja munido de suficiente título executivo apenas sujeito à sanção do pagamento das custas da acção executiva quando seja desnecessária a instauração deste por o título se apresentar com manifesta força executiva.
Na obra atrás citada, a p. 201, adverte José Alberto dos Reis:
Pode dar-se o caso de o credor, apesar de dispor de um título exequível, lançar mão da acção declarativa, em vez de se socorrer da acção executiva. O credor renuncia à exequibilidade do título, tomando pelo caminho mais longo do processo de declaração, a que se seguirá o processo de execução, quando podia imediatamente entrar na via executiva. Será lícito ao credor fazer isto? Há que distinguir duas hipóteses:
1.ª O título executivo de que o credor está provido é uma sentença;
2.ª O título é diverso de sentença.
Na primeira hipótese é fora de dúvida que o credor corre o risco de ser invocado o caso julgado. Se a questão já foi decidida por sentença transitada em julgado, o credor não precisa de obter nem pode obter uma nova sentença, embora a primeira lhe tenha sido favorável ...
É este o tratamento jurídico adequado ao caso sub judice como lucidamente propõe o ilustre representante do Ministério Público no seu douto parecer.
A sanção do pagamento das custas a que o artigo 449.º, n.º 2, alínea c), se refere aplica-se a títulos diversos de sentenças quando se verifique o condicionalismo aí previsto.
c) Se fosse possível demandar, na posterior acção especial, o lesante já condenado no processo crime por sentença transitada a pagar a indemnização que vier a liquidar-se em execução de sentença, repetir-se-ia a demanda que conduzir à prolação de uma sentença apta a ser executada. Partir-se-ia do mesmo facto danoso e a acção seria idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (artigo 498.º do Código de Processo Civil).
Verificar-se-ia - como se verifica no caso em apreço - a excepção peremptória do caso julgado da qual se pode conhecer oficiosamente. [Artigos 496.º, alínea a), e 500.º do Código citado.] Não constitui obstáculo quanto à identidade do pedido o ter-se formulado um pedido genérico no processo crime quanto à fixação da indemnização e em pedido líquido na acção declarativa. É que, como bem foi notado no dito parecer, a fl. 33 v.º, a condenação em quantia ilíquida contém já, virtualmente, a quantia a liquidar (artigo 471.º, n.º 2, e artigo 661.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
A identidade dos sujeitos e da causa de pedir e evidente.
d) Não sofre dúvida que o uso, no presente caso, da acção declarativa, quanto ao lesante, é inadequado para se fazer a liquidação de quanto é devido pela indemnização. Tal liquidação, como se deixou dito, constitui uma fase do processo executivo.
Todavia, face ao modo como as coisas se apresentam, não pode considerar-se operante para a decisão o fundamento em que se apoiou o douto acórdão recorrido - o da nulidade consistente no erro do processo empregado. É que formulando o autor um pedido de condenação do lesante no pagamento de certa indemnização - isto na acção proposta posteriormente à condenação em processo crime - é sem dúvida o que foi empregado. É à face do pedido formulado que tem de ajuizar-se da adequação ou inadequação do meio processual usado. Isto resulta da conjugação dos artigos 193.º, n.º 4, e 199.º do Código de Processo Civil.
e) A circunstância de passar a ser também demandada a companhia de seguros por não ter intervindo no processo crime e de o lesado necessitar de obter título executivo contra ela não altera a doutrina enunciada, já que é facultativa a intervenção de todos os responsáveis, não sendo caso de litisconsórcio necessário.
f) Nos termos expostos nega-se provimento ao recurso (embora não se perfilhem as razões do douto acórdão recorrido), absolve-se o recorrido Francisco Amaro Martins do pedido, condena-se o recorrente nas custas e estabelece-se o seguinte assento:
A condenação em processo penal do responsável por acidente de viação, em indemnização a liquidar em execução de sentença, constitui caso julgado, que obsta a que o lesado o possa demandar em acção declarativa cível tendente a obter indemnização pelo mesmo facto, ainda que proposta também contra a mesma seguradora.
Lisboa, 8 de Julho de 1980. - Daniel Ferreira - Abel Campos - Avelino Ferreira Júnior - Santos Victor - Costa Soares - Hernâni de Lencastre - Aquilino Ribeiro - Alberto Alves Pinto - António Furtado dos Santos - Octávio Dias Garcia - Henrique da Rocha Ferreira - Rui de Matos Corte Real - Augusto de Azevedo Ferreira - Oliveira Carvalho - Bruto da Costa - Rodrigues Bastos - Sebastião Sá Gomes - Manuel Arelo Ferreira Manso - Angélico Sequeira de Carvalho.