Acórdão 628/2005/T. Const. - Processo 707/2005. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, Luís Filipe Antunes Soares foi condenado, pela 2.ª Vara Criminal de Lisboa, como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 6 anos de prisão.
2 - O arguido interpôs recurso da decisão condenatória, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 23 de Junho de 2005, negado provimento ao recurso.
3 - Luís Filipe Antunes Soares interpôs recurso do Acórdão de 23 de Junho de 2005 para o Supremo Tribunal de Justiça.
O recurso não foi admitido por decisão com o seguinte teor:
"Recurso interposto pelo arguido Luís Soares.
Este arguido foi condenado na pena de 6 anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes.
O acórdão proferido por esta Relação [...] que conheceu do recurso por ele interposto, negou provimento ao mesmo, confirmando a decisão da 1.ª instância.
Por razões idênticas às atrás explanadas, e uma vez que lhe não pode ser aplicada pena superior a 6 anos de prisão pelo crime pelo qual foi condenado, não se admite o recurso interposto."
As razões "atrás explanadas", referidas pelo Tribunal da Relação de Lisboa, constam da decisão que indeferiu um recurso interposto por outro arguido e são as seguintes:
"O arguido foi condenado, na 1.ª instância, nas penas de 6 anos de prisão, 1 ano de prisão e 7 meses de prisão pela prática, respectivamente, de um crime de tráfico de estupefacientes, um crime de detenção ilegal de arma de defesa e de um crime p. e p. no artigo 275.º, n.º 4, do Código Penal e, em cúmulo jurídico, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão.
Esta Relação, conhecendo do recurso pelo mesmo interposto, negou provimento ao mesmo, confirmando inteiramente a decisão recorrida.
Nos termos do disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisões da 1.ª instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo em caso de concurso de infracções.
O mencionado preceito, ao reportar se a pena aplicável, tem em vista a moldura penal abstracta correspondente ao crime ou crimes (em caso de concurso), mas há que respeitar os limites impostos pela proibição de reformatio in pejus, estabelecida no artigo 404.º do CPP, de que resulta, no caso, não ser aplicável pena superior a 6 anos e 6 meses de prisão, em cúmulo jurídico, ao concurso de crimes.
Assim, não se admite o recurso."
O recorrente deduziu reclamação da decisão que não admitiu o recurso nos seguintes termos:
"1.º O arguido interpôs recurso da douta sentença condenatória de folhas dos autos por estar em tempo e deter legitimidade.
2.º O recurso bem como a respectiva motivação foram entregues em tempo e por quem para tal tinha legitimidade (o mandatário da arguida, devidamente e regularmente mandatado nos autos, mediante substabelecimento), ou seja, não cabendo, no caso, qualquer dos requisitos de rejeição de recurso, a que se refere o n.º 2 do artigo 414.º do CPP.
3.º E, muito menos, como se verá, não cabendo também in casu qualquer das causas de inadmissibilidade taxativa a que alude o artigo 400.º do CPP.
4.º Na verdade, ao crime de tráfico de droga p. e p. pelo artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93 é aplicável (em abstracto) a pena de 4 a 12 anos de prisão.
5.º Pelo que, sendo o máximo legal de 12 anos (a moldura em abstracto aplicável ao sobredito crime pelo qual indubitavelmente o recorrente foi condenado), falece por completo a argumentação aduzida no douto despacho reclamado de que o acórdão da Relação seria irrecorrível 'uma vez que lhe não pode ser aplicada pena superior a 6 anos de prisão pelo crime pelo qual foi condenado' (douto despacho reclamado, a fl. 239 v.º, linhas 17 e 20).
6.º Como resulta com clareza do texto da lei penal adjectiva [artigo 400.º, alínea f), do CPP], não será admissível recurso 'De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância, em processo por crime a que seja aplicável pena não superior a 8 anos [...]'.
7.º O douto despacho recorrido parece, com o devido e merecido respeito, confundir a expressão 'a que seja aplicável' com a expressão 'a que seja aplicada pena' ou 'a que tivesse sido aplicada pena' de 8 anos de prisão, o que de facto sucedeu no caso concreto.
8.º Mas - ainda com o muito e merecido respeito - não será esse o sentido do legislador. Atente-se que o sentido da lei é tornar irrecorríveis decisões de 1.ª instância, mantidas pela Relação, em crimes a que em sede de moldura abstracta o limite máximo da pena de prisão não exceda os 8 anos de prisão.
9.º Sendo precisamente os casos limites aqueles que respeitam a crimes punidos com pena de prisão até 8 anos, o que não é, manifestamente, o caso dos autos.
10.º Diversa interpretação restritiva da lei (como aquela que faz o douto despacho reclamado) constituiria, com o devido e merecido respeito, interpretação inconstitucional do citado preceito legal [o artigo 400.º, alínea f), do CPP], ao impossibilitar o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça em processo crime, num caso, como o dos autos, em que a moldura penal abstracta se mostra superior aos 8 anos de prisão, violando-se assim de forma restritiva e não autorizada quer o comando do artigo 61.º, n.º 1, alínea h), do CPP quer - e fundamentalmente - o texto constitucional que possibilita o recurso, como uma das garantias de defesa do arguido em processo penal (máxime o artigo 32.º, n.º 1, da lei fundamental e o essencial princípio nele consignado). Pelo que o referido artigo 400.º, alínea f), do CPP, se interpretado com a dimensão e o alcance em que o faz o douto despacho reclamado (possibilitando a irrecorribilidade de um acórdão, que confirmou pena anterior de 1.ª instância, em crime punido com moldura penal de 4 a 12 anos de prisão), se mostra ferido de verdadeira inconstitucionalidade material, por violação, entre outros, dos artigos 32.º, n.º 1, e 18.º, n.º 3, da Constituição da República.
11.º Ou seja, num caso como o dos autos, em que o crime imputado ao recorrente é punido com prisão entre 4 e 12 anos de prisão, este intervalo de punição não se encontra contemplado na expressão 'a que seja aplicável pena de prisão não superior a 8 anos', já que o seu limite máximo (em abstracto) ultrapassa largamente os referidos 8 anos.
12.º Pelo que requer a admissão do presente recurso, indicando-se como elementos com que se pretende instruir a reclamação: o douto acórdão recorrido, a interposição e motivação do recurso, o douto despacho reclamado (de fl. 2394 a fl. 2395) e esta reclamação. (O que desde já se alega em cumprimento do disposto no artigo 405.º, n.º 3, in fine, do CPP.)"
O conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por despacho de 17 de Agosto de 2005, indeferiu a reclamação, com o seguinte fundamento:
"Ao recorrente Luís Soares foi aplicada pena de prisão inferior a 8 anos, tal como já explicou a Relação de Lisboa (fl. 162 v.º).
O recurso não é admissível com fundamento no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP - o que traduz jurisprudência dominante no Supremo."
4 - Luís Filipe Antunes Soares interpôs recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal.
O recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
"1 - O artigo 400.º, alínea f), do CPP, se interpretado com a dimensão e o alcance em que o faz o douto despacho reclamado (impossibilitando o recurso de um acórdão da Relação que confirmou pena de 6 anos de prisão em crime punido com moldura penal entre 4 e 12 anos de prisão), mostra-se ferido de verdadeira inconstitucionalidade material, por violação, entre outros, dos artigos 32.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da lei fundamental.
2 - Numa interpretação de um homem/mulher médios, o legislador, ao escrever, no mencionado artigo [artigo 400.º, alínea f), do CPP] a expressão 'a que seja aplicável pena de prisão não superior a 8 anos' quis com certeza dizer 'cuja moldura penal aplicável não exceda os 8 anos de prisão', não fazendo qualquer sentido outra interpretação.
3 - A interpretação restritiva da lei feita pelas instâncias (Relação e Supremo, in casu) do referido artigo 400.º, alínea f), do CPP viola a Constituição da República, mormente o disposto no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, porquanto se está assim a operar (por via interpretativa) uma restrição do direito de recurso dos arguidos em caso de não haverem sido condenados com pena de prisão igual ou superior a 8 anos.
4 - Se dúvida existir na redacção da lei, a mesma deve ser decidida a favor e não contra o arguido.
Pelo que deverá conceder-se provimento ao interposto recurso, declarando-se que o artigo 400.º, alínea f), do CPP, se interpretado com a dimensão de que 'a pena aplicável' inserta no texto da lei equivale a 'a pena aplicada na instância' viola frontalmente a Constituição da República e mormente o disposto nos seus artigos 18.º, n.os 1 e 2, e 32.º, n.os 1 e 3, não podendo, por via disso, ser aplicada pelos tribunais (artigo 277.º da lei fundamental)."
O Ministério Público contra-alegou, concluindo o seguinte:
"1 - A norma constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual não é admissível o acesso ao Supremo, em via de recurso interposto pela defesa, quando a pena concretamente aplicada ao arguido - e insusceptível de agravação - for inferior ao patamar ali previsto não viola qualquer norma ou princípio constitucional.
2 - Termos em que deverá improceder o presente recurso."
Cumpre apreciar.
II - Fundamentação. - 5 - O artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, tem a seguinte redacção:
"Artigo 400.º
Decisões que não admitem recurso
1 - Não é admissível recurso:
...
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo em caso de concurso de infracções;
...
..."
A decisão recorrida sustentou que da decisão que condena o arguido numa pena concreta inferior a 8 anos de prisão (no caso, 6 anos de prisão), não obstante o crime ser punível em abstracto com pena superior a 8 anos de prisão (no caso, pode ir até 12 anos de prisão, nos termos do n.º 1 do artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro), não cabe recurso a interpor pelo arguido. Entendeu, para tanto, que, por força da proibição da reformatio in pejus (artigo 409.º do Código de Processo Penal), a pena a determinar em sede de recurso nunca ultrapassará os 6 anos de prisão, pelo que fica aquém do limite da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal.
A interpretação normativa que é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional engloba, no seu teor, a proibição da reformatio in pejus, na medida em que a pena "aplicável" pelo tribunal ad quem tem por limite máximo a pena concretamente aplicada. Com efeito, por força daquela proibição, não será legalmente possível aplicar, em sede de recurso, pena superior. Refira se que esta interpretação, perfilhada pelo Supremo Tribunal de Justiça em vários acórdãos, não pode hoje considerar-se maioritária (cf., entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Outubro de 2003, processo 2604/2003 5 - relator: conselheiro Simas Santos -, que faz a síntese do estado da jurisprudência sobre essa matéria).
O arguido entende que tal interpretação da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal é inconstitucional, por violação dos artigos 18.º, n.os 1 e 2, e 32.º, n.os 1 e 3, da Constituição.
6 - O Tribunal Constitucional já apreciou a conformidade à Constituição da norma que constitui objecto do presente recurso. Com efeito, nos Acórdãos n.os 451/2003, 102/2004 e 640/2004 (consultável em www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal Constitucional concluiu pela não inconstitucionalidade da norma apreciada em casos idênticos ao dos presentes autos.
No Acórdão 640/2004, o Tribunal Constitucional, citando jurisprudência anterior sobre a questão, entendeu o seguinte:
"Lembrando esta jurisprudência, disse-se no Acórdão 495/2003 (que pode consultar-se em http://www.tribunalconstitucional.pt) o seguinte:
"Ora é exacto que o Tribunal Constitucional já por diversas vezes observou que 'no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição consagra-se o direito ao recurso em processo penal, como uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido. Mas a Constituição já não impõe, directa ou indirectamente, o direito a um duplo recurso, ou a um triplo grau de jurisdição. O Tribunal Constitucional teve já a oportunidade para o afirmar, a propósito dos recursos penais em matéria de facto: não decorre obviamente da Constituição um direito ao triplo grau de jurisdição, ou ao duplo recurso (Acórdão 215/2001, não publicado)'.
Esta afirmação, feita no Acórdão 435/2001 (disponível, tal como o Acórdão 215/2001, em http://www.tribunalconstitucional.pt) foi proferida justamente a propósito da apreciação da alegada inconstitucionalidade da 'norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP', tendo o Tribunal Constitucional concluído, tal como, aliás, já fizera nos Acórdãos n.os 189/2001 e 369/2001 (também disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt), que 'não viola o princípio das garantias de defesa, constante do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição'.
A verdade, todavia, é que a apreciação então realizada tomou sempre como objecto tal norma interpretada no sentido de que a mesma se 'refere [...] claramente à moldura geral abstracta do crime que preveja pena aplicável não superior a 8 anos: é este o limite máximo abstractamente aplicável, mesmo em caso de concurso de infracções, que define os casos em que não é admitido recurso para o STJ de acórdão condenatório das Relações que confirme a decisão de 1.ª instância' (citado Acórdão 189/2001). Sucede, porém, que o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a questão de constitucionalidade que o ora reclamante pretende que seja apreciada no recurso que interpôs, no Acórdão 451/2003 (também disponível em www.tribunalconstitucional.pt), nos seguintes termos:
'É certo que a interpretação normativa agora em causa não coincide com a que foi apreciada no Acórdão 189/2001 - neste, a questão tinha directamente a ver com a pena aplicável em caso de concurso de infracções.
A verdade, porém, é que, no confronto com o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a questão da conformidade constitucional da interpretação normativa adoptada no acórdão recorrida se coloca nos mesmos termos.
Com efeito, a resolução da questão de constitucionalidade passa por saber quais os limites de conformação que o artigo 32.º, n.º 1, da CRP impõe ao legislador ordinário, em matéria de recurso penal.
E a resposta é dada no Acórdão 189/2001 no sentido de não haver vinculação a um triplo grau de jurisdição e de ser constitucionalmente admissível uma restrição ao recurso se ela não for desrazoável, arbitrária ou desproporcionada.
Ora, não podendo o Tribunal Constitucional censurar as interpretações normativas que, no estrito plano do direito infraconstitucional, são feitas nas decisões recorridas, a inadmissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de uma decisão proferida em 2.º grau de jurisdição que confirma a condenação decretada em 1.ª instância - quando esse recurso é apenas interposto pelo arguido e, por força da proibição da reformatio in pejus, o STJ nunca poderá impor pena superior a 7 anos de prisão -, afigura-se racionalmente justificada, pela mesma preocupação de não assoberbar o STJ com a resolução de questões de menor gravidade (como sejam aquelas em que a pena aplicável, no caso concreto, não ultrapassa o referido limite), sendo certo que, por um lado, o direito de o arguido a ver reexaminado o seu caso se mostra já satisfeito com a pronúncia da Relação e, por outro, se obteve consenso nas duas instâncias quanto à condenação.
Tanto basta para entender que a questionada interpretação normativa não incorre em violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
[...]
No caso, o que sucedeu foi que o tribunal a quo integrou no conceito de pena aplicável constante da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, também, as situações em que, confirmada pela Relação a decisão condenatória proferida em 1.ª instância e sendo o recurso apenas interposto pelo arguido, nunca o STJ pudesse aplicar pena superior a 8 anos de prisão.'
Estas razões, mais directamente dirigidas à alínea f) mas que valem para o domínio de previsão comum (e, no caso, concorrente) das duas normas, que está na base da dupla fundamentação adoptada pelo acórdão recorrido - neste passo, o problema de constitucionalidade é sempre o do 3.º grau de jurisdição ou do duplo grau de recurso -, são suficientes para concluir que o sentido normativo questionado não viola o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, na vertente do direito ao recurso em processo penal.""
7 - Convocando esta jurisprudência, o Tribunal Constitucional reconhece que o recorrente já dispôs de um grau de recurso. Assim, não se verifica qualquer violação do direito ao recurso consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, na dimensão que impõe a previsão pelo legislador ordinário de um grau de recurso.
Todavia, a garantia constitucional do direito ao recurso não se esgota nesta dimensão. Na verdade, tal garantia, conjugada com outros parâmetros constitucionais, pressupõe, igualmente, que na sua regulação o legislador não adopte soluções arbitrárias e desproporcionadas, limitativas das possibilidades de recorrer - mesmo quando se trate de recursos apenas legalmente previstos e não constitucionalmente obrigatórios (assim, v. os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 1229/96 e 462/2003, consultáveis em www.tribunalconstitucional.pt).
A questão de constitucionalidade objecto do presente recurso coloca, na verdade, um problema de violação do princípio da igualdade articulado com o direito ao recurso. E isso sucede na medida em que da interpretação normativa em causa apenas resulta um condicionamento da recorribilidade para o arguido e não já para o Ministério Público. Com efeito, o Ministério Público ao recorrer no sentido do agravamento da responsabilidade do arguido impede o funcionamento do artigo 409.º do Código de Processo Penal. E o mesmo se passa, de acordo com tal dimensão normativa, com o assistente.
O Tribunal Constitucional, no citado Acórdão 640/2004, também apreciou a conformidade à Constituição da norma impugnada, tendo por parâmetro o princípio da igualdade de armas. No aresto referido, depois de sublinhar que o processo penal não é um "processo de partes", explicitou que o fundamento da inadmissibilidade do recurso nesta constelação de casos é a pouca relevância da questão a decidir, aferida em função da pena que pode ser aplicada em concreto.
O Tribunal realçou também que, no âmbito de um recurso a interpor pelo Ministério Público, a defesa poderá ainda pugnar pela atenuação da pena ou até pela absolvição.
No entanto, cabe evidenciar de novo que a interpretação normativa que veda a possibilidade de recurso depende, no seu teor, da proibição da reformatio in pejus. Por outro lado, o Tribunal Constitucional, no Acórdão 499/97 (Diário da República, 2.ª série, de 21 de Outubro de 1997), referiu que o fundamento constitucional da proibição da reformatio in pejus é a protecção do direito de recorrer, removendo a lei, por via de tal proibição, uma inibição natural que poderia limitar a iniciativa de interpor recurso por parte da defesa. Mas, na questão de constitucionalidade de que agora se trata, o funcionamento da proibição da reformatio in pejus, instituto que, como se viu, encontra a sua justificação na tutela constitucional do direito de recurso, tem um efeito "periférico" ou "colateral" que se traduz numa limitação do direito de recorrer. Assim, trata-se de uma decorrência lateral da proibição da reformatio in pejus que ultrapassa a essência do seu sentido constitucional.
8 - Por força do funcionamento da proibição da reformatio in pejus incorporada na citada dimensão normativa, é, pois, negada a universalidade de uma regra de irrecorribilidade (no sentido de abranger todos os sujeitos processuais), já que a proibição de reforma da decisão em desfavor do arguido não funciona na perspectiva da acusação.
Na verdade, mesmo que fosse aceitável constitucionalmente uma limitação do recurso apenas quanto ao arguido, não se justificaria que o Ministério Público também ficasse limitado quando pretendesse interpor o recurso no exclusivo interesse da defesa. Uma tal hipótese levaria à consagração de uma regra em que a recorribilidade seria limitada para tudo o que implicasse o interesse da defesa e já não quando estivesse em causa o agravamento da posição do arguido.
O argumento segundo o qual a igualdade não estaria em causa com esta interpretação normativa por força do estatuto do Ministério Público não é procedente, pois a função do Ministério Público não se circunscreve à representação do interesse da acusação.
Não é, por conseguinte, o estatuto do Ministério Público que se reflecte na presente interpretação normativa, mas apenas um funcionamento anómalo da proibição da reformatio in pejus.
Por outro lado, a argumentação a partir do estatuto do Ministério Público não abrange sequer o assistente.
Verifica-se, portanto, uma arbitrária e desproporcionada desigualdade entre a posição do arguido e a posição da acusação quanto ao direito ao recurso.
Ante estas razões, conclui-se pelo desrespeito da igualdade na regulamentação do direito ao recurso.
9 - Por fim, a garantia constitucional do direito ao recurso pressupõe uma determinação prévia desse direito e das condições do respectivo exercício que o torne susceptível de reconhecimento pelo respectivo titular no momento relevante para o seu exercício - o da notificação do acórdão - e que não o condicione ao comportamento de outros sujeitos processuais. Ora, também neste plano se divisa um enfraquecimento da garantia constitucional do direito ao recurso na interpretação normativa em crise.
III - Decisão. - 10 - Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar inconstitucional, por violação do direito ao recurso, conjugado com o princípio da igualdade (artigos 32.º, n.º 1, e 13.º, n.º 1, da Constituição), a norma constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal na interpretação segundo a qual não é admissível o recurso interposto apenas pelo arguido para o Supremo Tribunal de Justiça quando a pena de prisão prevista no tipo legal de crime for superior a 8 anos mas a pena concretamente aplicada ao arguido - insusceptível de agravação por força da proibição da reformatio in pejus - tenha sido inferior a 8 anos.
Nestes termos, é concedido provimento ao recurso e revogada a decisão recorrida, que deverá ser reformulada de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 15 de Novembro de 2005. - Maria Fernanda Palma - Mário José de Araújo Torres - Benjamim Rodrigues - Paulo Mota Pinto - Rui Manuel Moura Ramos (com a declaração de que assim me afasto, após melhor reflexão, da conclusão dos Acórdãos n.os 451/2003 e 102/2004, que subscrevi, mas onde no entanto o Tribunal se limitou a apreciar a questão de constitucionalidade sob a perspectiva da não consagração constitucional de um 3.º grau de recurso, e não já nos mais alargados termos ora constantes dos n.os 7 e 8 do presente acórdão).