Acórdão 379/99 T. Const. - Processo 545/97. - Acordam no Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - Maria José da Conceição José Fachadas deduziu embargos à providência cautelar não especificada contra si decretada a requerimento da firma F. Santos, Lda., pedindo a procedência dos embargos e a condenação das testemunhas Mário Duarte Correia dos Santos e Carlos Alberto Águas de Almeida na indemnização de 3 500 000$00 pelos falsos depoimentos prestados.
Os embargos deduzidos vieram a ser julgados improcedentes e os requeridos absolvidos do pedido, mantendo-se a providência decretada.
Da decisão da 1.ª instância, interpôs Maria José da Conceição José Fachadas recurso para o Tribunal da Relação de Évora, que, por Acórdão de 31 de Outubro de 1996, apreciou a apelação e os seis agravos interpostos, julgando todos os recursos improcedentes e confirmando as decisões recorridas.
Ainda não conformada, Maria José da Conceição José Fachadas interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça (adiante STJ), o qual decidiu negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
2 - Notificada desta decisão, Maria José da Conceição José Fachadas veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional. Neste Tribunal, a recorrente foi convidada, por despacho do relator, a indicar os elementos exigidos pelo artigo 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
Na sequência desse convite, a recorrente veio dizer, no essencial, que pretendia a apreciação da inconstitucionalidade dos preceitos contidos nos artigos 517.º, n.º 2, 544.º, n.º 1, 144.º, n.º 1, e 153.º do Código de Processo Civil, todos em conjugação da alínea b) do n.º 1 do artigo 651.º, na interpretação dada pelas instâncias recorridas, mais considerando errada a interpretação dada aos artigos 671.º, 672.º e 676.º, n.º 1, todos do mesmo Código.
Produzidas as alegações, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
"1.ª As normas extraídas do artigo 651.º, n.º 1, alínea b), do CPC e aplicadas pelas decisões recorridas são inconstitucionais;
2.ª De facto, segundo o sentido que lhe foi dado nas decisões a quo, a expressão que a parte não possa examinar no próprio acto está a atribuir ao julgador e não à parte a faculdade de avaliar a possibilidade de examinar ou não os documentos no próprio acto.
Interpretação que colhe erradamente, mais uma vez, a sua justificação no facto de se entender que quando a parte o não possa fazer no próprio acto -segundo a avaliação do julgador- a audiência tem de ser adiada; e, portanto, o grave inconveniente ou a existência da inconveniência em que a audiência prossiga sem resposta seria a ratio para a competência atribuída ao julgador para a concessão ou não do prazo previsto na lei.
4.ª Porém, e desde logo, o preceito correctamente interpretado não contém nenhuma norma implicativa de que a audiência não deve prosseguir se os documentos não puderem ser examinados no próprio acto;
5.ª Nem atribui ao julgador, mas à parte, a faculdade de avaliar se pode ou não examinar os documentos no próprio acto;
6.ª E a conveniência ou inconveniência de que a audiência prossiga sem a resposta, essa sim, é que é uma competência atribuída ao julgador pelo legislador para que considere em face da hipótese de que a parte não prescinda do prazo de exame dos documentos porventura juntos na audiência;
7.ª E a atribuição à parte da faculdade de avaliar da possibilidade ou não de examinar no próprio acto os documentos e de utilizar ou não o prazo legal obedece a critérios que têm a ver com a execução do princípio constitucional da igualdade;
8.ª Princípio esse que vem também executado em consonância com esta última interpretação do artigo 651.º, n.º 1, alínea b), nomeadamente os artigos 3.º, 144.º, n.º 1, 153.º, 517.º, n.os 1 e 2, 487.º, n.os 1 e 2, 490.º e 664.º, todos do CPC.
9.ª Assim, a aplicação do artigo 651.º, n.º 1, alínea b), com o sentido referido nas conclusões 2.ª e 3.ª, consubstancia aplicações de normas que são inconstitucionais, para além de erradas, a implicar a desaplicação por igual errada interpretação do princípio do processo civil da contraditoriedade ou do contraditório e do princípio da audiência contraditória das provas, referidas pelo Prof. Castro Mendes, in obra citada a p. 164, e que estão consignadas nos preceitos citados na conclusão 8.ª destas alegações, a executar o princípio constitucional da igualdade para a certeza e segurança jurídica."
A firma recorrida F. Santos, Lda., também apresentou alegações, que concluiu do seguinte modo:
1.ª Não existe qualquer contradição entre o artigo 651.º, n.º 1, alínea b), e o artigo 544.º, n.º 1, do CPC, porquanto;
2.ª O artigo 651.º, n.º 1, alínea b), estabelece apenas um prazo para exame (necessariamente rápido) dos documentos juntos em audiência;
3.ª E o artigo 544.º, n.º 1, um prazo para a impugnação dos documentos;
4.ª Sendo certo que os dois referidos prazos não são incompatíveis nem reciprocamente se excluem;
5.ª A recte poderia, por isso, ter impugnado os documentos no prazo e condições previstos no artigo 544.º, n.º 1, após deles tomar conhecimento, só a ela sendo imputável a sua não impugnação;
6.ª A discricionalidade da fixação do prazo de exame de documentos juntos em audiência impõe-se, tendo em atenção a necessidade de celeridade, continuidade e disciplina das audiências;
7.ª Porém, sendo uma regra genérica, aplicável a qualquer das partes, e apenas dependendo do prudente arbítrio do juiz, baseado na conjugação da complexidade e ou surpresa dos documentos, com as referidas regras de celeridade e continuidade da audiência, esse poder discricionário não ofende, em nenhum dos seus aspectos, o princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP.
8.ª Os documentos a que o presente recurso se refere eram constituídos apenas por três cheques e estes emitidos pela própria recte.
9.ª Não se justificando, portanto, prazo superior ao que foi concedido;
10.ª Dele não resultando, nem tendo sido invocada, qualquer desigualdade;
11.ª A recte poderia, se quisesse, ter impugnado os documentos nos oito dias seguintes;
12.ª Não há, assim, sob nenhum prisma (nem mesmo sob o da recte, que, aliás, se não concede), preceito ou preceitos, sua conjugação ou interpretação que integre ofensa ao princípio da igualdade.
13.ª Aliás, a matéria desta pretendida violação não está, em boa verdade, verdadeiramente invocada no STJ, como resulta da conclusão 4.ª e da parte do douto acórdão que se lhe refere, a fl. 1252 v.º dos autos;
14.ª Este recurso é, assim, e sobretudo, uma manobra dilatória da recte;
15.ª Não existindo a pretendida inconstitucionalidade deve ser negado provimento ao presente recurso."
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos. - 3 - Importa, antes de mais, delimitar o objecto do presente recurso.
Aberta a audiência de discussão e julgamento, a embargada juntou determinados documentos, que acabaram por ser admitidos para prova dos factos constantes de três quesitos. Mas os embargados, na sequência, e também por referência aos mesmos quesitos, requereram a admissão de outros três documentos, no caso três cheques subscritos pela própria embargante. Entendeu então o tribunal, invocando os termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 651.º do Código de Processo Civil (CPC), conforme se colhe da acta de julgamento (cf. fls. 677 e 678), "que os mesmos podem ser examinados no próprio acto, podendo a resposta aos mesmos a ser dada sem o adiamento da audiência, concedendo-se, porém, à embargante o prazo de trinta minutos. Suspende-se pois a audiência por trinta minutos".
É contra esta decisão, que veio a ser confirmada nas duas instâncias, que se rebela a recorrente e embargante, na medida em que considera inconstitucional a norma resultante da interpretação conjugada do artigo 651.º, n.º 1, alínea b), com as dos artigos 517.º, n.º 2, e 544.º, n.º 1, todos do CPC, segundo a qual cabe ao julgador e não à parte decidir se, no caso de esta entender que não pode examinar o documento no próprio acto, mesmo com suspensão dos trabalhos por algum tempo, existe ou não grave inconveniente no prosseguimento da audiência sem resposta sobre o documento oferecido.
A recorrente considera que tal interpretação, ao não fazer utilização dos prazos constantes das normas dos artigos 144.º, n.º 1, e 153.º, também do CPC, com o consequente adiamento da audiência, viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
É certo que a recorrente invoca, no seu requerimento de resposta ao convite feito, outras normas: designadamente os artigos 671.º, 672.º, e 676.º, n.º 1, do CPC. Porém, a recorrente não pode fazer incluir tais normas no âmbito do recurso de constitucionalidade uma vez que, relativamente a elas, apenas suscitou a questão da sua constitucionalidade na resposta ao convite do relator e tal requerimento não é já um momento adequado para tal suscitação, que tem de ser prévia à decisão recorrida. Assim, tais normas não podem fazer parte do âmbito do presente recurso de constitucionalidade.
Constitui, portanto, objecto do presente recurso de inconstitucionalidade a apreciação da norma conjugada dos artigos 651.º, n.º 2, alínea b), 517.º, n.º 2, e 544.º, n.º 1, do CPC enquanto atribui ao julgador e não à parte a faculdade de decidir se, não podendo a parte examinar os documentos no próprio acto, mesmo com suspensão dos trabalhos por algum tempo, existe grave inconveniente no prosseguimento da audiência sem resposta sobre o documento.
4 - Vejamos o texto das disposições cuja interpretação vem questionada, situando a situação que, em concreto, suscitou a questão.
"Artigo 517.º
Princípio da audiência contraditória
1 - Salvo disposição em contrário, as provas não serão admitidas nem produzidas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas.
2 - Quanto às provas constituendas, a parte será notificada, quando for revel, para todos os actos de preparação e produção da prova, e será admitida a intervir nesses actos nos termos da lei; relativamente às provas pré-constituídas, deve facultar-se à parte a impugnação, tanto da respectiva admissão como da sua força probatória.
Artigo 544.º
Impugnação da veracidade ou exactidão dos documentos
1 - A impugnação da letra ou da assinatura dos documentos particulares ou da exactidão das reproduções mecânicas, bem como a declaração de que não se sabe se a letra ou assinatura dos documentos é verdadeira, só podem ser feitas dentro dos prazos estabelecidos para a arguição da falsidade.
2 - ...
Artigo 651.º
Causas de adiamento da audiência
1 - Feita a chamada das pessoas que tenham sido convocadas, é logo aberta a audiência. Mas esta será adiada:
a) ...
b) Se faltar alguma das pessoas que tiver sido convocada e de que se não prescinda ou se tiver sido oferecido documento que a parte contrária não possa examinar no próprio acto, mesmo com suspensão dos trabalhos por algum tempo, e o tribunal entender que há grave inconveniente em que a audiência prossiga sem a presença dessa pessoa ou sem a resposta sobre o documento oferecido;
c) ..."
O que a recorrente e embargante verdadeiramente questiona é poder o juiz da causa substituir-se à parte na apreciação do tempo que esta necessita para impugnar a força probatória de um documento.
Não procede, porém, qualquer censura de inconstitucionalidade feita à norma em causa.
Em termos abstractos, a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 651.º do CPC nada contém que permita afirmar a sua inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade ou do contraditório.
Desde logo, é manifesto que nela se trata igualmente qualquer das partes envolvidas num processo cível. De facto, a norma admite não só a suspensão da audiência como também, se o tribunal entender que há grave inconveniente no seu prosseguimento, o seu adiamento, o que vale para qualquer das partes.
Por outro lado, oferecido um documento, sempre a parte contrária ouvida para se pronunciar, podendo não só impugná-lo como convencer o tribunal da grave inconveniência no prosseguimento da audiência.
No caso, importa, porém, dar a devida relevância a outros elementos que constam dos autos. Com efeito, a embargante e recorrente reconheceu que os documentos estavam por ela assinados, porém, não arguiu a respectiva falsidade, não impugnou o seu conteúdo ou a letra e assinatura. Mais: não requereu o adiamento da audiência, nem suscitou a falsidade dos documentos, além de que "através do seu mandatário pronunciou-se com bastante desenvolvimento sobre os documentos e seu conteúdo, sendo que, apesar desta [a audiência]) não ter terminado naquele dia (7 de Dezembro de 1994) e ter continuado a 12 de Dezembro de 1994, não utilizou esse prazo para impugnar ou arguir a falsidade dos documentos, conforme a lei lhe permitia".
Assim, a falta de reacção da agravante, no momento, não pode ser compensada pela suscitação da questão de constitucionalidade.
5 - A recorrente questiona a constitucionalidade da alínea b) do n.º 1 do artigo 651.º, em conjugação com outras normas do CPC, por ter sido sob sua invocação que a audiência foi suspensa durante trinta minutos, para exame dos três cheques oferecidos pela parte contrária. Centra a sua argumentação em uma hipotética violação do princípio constitucional da igualdade e do princípio do contraditório, corolário do primeiro.
Que não lhe assiste qualquer espécie de razão e por demais evidente.
Na verdade, se não forneceu razões para o adiamento da audiência, se não requereu prazo mais dilatado para exame dos três cheques, se não impugnou a falsidade dos documentos, podendo ter feito tudo isto, não pode imputar eventuais obstáculos que, segundo diz, terão sido suscitados à sua defesa, senão à forma como conduziu a lide, e nunca ao regime contido na norma questionada.
A norma que a recorrente questiona, quer em abstracto quer atendendo à forma como foi aplicada, não contende com o princípio da igualdade: de facto, nada permite afirmar que situações idênticas não tenham igual tratamento.
Por outro lado, a norma em causa em nada impede que a recorrente tivesse lançado mão de outros meios de defesa que poderia ter utilizado.
Assim, o princípio do contraditório foi claramente cumprido, designadamente tendo em conta que o mandatário da recorrente e embargante teve oportunidade de se pronunciar sobre os cheques e sobre os factos a que os mesmos respeitavam que utilizou (e, se não o fez da melhor maneira, sibi imputet).
Sendo assim, logo caem pela base quaisquer censuras de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, na vertente da igualdade de armas e do contraditório, que possam ser dirigidas às normas questionadas, quer em abstracto quer na forma como foram interpretadas.
Também o princípio do direito de acesso a uma tutela judicial efectiva consagrado no artigo 20.º da Constituição não foi violado pela interpretação feita nos autos.
Com efeito, a recorrente e embargante teve toda a oportunidade de, no decurso da continuação da audiência, usar do prazo legal de impugnação da força probatória dos documentos apresentados.
Tem, assim, de se concluir que o presente recurso tem de improceder.
III - Decisão. - Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida, na parte impugnada.
Lisboa, 22 de Junho de 1999. - Vítor Nunes de Almeida (relator) - Alberto Tavares da Costa - Maria Helena Brito - Artur Maurício - Paulo Mota Pinto - Luís Nunes de Almeida.