Assento
Acordam, em sessão plenária, no Supremo Tribunal de Justiça:
Carolina Augusta Moreira Lopes recorre para o tribunal pleno do Acórdão de 16 de Julho de 1985, proferido no recurso de revista n.º 72691 da 1.ª Secção, com fundamento na existência de oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito e no domínio da mesma legislação, entre a decisão ali tomada e a do Acórdão de 6 de Janeiro de 1983, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 323, a p. 356, este transitado em julgado.
Enquanto no acórdão recorrido se decide, no domínio dos artigos 410.º, 442.º e 830.º do Código Civil, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 236/80, de 18 de Julho, que o promitente comprador pode requerer execução específica independentemente de tradição da coisa objecto do contrato, pelo contrário, no acórdão-fundamento, e no domínio da mesma legislação, toma-se decisão oposta, afirmando-se que o promitente comprador não pode requerer execução específica do contrato se não houver tradição da coisa.
Em sua alegação conclui a recorrente por dizer que, tal como se decide no acórdão-fundamento de 6 de Janeiro de 1983, do preâmbulo e do texto do Decreto-Lei 236/80 e do contexto do ordenamento jurídico em que está inserido resulta ser possível a execução específica apenas quando o objecto de contrato-promessa haja sido transmitido para o promitente comprador.
Contrariamente, sustentam os recorridos que a execução específica do contrato-promessa é possível, verificados os demais requisitos, independentemente de ter havido ou não tradição da coisa.
O representante do Ministério Público neste Tribunal emitiu parecer no sentido de que deve confirmar-se a decisão recorrida e solucionar-se o conflito de jurisprudência, lavrando-se assento, com a seguinte formulação:
Nos termos do artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei 236/80, de 18 de Julho, o direito à execução específica é independente da circunstância de ter ou não havido a tradição.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
1 - Segundo o disposto no artigo 766.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, importa proceder a nova análise do pressuposto base do presente recurso - existência de dois acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça cujas soluções, relativamente à mesma questão fundamental de direito e no domínio da mesma legislação, se encontram em oposição -, já que o reconhecimento da existência de oposição efectuado no acórdão preliminar a fl. 26 não impede que o tribunal pleno, ao apreciar o recurso, decida em sentido contrário.
Para que se esteja perante a mesma questão fundamental de direito nos dois acórdãos em oposição tem de ocorrer uma dupla identidade, isto é, tem de se verificar uma situação de facto idêntica nos seus elementos essenciais e a sua subsunção às mesmas normas ou princípios jurídicos que no intervalo da publicação daqueles acórdãos não tenham sofrido qualquer modificação legislativa que interfira na solução da questão de direito controvertida.
Ora, proposta acção contra a agora recorrente, Carolina Augusta, com base em incumprimento culposo de contrato-promessa de compra e venda de imóvel urbano, na qual os autores formulam o pedido de prolação de sentença que produza os efeitos da declaração negocial da faltosa promitente vendedora (a recorrente), logo no despacho saneador foi a acção julgada procedente e condenada a ré no pedido, decisão esta que foi confirmada na relação e neste Supremo Tribunal, por se entender que a execução específica não está dependente, no domínio dos artigos 410.º, 442.º e 830.º do Código Civil, com a redacção que lhes foi dada pelo Decreto-Lei 236/80, de 18 de Julho, de tradição do objecto do contrato.
No referido aresto se afirma que, no domínio das disposições legais citadas, com a redacção que lhes foi introduzida, "a execução específica é, como já era, admissível em relação a todos os contratos-promessa, eliminando-se agora a presunção do n.º 2 do artigo 442.º, na sua antiga redacção. Na verdade, a actual redacção do artigo 830.º, n.º 1, mostra que a execução específica se pode dar 'em qualquer caso', a menos que a isso se oponha a natureza da obrigação, restrição que já existia e que bem se compreende ... E, se o artigo 442.º, n.º 2, fala em tradição da coisa objecto do contrato-promessa, isso visa criar uma nova alternativa para o caso de incumprimento do contrato por parte do promitente vendedor. Nesse caso, como expressamente aí se diz, o promitente comprador pode optar pela execução específica ou pelo valor da coisa ao tempo do incumprimento.»
Pelo contrário, decide-se no citado Acórdão de 6 de Janeiro de 1983, proferido também no domínio da mesma legislação, que "ao promitente comprador é vedado formular o pedido de execução específica do contrato se não houver tradição da coisa, requisito que se considera indispensável para aplicação da segunda alternativa que se contém no artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil».
Do referido se conclui que, no domínio dos artigos 410.º, 442.º e 830.º do Código Civil, com a redacção que lhes foi dada pelo Decreto-Lei 236/80, de 18 de Julho, e em situações de facto idênticas (contrato-promessa de compra e venda de imóvel urbano), o Supremo Tribunal de Justiça proferiu soluções opostas nos dois mencionados acórdãos, no recorrido decidindo que a execução específica é possível independentemente de haver ou não tradição da coisa e no fundamento decidindo que a execução específica só é possível havendo tradição da coisa para o promitente comprador.
2 - Tendo-se concluído pela existência da oposição entre os dois aludidos acórdãos, cabe, de seguida, solucionar o conflito de jurisprudência.
No regime anterior ao actual Código Civil, do incumprimento de contrato-promessa decorria como sanção a simples indemnização pelos danos causados, ressarciamento este que, havendo sinal, consistia na sua perda ou na restituição em dobro, conforme o incumprimento fosse imputado, respectivamente, ao promitente comprador ou ao promitente vendedor.
Com a entrada em vigor do Código Civil de 1966 foi inovado um regime jurídico que permite a realização coactiva da prestação, regime que, para o contrato-promessa, se define como execução específica da obrigação de emitir uma declaração de vontade. Como não se mostra possível a condenação de uma pessoa a conformar-se a uma conduta com esse conteúdo, estabelece-se no artigo 830.º do Código Civil que, havendo incumprimento da promessa, pode a outra parte obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso sempre que a isso se não oponha a natureza da obrigação assumida.
Com as alterações introduzidas nos artigos 442.º, n.º 2, e 830.º, n.º 1, do Código Civil pelo Decreto-Lei 236/80, de 18 de Julho, surgiu a tese, adoptada no acórdão-fundamento, na sequência da doutrinação, que se não perfilha, de Antunes Varela, in Direito das Obrigações, vol. I, e Revista de Legislação e de Jurisprudência, 117.º, p. 183, nota 2, e de Meneses Cordeiro, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 306, segundo a qual, com essa nova redacção, para a hipótese de ter havido tradição da coisa, se veio aditar à solução clássica da perda do sinal ou da sua restituição em dobro o direito de se exigir do promitente faltoso o valor da coisa no momento do incumprimento ou, em alternativa, a execução específica.
Porém, tal posição é contrária tanto à letra da lei como à exigência da tutela dos interesses envolvidos no contrato-promessa.
Por um lado, são bem precisos os comandos definidos nas citadas disposições legais: no artigo 442.º, n.º 2, ao afirmar-se que, se o incumprimento do contrato for devido ao promitente vendedor, tem o promitente comprador o direito de exigir o dobro do que houver prestado ou, tendo havido tradição da coisa, o valor que esta tiver ao tempo do incumprimento ou, em alternativa, o direito de requerer a execução específica, nos termos do artigo 830.º, e no artigo 830.º, ao afirmar-se que, havendo incumprimento da promessa, pode a outra parte, em qualquer caso e desde que a isso se não oponha a obrigação assumida, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso.
Daí se conclui que, não havendo tradição da coisa, não se pode exigir indemnização com base no seu valor ao tempo do incumprimento, mas já, quanto à execução específica, resulta, em articulação com o disposto no artigo 830.º, n.º 1, que ela pode ser exercida em alternativa àquele pedido de indemnização, independentemente de ter havido tradição da coisa.
Por outro lado, também a razão de ser da lei converge no mesmo sentido, face às exigências da vida económica real, sobretudo a desvalorização da moeda, para tutela dos interesses dos promitentes compradores, em relação aos quais o sinal em dobro não compensaria os eventuais prejuízos sofridos.
Afigura-se contraditória a tese do acórdão-fundamento, na medida em que, admitindo a execução específica apenas na hipótese de tradição da coisa, tal posição acaba por beneficiar os que desfrutam de uma situação já por si vantajosa, com detrimento daqueles que, sem usufruir a coisa, ficaram, entretanto, sem a disponibilidade da quantia entregue como sinal.
Acresce que a nova redacção dada às citadas disposições legais pelo Decreto-Lei 379/86, de 11 de Novembro, independentemente da sua natureza interpretativa, veio consagrar a tese constante do acórdão recorrido, aliás na sequência da jurisprudência que tem vindo a afirmar-se neste Supremo Tribunal e da doutrina que, maioritariamente, se tem pronunciado a seu favor.
3 - Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido, e formula-se o seguinte assento:
No domínio dos artigos 442.º, n.º 2, e 830.º, n.º 1, do Código Civil, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei 236/80, de 18 de Julho, o direito à execução específica não depende de ter havido tradição da coisa objecto do contrato-promessa para o promitente comprador.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 19 de Dezembro de 1989. - Jorge Vasconcelos - Lopes de Melo - Sousa Macedo - Pinto Ferreira -Brochado Brandão - Castro Mendes - Maia Gonçalves - Baltazar Coelho - Ferreira Dias - Joaquim de Carvalho - Cabral de Andrade - Gama Prazeres - Meneres Pimentel - Villa Nova - Almeida Ribeiro - Júlio Santos - Manso Preto - Gama Vieira - Alcides de Almeida - Soares Tomé - Salviano de Sousa - Joaquim Gonçalves - Cesário Dias Alves - Cura Mariano - José Calejo - José Domingues - Solano Viana - Eliseu Figueira - Mário Afonso - Barbosa de Almeida - Mendes Pinto - Ferreira da Silva - Vasco Tinoco - José Saraiva - Barros de Sequeiros.