Acórdão 258/2001/T. Const. - Processo 716/00. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - João António Monteiro Mourato Grave, com os sinais dos autos, foi pronunciado pela prática de um crime de omissão de assistência material à família, previsto e punível pelo artigo 197.º, n.º 1, do Código Penal (versão originária), a que corresponde actualmente o artigo 250.º, n.º 1, do Código Penal, por despacho de pronúncia proferido em 12 de Julho de 1995 pelo Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa.
O arguido interpôs recurso do despacho de pronúncia para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 8 de Abril de 1997, confirmou o despacho recorrido.
Inconformado com o acórdão da Relação de Lisboa, o arguido recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alíneas c) e f), da Lei do Tribunal Constitucional, sustentando a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 288.º, n.º 4, 286.º e 287.º do Código de Processo Penal por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição e afirmando que o acórdão recorrido não aplicou a interpretação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, propugnada nas alegações de recurso apresentadas no Tribunal da Relação de Lisboa (cf. fls. 233 e 234).
O Tribunal Constitucional decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso por acórdão de 7 de Outubro de 1997.
Por sentença de 5 de Maio de 2000 do Tribunal Criminal de Lisboa, foi João António Monteiro Mourato Grave condenado "pela prática de um crime previsto e punível pelo artigo 197.º, n.º 1, do Código Penal de 1982 em 180 dias de multa à razão diária de 1500$00 ou, em alternativa, 120 de prisão" (cf. de fl. 387 a fl. 400).
De novo inconformado, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa, que negou provimento ao recurso por acórdão de 7 de Novembro de 2000.
Deste último acórdão recorreu o arguido para o Tribunal Constitucional, dizendo, no respectivo requerimento de interposição de recurso, estar em causa:
"a) A violação dos artigos 32.º, n.º 5, e 16.º, ambos da Constituição da República Portuguesa (quando estes consagram os princípios do contraditório e da igualdade de armas), pelos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, alínea a), ambos do Código do Processo Penal, quando estes são interpretados no sentido de não implicarem a indicação pela sentença da matéria dada por não provada e dos elementos de facto constantes da acusação, por um lado;
b) A violação pelos mesmos preceitos do Código de Processo Penal [artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, alínea a)] dos artigos 205.º, n.º 1, 32.º, n.os 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, por aqueles serem aferidos em termos de não determinarem a fundamentação da matéria de facto individualizadamente em relação a cada elemento de facto dado por assente, não procedendo a qualquer valoração dos meios de prova produzidos em audiência de julgamento, conferindo um carácter inconstitucional à obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais;
c) A violação do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa pelo artigo 379.º, alínea b), do Código de Processo Penal e, como agora novelmente invocado no acórdão recorrido, do artigo 72.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, entendidos estes como viabilizadores de serem considerados pela sentença factos subsequentes ao momento da prolacção do despacho de pronúncia."
Admitido o recurso, o recorrente produziu alegações, onde concluiu:
"a) Entendidos os artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal como viabilizadores da consideração dos elementos de facto contidos nas acusações, com a sua inerente consideração como provados ou não provados, os mesmos violam, clara e abertamente, o disposto nos artigos 32.º, n.º 5, e 16.º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que os princípios do contraditório e da igualdade de armas, princípios decorrentes do Estado de direito e do princípio da igualdade, se demonstram claramente afrontados e desprezados;
b) Tanto mais que, com tal matriz, se anula em absoluto a intervenção processual relevante que ao arguido é conferida por via da apresentação da sua contestação, peça fundamental e asseguradora do real preenchimento dos mencionados princípios, os quais, contrariamente ao afirmado pelo acórdão recorrido, se revelam efectivamente violados;
c) Sendo natural que, não tendo sido considerados os elementos de facto vazados na contestação, e que detêm efectivo interesse para a decisão da causa, quer para a decisão de condenação ou absolvição quer para a determinação da medida da culpa, os mesmos não tenham sido objecto de consideração nos elementos de facto provados e não provados;
d) Por outro lado, o depoimento das testemunhas em consonância com as declarações da assistente, tal como afirmado no acórdão recorrido, não constitui elemento fundamentador mínimo da matéria de facto dada como assente, carecendo, assim, a sentença proferida de fundamentação, entendida esta como contendo a discriminação dos meios de prova, em termos individualizados em relação a cada facto, e com a menção dos factos não provados, compulsados iguais elementos, como determinam os artigos 205.º, n.º 1, e 32.º, n.os 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa;
e) Não se bastando com tal discrição genérica, tal como indicada como conteúdo suficiente pelo acórdão recorrido, os artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, pois que, assim se entendendo, se revelam tais preceitos inconstitucionais;
f) O que a impossibilidade de determinação da motivação subjacente aos factos indicados pela sentença da 1.ª instância sob os n.os 4, 5, 7, 8, 11, 13 e 14 a 21 revela claramente, sendo os meios de valoração dos meios de prova, é absolutamente insusceptível de ser determinada;
g) Da mesma forma que ao ser proferida condenação sobre factos omissos em sede de pronúncia, violado se revela o princípio do contraditório, tal como consignado no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, o qual é afrontado pelos artigos 379.º, alínea b), do Código de Processo Penal e 72.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, quando estes são considerados pelo acórdão recorrido como viabilizadores de tal condenação surpresa."
O procurador-geral-adjunto em exercício neste Tribunal contra-alegou, formulando assim as suas conclusões:
"1.º Não constitui objecto idóneo de um recurso de fiscalização da constitucionalidade de normas analisar directamente a matéria de facto considerada assente, em termos de apurar se todos os factos invocados pelos sujeitos processuais foram efectivamente apreciados e sindicar da correcção e pertinência do exame crítico das provas a que se procedeu, para fundamentação do decidido.
2.º Na verdade, apenas compete ao Tribunal Constitucional sindicar dos critérios normativos em que assentou a decisão recorrida, não podendo conhecer-se do recurso quando tais critérios normativos não coincidam com a interpretação, alegadamente inconstitucional, especificada pela recorrente.
3.º Não é inconstitucional a norma constante do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal quando interpretada em termos de dispensar a necessidade de uma fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto, em relação a cada um dos factos 'atomisticamente' alegados e provados no processo.
4.º Não viola o princípio das garantias de defesa a interpretação normativa do artigo 379.º, n.º 1, alínea b) - lida em conjugação com o artigo 358.º do Código de Processo Penal -, que dispensa o cumprimento de um expresso dever de comunicação e prevenção ao arguido para exercer o contraditório relativamente a factos posteriores ao crime (e à pronúncia), desprovidos de relevância típica e considerados pelas instâncias exclusivamente para o efeito de ser avaliada a culpabilidade do agente e da consequente determinação da medida concreta da pena.
5.º Tendo a audiência penal uma estrutura integralmente contraditória, assiste plenamente ao arguido e seu defensor a possibilidade de questionarem ou contraditarem os meios probatórios em que assente a relevância de tais factos, desprovidos de influência nos elementos do tipo legal.
6.º Termos em que deverá improceder o presente recurso, relativamente às questões de inconstitucionalidade normativa suscitadas."
Relativamente à delimitação do objecto do presente recurso, tal como a entendeu o procurador-geral-adjunto em exercício neste Tribunal, foi o arguido notificado para se pronunciar, querendo, o que fez por requerimento de 6 de Março de 2001, em que [...] se reitera o afirmado nas alegações de recurso".
Cumpre apreciar e decidir.
2 - Delimitação do objecto do recurso.
No presente recurso, o recorrente põe em causa, no plano da sua conformidade constitucional:
A interpretação da norma extraída dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, alínea a), do CPP no sentido de que ela não determina a indicação concreta da matéria dada como não provada e dos elementos de facto constantes da contestação, o que violaria os princípios do contraditório e da igualdade de armas consagrados na lei fundamental;
A interpretação da mesma norma no sentido de que ela não impõe a indicação individualizada dos meios de prova em relação a cada elemento de facto dado como assente, o que violaria os artigos 205.º, n.º 1, e 32.º, n.os 1 e 5, da CRP
A interpretação da norma extraída dos artigos 379.º, alínea b), do CPP e 72.º, n.º 2, alínea e) do Código Penal no sentido de que ela viabiliza a consideração pela sentença de factos subsequentes ao despacho de pronúncia.
Ora, relativamente à primeira questão (assinale-se que é manifesto o lapso de escrita do recorrente quando sempre se refere, quer nas alegações de recurso para a Relação de Lisboa, quer no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, quer nas alegações do presente recurso, à matéria da "acusação", quando, seguramente, ele pretende reportar-se à matéria da "contestação"), tem razão o Exmo. Magistrado do Ministério Público quando sustenta que o Tribunal dela não pode conhecer.
Com efeito, constando do acórdão recorrido que "na sentença a contestação foi dada por reproduzida no seu integral teor" e que "todos os elementos contestados - de facto e de direito - foram objecto de decisão", nele não pode reconhecer-se aquela "interpretação".
O que o recorrente impugna, em bom rigor, é não o critério normativo que o Tribunal adoptou no julgamento mas a correcção e o acerto da decisão, sendo certo que só aquele critério poderia ser sindicado pelo Tribunal Constitucional.
Na verdade, é pacífica a jurisprudência deste Tribunal no sentido de que o controlo de constitucionalidade que lhe está atribuído só pode incidir sobre normas jurídicas e não sobre decisões judiciais (cf., a título meramente exemplificativo, entre muitos outros, os Acórdãos n.os 353/86, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 8.º, p. 57, 507/99, inédito, 655/99, in Diário da República, 2.ª série, de 16 de Março de 2000, e 246/2000, in Diário da República, 2.ª série, de 3 de Novembro de 2000).
No que concerne à segunda questão, deve, previamente, assinalar-se que a referência feita à ausência de "qualquer valoração de meios de prova produzidos em audiência" (requerimento de interposição do recurso) não consubstancia uma questão autónoma, estando ela compreendida na que acima se equacionou - a de saber se é constitucionalmente exigível a individualização dos meios de prova relativamente a cada facto.
De notar, aliás, que nas alegações, quer no seu texto quer nas suas conclusões, o recorrente omite qualquer referência à "valoração dos meios de prova produzidos em audiência".
Mas, a entender-se que tal questão se reveste de autonomia - o que se admite, sem conceder -, então teria igualmente razão o Ministério Público quando alega que ela não poderá ser conhecida pelo Tribunal por se tratar de "matéria manifestamente desprovida de carácter normativo": estando a decisão sobre a matéria de facto substancialmente motivada, o que, em direitas contas, o recorrente pretende sindicar é a valoração dos meios de prova apresentados, matéria que está fora dos poderes de cognição do Tribunal Constitucional.
Em suma, o objecto do recurso fica delimitado com as seguintes questões:
A de saber se a norma extraída dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º alínea a), do CPP, interpretada em termos de não determinar a indicação individualizada dos meios de prova relativamente a cada elemento de facto dado por assente, viola os artigos 205.º, n.º 1, e 32.º, n.os 1 e 5, da CRP;
A de saber se a norma extraída dos artigos 379.º, alínea a), do CPP e 72.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, entendida no sentido de viabilizar a consideração pela sentença de factos posteriores ao despacho de pronúncia, viola o artigo 32.º, n.º 5, da CRP.
3 - Quanto à primeira questão, importa chamar à colação o que o Tribunal Constitucional decidiu no Acórdão 102/99.
Escreveu-se nesse aresto:
"[...] a recorrente questionou a constitucionalidade do referido artigo 374.º, n.º 2, se interpretado no sentido de que, sendo vários os arguidos, 'a exposição dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, e a indicação das provas, que serviram para formar a convicção do tribunal', pode ser 'feita de forma global', sem necessidade de concretizar 'os motivos ou provas que apoiaram o tribunal na condenação de uns ou outros arguidos' (cf. a conclusão 5.ª da mesma motivação).
Esta questão mereceu do acórdão recorrido a seguinte resposta:
"Se atentarmos no n.º 2 do artigo 374.º, não vemos aí exigido que a fundamentação tenha de ser distinta para cada um dos arguidos, no caso de pluralidade destes. Daí ser jurisprudência deste Tribunal que 'a lei não exige que as provas que fundamentam a decisão tenham de ser distinguidas para cada um dos arguidos'" - Acórdão de 24 de Junho de 1992, processo 42 767.
Pois bem: como se sublinhou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Fevereiro de 1992 (publicado em Colectânea de Jurisprudência, ano XVII, 1992, t. I, pp. 36 e 37), o dever de fundamentação da sentença só se cumpre quando esta - para além de conter a indicação dos factos provados e não provados e a indicação dos meios de prova - contiver os 'elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação'.
A este mesmo propósito, disse-se, no Acórdão 322/93 deste Tribunal (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 29 de Outubro de 1993), que, "estando em causa uma decisão de um tribunal colectivo e tendo a fundamentação, por isso - como se assinalou no Acórdão n.os 61/88 -, que traduzir ou reflectir o 'mínimo de acordo ou convergência consensual maioritariamente apurada no seio do tribunal' (onde pode ser diverso, de juiz para juiz, o fundamento da resposta num dado sentido ou 'oferecer entre todos cambiantes significativos'), há-de ela (a fundamentação) permitir, no entanto (e sempre), avaliar cabalmente o porquê da decisão. Ou seja: no dizer de Michelle Taruffo ('Note sulla garanzia costituzionale delia motivazione, in Boletim da Faculdade de Direito, vol. IV, pp. 29 e segs.), a fundamentação da sentença há-de permitir a 'transparência' do processo e da decisão". Posteriormente, no Acórdão 172/94 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 19 de Julho de 1994), o Tribunal insistiu em que 'a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo'. E, mais recentemente, no Acórdão 573/98 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 13 de Novembro de 1998), o Tribunal sublinhou que a decisão sobre a matéria de facto tem de 'estar substancialmente fundamentada ou motivada - não através de uma mera indicação ou arrolamento dos meios probatórios mas de uma verdadeira reconstituição e análise crítica do iter que conduziu a considerar cada facto como provado ou não provado'.
Foi na esteira deste reiterado entendimento jurisprudencial que o Tribunal, no seu Acórdão 680/98 (por publicar), julgou inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, 'na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1.ª instância'.
Simplesmente, não é este o caso do acórdão recorrido, pois - como refere o Ministério Público - a decisão da 1.ª instância que ele confirmou 'tratou de fundamentar ou motivar, aprofundada e substancialmente, as razões que determinaram a formação da convicção do tribunal acerca da matéria de facto que considerou provada. Fê-lo ao longo das fls. 12 493-12 498, não se limitando a uma simples enunciação ou especificação dos meios de prova que considerou relevantes e decisivos, mas procedendo também a uma análise crítica das provas, da qual resulta perfeitamente reconstituído o iter que conduziu à referida convicção do tribunal'. Depois - e decisivamente -, também não é nesta dimensão que a recorrente questiona a constitucionalidade do artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. O que ela questiona é que a fundamentação possa ser 'feita de forma global', sem necessidade de concretizar 'os motivos ou provas que apoiaram o tribunal na condenação de uns ou outros arguidos'.
Sendo esta a questão de constitucionalidade que, agora, há que enfrentar, adianta-se já que o artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, no ponto ora considerado, não é inconstitucional quando interpretado, como o foi pelo acórdão recorrido, no sentido de que, sendo vários os arguidos que, em co-autoria, praticaram os factos delituosos, o tribunal não tem de fazer uma fundamentação formalmente distinta para cada um deles.
O tribunal do julgamento tem, é certo, de explicitar as razões que, relativamente aos vários arguidos, o levaram a convencer-se de que todos eles praticaram os factos que deu como provados. Mas a fundamentação não tem de ser distinta para cada um dos arguidos. Nem tão-pouco tem de ser uma espécie de assentada em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética. O que a fundamentação tem de deixar claro é o porquê da decisão relativamente a cada um deles.
Como sublinha o Ministério Público, 'a fundamentação tem, pela natureza das coisas, de estar reportada e conexionada com a própria matéria de facto que constitui objecto do recurso - ou seja, a fundamentação tem de aparecer estruturada em função da própria descrição daqueles factos, e não da responsabilidade, subjectiva e pessoal, de cada um dos arguidos'.
Em contrário da conclusão a que acaba de chegar-se, não se argumente dizendo que uma fundamentação assim não permite saber que prova, em concreto, serviu para formar a convicção do tribunal em relação a cada um dos arguidos.
É que, sendo imputados a cada um dos arguidos factos determinados, a fundamentação aduzida pelo tribunal para julgar provados os factos que considerar tais é bastante para que cada arguido possa saber que provas suportam a sua condenação.
Repete-se: a interpretação do artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal feita pelo acórdão recorrido, no ponto aqui considerado, não é inconstitucional."
Ora, se o decidido neste acórdão se reporta a uma questão de individualização dos meios de prova relativa aos factos provados para cada um dos arguidos, certo é que a fundamentação nele aduzida é, de algum modo, de transpor para o caso sub judice.
Com efeito, conhecedor dos factos que foram julgados provados, nenhuma dificuldade se oferece para o arguido na determinação dos meios de prova que foram considerados para cada um desses factos, sendo certo que essa determinação resulta, com clareza, da apreciação crítica da prova que o Tribunal efectuou.
Mostra-se, assim, cumprido o objectivo da exigência constitucional da fundamentação das decisões judiciais sem que se ponham em causa as garantias de defesa do arguido nem o princípio do contraditório (artigos 205.º, n.º 1, e 32.º, n.os 1 e 5, da CRP).
No que respeita à segunda questão de constitucional idade, o recorrente sustenta - como vimos - que a interpretação das normas conjugadas dos artigos 379.º, alínea b), do CPP e 71.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal no sentido de que o arguido pode ser condenado em factos alegadamente ocorridos depois de proferida a pronúncia, que não revestem natureza instrumental e sobre os quais não se pôde pronunciar - em sede de inquérito, de instrução e de contestação - são inconstitucionais por violação do artigo 32.º, n.º 5, da CRP.
Esta alegação radica no facto de, na sentença de 1.ª instância, confirmada pelo acórdão recorrido, se ter decidido na parte referente à "medida concreta da pena" o seguinte:
"Qualificados criminalmente os factos, vejamos as circunstâncias que vão determinar a fixação concreta da pena, nos ternos do artigo 71.º do Código Penal em vigor (Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março).
Assim, atenderemos ao elevado grau de culpa do arguido, à gravidade do facto criminoso e seus resultados, uma vez que o arguido não satisfez desde Março de 1994 a Maio de 1998 o montante devido a título de alimentos provisórios fixados a sua mulher, ao dolo (directo) e ao facto de o arguido não ter antecedentes criminais." (Itálico nosso.)
De salientar que a pronúncia data de 12 de Julho de 1995, dela constando que, condenado no pagamento de alimentos provisórios, "o arguido não tem pago as prestações vencidas desde Abril de 1994".
Estabelece o artigo 71.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, que tem, significativamente, como epígrafe "Determinação da medida da pena":
"1 - ...
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
...
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;"
A consideração, para o efeito de determinação da medida concreta da pena, da conduta do arguido posterior ao facto, designadamente quando destinada a reparar as consequências do crime, viola a estrutura acusatória do processo penal integrada pelo princípio do contraditório - o artigo 32.º, n.º 5, da CRP invocado pelo recorrente?
Ora, o princípio do contraditório, comentado por Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., p. 206, significa, relativamente aos destinatários: "(a) dever e direito de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; (b) direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo; (c) em particular, direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe, designadamente, que ele seja o último a intervir no processo".
De acordo com este sentido, o princípio do contraditório confere ao arguido o direito de se pronunciar (e) contrariar todos os actos que o possam afectar em termos de efectivação da respectiva responsabilidade penal.
Há, pois, que apurar se a conduta posterior ao facto, em sede de ponderação pelo tribunal das circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, são consideradas para determinação da medida concreta da pena, estão também "abrangidas" pelo princípio do contraditório.
Quanto à extensão deste princípio, os autores acima citados assinalam o seguinte:
"[...] o princípio abrange todos os actos susceptíveis de afectar a sua posição [do arguido], e em especial a audiência de discussão e julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar [...]" (Cf. ob. cit., p. cit.)
Ora, a audiência de discussão e julgamento aparece como o momento processual em que o princípio do contraditório assume a sua máxima importância, sendo certo que o recorrente não alega que, nessa sede, não se tenha podido pronunciar para contraditar a alegada conduta posterior ao facto.
O que o recorrente sempre defendeu na sua alegação é "[...] não pode o recorrente pronunciar-se, quer em sede de inquérito, quer em sede de instrução, quer em sede de contestação [...]", quanto ao que designa de "factos ocorridos depois da pronúncia", sendo que o tribunal recorrido os qualifica como circunstâncias a atender em sede de determinação da medida concreta da pena.
Ora, não questionando o recorrente, no caso dos autos, a possibilidade de contradizer - exercer o princípio do contraditório - em sede de audiência de discussão e julgamento, não pode agora vir alegar violação do alegado princípio, já que apenas a si e à sua estratégia processual é imputável o eventual não-exercício do direito de se defender na fase processualmente relevante para o efeito.
Note-se, aliás, que a acusação delimita apenas o início do incumprimento das prestações de alimentos ao referir, como se viu já, que "[o] arguido não tem pago as prestações vencidas desde Abril de 1994" (cf. fl. 114 v.º dos autos), o que obviamente pressupõe um comportamento reiterado de incumprimento dos alimentos, competindo ao arguido alegar e provar que procedera ao respectivo pagamento após aquela data, sendo que não se estabelece qualquer limite temporal ao incumprimento continuado dos alimentos.
Por outro lado, a contestação apresenta uma estrutura arquitectada em termos da inexistência da obrigação de prestação de alimentos a cargo do recorrente (cf. de fl. 268 a fl. 273).
Nas próprias alegações de recurso em que suscita questões de constitucionalidade, o recorrente assume expressamente o incumprimento do dever de prestar alimentos ao afirmar, nomeadamente que "[...] nunca o não-pagamento de alimentos por parte do cônjuge inocente [...] [no divórcio] poderá envolver a omissão de tal obrigação [...]" (cf. fl. 416 dos autos).
Quem não se julga responsável pelo pagamento de alimentos e não os paga desde Abril de 1994 até, pelo menos, ao momento em que o despacho de pronúncia foi proferido e não faz prova do contrário - em audiência de discussão e julgamento - não pode vir agora invocar uma eventual inconstitucionalidade da interpretação das normas conjugadas dos artigos 379, alínea b), do CPP e 71.º, n.º 2, alínea e), do CP com o sentido que lhe assinalou, por violação do princípio do contraditório, consagrado no artigo 32.º, n.º 5, da CRP.
Pelo exposto, não é inconstitucional a interpretação das normas conjugadas dos artigos 379.º, alínea b), do CPP e 71.º, n.º 2, alínea e), do CP no sentido de que dispensar o cumprimento do dever de comunicação e prevenção do arguido para exercer o contraditório relativamente a factos posteriores ao crime, reiteradamente praticados pelo arguido desde momento anterior - e fundamento da condenação -, desprovidos de relevância típica e considerados apenas pelo tribunal para efeito de determinação da medida concreta da pena, porque não violam o princípio do contraditório que integra a estrutura acusatória do processo penal português.
4 - Decisão. - Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta.
Lisboa, 30 de Maio de 2001. - Artur Maurício (relator) - Vitor Nunes de Almeida - Maria Helena de Brito - Luís Nunes de Almeida.