Acórdão 247/2002/T. Const. - Processo 20/01. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - No Tribunal Judicial de Oeiras foi instaurada por Manuel dos Santos Rodrigues, com os sinais identificadores dos autos, uma acção de indemnização civil contra o Estado Português com fundamento no facto de ter sido detido ilegalmente, pretendendo "ser indemnizado pelos prejuízos que sofreu ao ser indevidamente detido e declarado contumaz em processo judicial em que era arguido outro homem, com um nome igual ao seu".
Na contestação, suscitou o Ministério Público (MP) a excepção de caducidade do direito do autor, nos termos do n.º 1 do artigo 226.º do Código de Processo Penal (CPP).
O Tribunal Judicial de Oeiras deu como provada a detenção ilegal, com a consequente condenação do Estado em montante que entendeu ser devido (sentença de 11 de Dezembro de 2000).
O juiz da acção, depois de referir que na doutrina e jurisprudência o prazo indicado naquele citado preceito tem sido indistintamente qualificado como de prescrição e caducidade, concluiu estar perante um prazo de caducidade por força do disposto no artigo 298.º, n.º 2, do Código Civil (CC).
Porém, logo acrescentou que "[os] direitos constitucionais, apesar da possibilidade da sua aplicação directa, exigem que o legislador os organize, condicione e regulamente de modo a disciplinar a sua utilização, sem que daí resulte uma restrição proibida do seu âmbito, nos termos dos n.os 2 e 3 do artigo 18.º da CRP.
A fixação de um prazo para o exercício de um direito, em princípio, não restringe o seu conteúdo, limitando-se a condicionar temporalmente o seu exercício.
Porém, o prazo aqui fixado revela-se de tal modo curto, atenta a necessidade de estabilização dos prejuízos sofridos, a necessidade de ponderação do exercício do direito e do modo como o mesmo deve ser exercido, que essa condicionante se assume como uma verdadeira restrição proibida, caso ela se revele desadequada ou desproporcionada".
E, depois de considerar que, quando aplicáveis, por analogia, as regras da responsabilidade civil extracontratual ao direito de indemnização previsto no artigo 295.º do CPP, ainda que o legislador não tivesse estipulado um prazo para o seu exercício, o mesmo prescreveria ao fim de três anos, nos termos do artigo 498.º, n.º 1, do CC, como também sucederia na responsabilidade civil do Estado por actos administrativos e na responsabilidade civil pelo demais actos ilícitos culposos praticados no exercício da função jurisdicional, por aplicação directa do artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), acaba por concluir que o prazo de caducidade do artigo 226.º do CPP revela-se demasiado exíguo e "claramente desproporcionado", quando comparado com aqueloutro, tanto mais que se torna necessário dar importância à gravidade que assume a privação ilegal de liberdade, acto de gravidade superior relativamente aos demais.
Para além de ser desproporcionado, considerou ainda o M.mº Juiz a quo que o dito prazo é também desadequado, "uma vez que não persegue qualquer finalidade legítima de certeza e segurança das relações jurídicas, que justifique a sua existência".
Assim sendo, o referido prazo constitui uma condição inadmissível ao exercício do direito constitucional estabelecido no artigo 27.º, n.º 2, da CRP, pelo que a norma que o estipula é inconstitucional ("O prazo de caducidade estipulado no artigo 226.º, ao revelar-se desproporcionado e desadequado, é uma condição ao exercício do direito constitucional estabelecido no artigo 27.º, n.º 2, da CRP, que, pelas suas características, deve ser encarada como uma restrição inadmissível àquele direito, atenta a sua desnecessidade, pelo que a mesma é inconstitucional, devendo esse vício ser por nós conhecido" - é como concluiu o M.mº Juiz a quo ).
Esta conclusão levou o referido juiz a desaplicar a norma do artigo 226.º, n.º 1, do CPP, considerando que, relativamente à extinção pelo decurso do tempo do direito à indemnização estabelecido pelo artigo 225.º do CPP, "apenas deve ser considerado o prazo de prescrição de três anos, do artigo 498.º do CC, aplicável, por analogia (artigo 10.º, n.º 1, do CC), a esta situação".
2 - Desaplicada na referida sentença a norma por inconstitucionalidade, veio o MP interpor recurso dela para este Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC).
Nas alegações, neste Tribunal proferidas, concluiu aquela entidade, e em resumo, que:
"1.º O estabelecimento do prazo de um ano para o exercício do direito de indemnização previsto no n.º 1 do artigo 226.º do Código de Processo Penal - aplicável numa hipótese em que estão em causa danos (materiais e morais) limitados e facilmente apreensíveis pelo lesado logo após a ocorrência do facto ilícito - não se configura como desproporcionadamente exíguo do direito de indemnização, não afrontando o n.º 3 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa.
2.º Qualificado o prazo previsto nesta disposição legal como de 'caducidade' - e não constituindo objecto do presente recurso discutir a exactidão de tal qualificação jurídica -, não se configura como 'arbitrário' ou 'discricionário' o estabelecimento do prazo de caducidade de um ano, atenta, nomeadamente, a normal duração dos prazos legais dessa natureza.
3.º Termos em que deverá proceder o presente recurso."
Por sua vez, o ora recorrido, concordando no essencial com o decidido no Tribunal de Oeiras, concluiu dizendo:
"1.º O estabelecimento de um prazo para o exercício de um direito constitucionalmente consagrado somente pode limitar a sua concretização na medida em que perante um valor atendível o faça de modo proporcional e racional, não o extirpando de conteúdo ou amputando no seu alcance, conforme o faz o preceito em crise, que contraria em muito a lei constitucional, a constituição material e o entendimento que hoje se deverá fazer do Estado no seu papel de relacionamento com os cidadãos e na sua função de garante dos direitos dos mesmos. Pelo que razões meramente economicistas não deverão bastar para que a lei imponha uma tão profunda limitação de direitos que mais do que isso são valores civilizacionais adquiridos, património de uma nação moderna civilizada e justa.
2.º Razão pela qual não deverá proceder o presente recurso obrigatório interposto."
3 - Adiante-se, antes de mais, que ao Tribunal Constitucional não compete sindicar a qualificação atribuída ao prazo para interposição da acção de indemnização em causa que o tribunal recorrido efectuou.
Ao ter sido qualificado como um prazo de caducidade, e tendo sido considerado aplicável o disposto no artigo 226.º, n.º 1, do CPP, ao Tribunal Constitucional compete apenas apreciar a questão de (in)constitucionalidade daquela norma que estabelece que o pedido de indemnização não pode, em caso algum, ser proposto depois de decorrido um ano, analisando se esse prazo se revela desproporcionado, desadequado ou exíguo para o exercício do direito de indemnização.
Como este Tribunal já por várias vezes tem afirmado (cf., entre outros, os Acórdãos n.os 370/91 e 70/2000, publicados, respectivamente, no Diário da República, 2.ª série, de 2 de Abril de 1992 e 11 de Dezembro de 2000), a existência de um prazo de caducidade não constitui restrição ao direito de acesso ao tribunal, apenas condiciona, regulamentando-o, o exercício desse direito, sem diminuir as faculdades que o integram.
Só as normas restritivas dos direitos fundamentais (normas que encurtam o seu conteúdo e alcance) e não meramente condicionadoras (as que se limitam a definir pressupostos ou condições do seu exercício) têm de responder ao conjunto de exigências e cautelas consignado no artigo 18.º, n.os 2 e 3, da lei fundamental (cf. o Acórdão 413/89, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 15 de Setembro de 1989).
Mas não basta que o referido prazo se não apresente prima facie como uma restrição ao direito, e tão-só como uma sua regulamentação ou condicionamento, para que daqui se conclua pela não-inconstitucionalidade da norma, ao fixar esse prazo.
Importante é que não redunde efectivamente numa restrição, ou seja, tal prazo também não se mostre desadequado e desproporcionado, ou, como se referiu no já aludido Acórdão 70/2000, torna-se necessário ver as coisas de um ponto de vista material ou substantivo.
A violação só existirá se o prazo, por desadequado e desproporcionado, dificultasse gravemente o exercício concreto do direito, uma vez que, em tal caso, estar-se-ia perante uma restrição a esse direito e não em face de um simples condicionamento ao exercício do mesmo.
Como refere Vieira de Andrade (cf. Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, p. 228, nota 2), "a distinção entre condicionamento e restrição é fundamentalmente prática, já que não é possível definir com exactidão, em abstracto, os contornos das duas figuras. Muitas vezes, é apenas um problema de grau ou de quantidade.".
Sendo isto assim, o referido prazo só seria desadequado e desproporcionado se inviabilizasse de todo ou tornasse particularmente oneroso o seu exercício.
Aliás, no caso dos autos, nem sequer ao recorrente seria difícil dispor dos elementos necessários para interposição da acção, como é a presente acção, contra o Estado.
O prazo de um ano nem sequer se revela curto, de modo a necessitar de especial justificação a curteza do mesmo.
Só a certeza e segurança jurídicas é que justificam a fixação de prazos.
E o certo é que o valor da certeza e segurança jurídicas impõe a fixação de prazos, de modo que certas situações não se mantenham por muito tempo em estado de indefinição, porque assim o exige o interesse público.
Aliás, há que ter em conta que tão importante é para o interesse público a receita do Estado como a sua dívida (nesta se incluindo indemnizações a pagar).
Ora, no caso dos autos, pese embora todo o circunstancialismo que motivou a propositura da acção de indemnização civil contra o Estado, não se pode dizer que os elementos a carrear para a dita acção ou a sua complexidade exigissem um prazo mais dilatado para a sua interposição.
Como refere o MP, no decurso das suas alegações, teria sido "possível ao lesado deduzir pretensão pelos danos que invoca na sua petição inicial em prazo muito inferior àquele - não podendo seriamente afirmar-se que o prazo de um ano se configura como desproporcionadamente exíguo - e como tal ilegitimamente restritivo - do direito de indemnização concretamente peticionado pelo lesado".
O prazo de um ano, tendo em conta a simplicidade da apreensão da questão e dos elementos necessários ao processo, não se revela desproporcionada ou desadequadamente exíguo, pelo que não sai violado o disposto no artigo 18.º, n.º 3, da CRP.
E também não viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da lei fundamental, como se verá.
Este princípio não proíbe a fixação de regimes diferenciados.
A igualdade apenas postula que se tratem identicamente as situações que sejam essencialmente iguais.
Ora, atenta a diferente natureza dos prazos de caducidade e de prescrição, o dito princípio não impõe que se lhes aplique o mesmo regime.
Aliás, o princípio da igualdade não impõe uma igualação completa de prazos para o exercício do direito de acção para efeitos indemnizatórios, designadamente quando estão em causa hipóteses de indemnização que a lei subordinou a pressupostos específicos.
Assim sendo, não viola também o referido preceito o dito princípio da igualdade.
Com o que não merece atendimento a pretensão do recorrente.
4 - Termos em que, decidindo, se concede provimento ao recurso e se revoga a sentença recorrida, que deverá ser reformulada de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 4 de Junho de 2002. - Guilherme da Fonseca (relator) - Paulo Mota Pinto - Bravo Serra - José Manuel Cardoso da Costa.