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Acórdão 06/2001/T, de 22 de Fevereiro

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Texto do documento

Acórdão 06/2001/T. Const. - Processo 466/2000. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - José Vicente Belles, Lda., deduziu em 17 de Maio de 1999, no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, embargos de executado contra Banco BPI, S. A., com o fundamento na impossibilidade de cumprimento da penhora ordenada de um terço da remuneração de um sócio gerente daquela sociedade, por ele não ter auferido qualquer remuneração e ainda na ausência de qualquer referência à cominação prevista no artigo 856.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (cf. de fl. 1 a fl. 4 dos presentes autos).

Sustentou, então, que uma interpretação do referido artigo 856.º, n.º 3, do Código de Processo Civil que não reconhecesse o direito de o devedor (embargante) provar posteriormente que o executado não aufere qualquer rendimento da notificada seria inconstitucional por violação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ínsitos no artigo 2.º da Constituição.

Contestados os embargos de executado, vieram estes a ser julgados improcedentes, por não provados, por sentença proferida em 15 de Julho de 1999 (de fl. 15 a fl. 18) pelo 12.º Juízo do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, decisão que conheceu da questão de inconstitucionalidade levantada, nos seguintes termos:

"Tão-pouco se alcança em que é que a interpretação supra-expendida viola quaisquer princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade, que a embargante quer ínsitos no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe 'Estado de direito democrático'. Mal andaria o Estado de direito se, como pretende a embargante, os particulares pudessem ignorar as notificações, não se dignando responder-lhes ou se pudessem violar frontalmente a lei, eximindo-se ao cumprimento das normas societárias vigentes, prevalecendo-se depois dessa ausência de colaboração com a justiça ou do desrespeito mais elementar da lei." (Cf. fl. 17.)

Inconformada com a decisão, a embargante apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo as alegações nestes termos (cf. de fl. 21 a fl. 24):

"Ao decidir como decidiu, o M.mº Juiz a quo violou o artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que, ao não aceitar o direito de demonstrar a inexistência da quantia exequenda, violou os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ínsitos naquele artigo 2.º da CRP.

Violou também, salvo o devido respeito e melhor opinião, o disposto nos artigos 228.º, n.º 1, 235.º, n.º 2, e 198.º do CPC, que determinam a nulidade da citação para o caso em apreço.

A nulidade foi suscitada tempestivamente.

Por último, o tribunal a quo devia ter conhecido oficiosamente da referida nulidade - artigo 202.º e segunda parte do n.º 2 do artigo 198.º do CPC."

Por Acórdão de 10 de Maio de 2000, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente o recurso, confirmando o saneador-sentença recorrido, decidindo quanto à questão de constitucionalidade suscitada (cf. de fl. 52 a fl. 56):

"Assim, tendo sido feita, em nosso ver, uma correcta interpretação e aplicação da lei, e não se vislumbrando, do mesmo passo, qualquer violação aos princípios constitucionais referidos pela apelante, ou a quaisquer outros, tem de improceder a conclusão 1.ª da sua alegação."

De novo inconformada com a decisão, a embargante recorreu para este Tribunal, nos termos seguintes:

"Pretende ver apreciada a conformidade constitucional da interpretação/aplicação da norma do artigo 856.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Porquanto, a decisão recorrida interpretou e aplicou a referida norma de modo a coarctar-lhe o direito de provar a inexistência da dívida. Coarctando-lhe esse direito, privou-a do acesso à justiça, na forma admitida no artigo 20.º da Constituição.

A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.

A consequência aberta pela interpretação/aplicação da norma em apreço provoca à recorrente um prejuízo irremediável, pois, no caso, verificar-se-á a impossibilidade de ver apreciada pelo tribunal a questão fundamental que pretende introduzir em juízo.

Face ao que fica exposto, o recurso tem todas as condições para prosseguir, o que solicita imediatamente nos próprios autos e com efeito suspensivo." (Cf. fl. 60.)

Notificada para alegar, formulou as seguintes conclusões (cf. de fl. 63 a fl. 65):

"1.ª Quando foi notificada da penhora, à embargante não foi feita a cominação de se haver como reconhecida a obrigação, nos termos em que o crédito foi nomeado à penhora, se nada dissesse quanto à existência do mesmo crédito;

2.ª Pelo que, quando não respondeu a essa notificação, não estava esclarecida, nem consciente, das consequências gravosas do seu silêncio;

3.ª Assim, é desproporcionado e fora de toda a razoabilidade que a embargante não seja admitida a exercer o seu direito de alegar e provar que o crédito penhorado não existia, antes da penhora;

4.ª Acresce que a embargante, ora recorrente, ficou privada do seu direito de se defender e de contradizer perante o órgão judicial que julgou uma questão que lhe dizia respeito, ficando atingido o seu direito à tutela judicial efectiva;

5.ª Por conseguinte, o aliás douto acórdão interpretou e aplicou a citada norma do n.º 3 do artigo 856.º do CPC com um sentido que viola o disposto nos artigos 2.º - Princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e 20.º, n.º 1 - Tutela judicial efectiva da Constituição da República."

A embargada/recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, dizendo, a concluir, no que interessa à questão de constitucionalidade suscitada:

"Não se mostram violadas quaisquer normas da Constituição, pelo que se deve manter o douto acórdão da Relação de Lisboa, como é de justiça." (Cf. de fl. 71 a fl. 74.)

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

2 - Importa, antes de mais, delimitar o objecto do recurso, tendo em conta que a embargante/recorrente, no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, pretende que se declare a inconstitucionalidade da interpretação feita pelo Tribunal da Relação de Lisboa da norma constante do artigo 856.º, n.º 3, do CPC, por violação dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade que pretende ínsitos no artigo 2.º da CRP e do acesso à justiça, previsto no artigo 20.º da lei fundamental.

Embora a recorrente não o refira expressamente, é manifesta que o presente recurso foi interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, o que se pode extrair da referência que faz (no requerimento de interposição de recurso) à apreciação da "conformidade constitucional da interpretação/aplicação da norma do artigo 856.º, n.º 3, do Código de Processo Civil".

A admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC depende da verificação, como pressuposto processual, de a questão de inconstitucionalidade ter sido suscitada durante o processo.

A embargante/recorrente suscitou a questão de constitucionalidade na petição inicial dos embargos de executado por entender que a interpretação/aplicação da norma constante do artigo 856.º, n.º 3, do CPC viola os princípios constitucionais da proporcionalidade e razoabilidade (artigo 2.º da CRP), procedimento que manteve nas alegações para a relação (referindo, embora, mas por mero lapso, os artigos 853.º, n.º 3, e 863.º, n.º 3, do CPC) e se mostra adequado (rara preencher o aludido pressuposto processual.

A questão de constitucionalidade que deve ser conhecida por este Tribunal é, pois, a de saber se, não tendo o devedor declarado - no momento da notificação de que o crédito fica à ordem do tribunal da execução ou, posteriormente, por meio de termo ou simples requerimento - se o crédito existe, entender-se que o devedor reconhece a obrigação nos termos indicados na nomeação do crédito, a penhora viola ou não os artigos 2.º e 20.º da CRP.

Ou, nas palavras da recorrente, "ao não aceitar o direito de demonstrar a inexistência da quantia exequenda, violou os princípios da proporcionalidade e razoabilidade ínsitos naquele artigo 2.º da CRP" e, "coarctando-lhe esse direito, privou-a do acesso à justiça, na forma admitida no artigo 24.º da Constituição".

3 - Dispõe o artigo 856.º, n.º 3, do Código de Processo Civil:

"Artigo 856.º

Como se faz a penhora de créditos

1 - ...

2 - ...

3 - Na falta de declaração, entende-se que o devedor reconhece a existência da obrigação nos termos estabelecidos na nomeação do crédito à penhora."

A cominação prevista na norma em apreciação para a falta de declaração do devedor sobre o crédito penhorado está estabelecida para as situações em que, quer no momento da notificação de que o crédito fica à ordem do tribunal quer posteriormente - no prazo legal previsto para a prática de actas processuais -, o devedor nada diz sobre a existência, garantias, data de vencimento e outras circunstâncias que possam interessar à execução, isto é, a cominação só se efectiva depois de o devedor ter oportunidade processual de se defender, contraditando ou dizendo o que lhe aprouver em sua defesa.

In casu, a recorrente terá sido notificada por mais de uma vez, nada tendo dito em sua defesa sobre o teor das respectivas notificações. Pretende agora eximir-se à cominação, invocando a sua alegada inconstitucionalidade por violação dos artigos 2.º e 20.º da CRP.

O artigo 2.º da Constituição tem a epígrafe "Estado de direito democrático", nele se estatuindo que a República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na vontade popular, na dignidade da pessoa humana, para alcançar uma sociedade justa e solidária.

Ora, não se vê em que medida a cominação estabelecida na norma em apreço viole o Estado de direito democrático que a recorrente invoca. Num Estado de direito democrático os cidadãos devem obediência à lei, ainda que esta lhes imponha o cumprimento de obrigações e não já e apenas lhes atribua direitos. Não resulta violado o Estado de direito democrático quando, atribuindo a lei obrigações/deveres aos cidadãos, em caso de incumprimento dos mesmos, se estabeleçam consequências prejudiciais para os seus destinatários, por força do referido incumprimento.

A cominação prevista na norma em apreço para o incumprimento do devedor só é accionada depois de se lhe dar oportunidade de defesa, sem que ele a tenha querido apresentar. O reconhecimento da obrigação nos termos indicados na nomeação do crédito à penhora só sucede porque o devedor notificado de que o crédito fica à ordem do tribunal não prestou sobre ele quaisquer declarações no acto da notificação nem posteriormente no prazo geral para a prática de actos processuais.

A existência de cominações no processo civil não faz que a decisão proferida seja desconforme com o Estado de direito democrático, em que se pressupõe que os cidadãos cumpram a lei, recebendo e respondendo às notificações, cumprindo os deveres que lhes são impostos, responsabilizando-se pelo respectivo incumprimento.

Refira-se ainda que, no processo civil, situações mais gravosas do que a da recorrente se verificam, por exemplo, nas acções julgadas com base em provas com força probatória legal (presunções legais, documentos, confissão, designadamente por falta de impugnação especificada pelo réu dos factos articulados pelo autor na petição), sendo entendimento pacífico na jurisprudência deste Tribunal o de que não são inconstitucionais as normas então em causa (cf., entre outros, os Acórdãos n.os 223/95, in Diário da República, 2.ª série, de 27 de Junho de 1995, e 499/98 - inédito).

O princípio da proporcionalidade (cf. o artigo 18.º, n.º 2, da CRP) exige que as medidas restritivas legalmente previstas sejam o meio adequado para prossecução dos fins visados pela lei, o mesmo é dizer para a salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos, sendo necessárias para alcançar os fins (que não podiam ser alcançados com meio menos gravoso), e que os meios restritivos e os fins obtidos se situem numa "justa medida".

A cominação estabelecida para o devedor que, notificado para tal - podendo fazê-lo no acto ou posteriormente, no prazo legal assinalado -, nada declarou sobre o crédito penhorado pelo tribunal não se configura como um meio legal restritivo desproporcionado, desrazoável ou excessivo em relação aos fins obtidos, máxime a satisfação do interesse legítimo do credor em obter o pagamento da sua dívida pela nomeação à penhora das créditos do executado.

Além disso, a referida cominação não é produto de uma decisão legislativa arbitrária ou caprichosa.

Não resultam, assim, violados os princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade.

De igual modo se não mostra violado o artigo 20.º da CRP enquanto este garante aos cidadãos o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.

Escrevem, a propósito, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pp. 163 e 164):

"Há-de assinalar-se como parte daquele conteúdo conceitual 'a proibição de indefesa', que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito. A violação do direito à tutela efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância das normas processuais ou de princípios gerais do processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses."

Nada disto acontece por força da aplicação da norma em apreço, já que ela pressupõe que previamente foi dada oportunidade processual ao devedor de defender o seu direito, e, exactamente por ele nada ter dito, se considera reconhecida a obrigação - a referida norma não coloca, pois, o notificado numa situação de "indefesa" e, no caso, só a conduta da recorrente fez precludir o direito de alegar e provar a invocada inexistência do crédito.

Aliás, a recorrente nem sequer nega que aquela oportunidade processual lhe foi dada, já que admite o recebimento das notificações relativas à penhora dos créditos, não cuidando de se pronunciar no prazo legal.

No que concerne à alegada nulidade por falta de menção na notificação da "cominação" prevista para o silêncio do notificado, tal é matéria que escapa ao controlo de constitucionalidade deste Tribunal, no ponto em que o acórdão impugnado a considera fora do objecto do recurso então apreciado, por não ser possível ao recorrente "solicitar ao tribunal ad quem que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objecto da causa tal como foi apresentado na 1.ª instância".

Vale por dizer que o acórdão recorrido não aplicou a norma em causa nesta outra vertente com a emissão de qualquer juízo sobre a relevância ou irrelevância da alegada falta de cominação.

Em suma, pois, pelo que se deixou exposto, não se mostram violados os princípios constitucionais do acesso ao direito, da proporcionalidade e da razoabilidade.

4 - Decisão. - Pelo exposto e em conclusão, nega-se provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC.

Lisboa, 16 de Janeiro de 2001. - Artur Maurício (relator) - Luís Nunes de Almeida - Maria Helena Brito - Vítor Nunes de Almeida - José Manuel Cardoso da Costa.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1872598.dre.pdf .

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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