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Acórdão 136/2016, de 30 de Março

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Sumário

Não declara a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 5.º, n.º 3, 12.º, 18.º, 22.º, 24.º, n.º 5, e 26.º do Decreto-Lei n.º 38/2015, de 12 de março (desenvolve as Bases da Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional, na parte em que se aplicam à Região Autónoma dos Açores); não declara a ilegalidade das normas constantes dos artigos 12.º, 15.º, n.º 2, 18.º, 22.º, 26.º, 35.º, 97.º, 98.º, e 107.º do mesmo decreto-lei; não declara a ilegalidade consequente das restantes normas

Texto do documento

Acórdão 136/2016

Processo 521/15

I - Relatório

1 - O Presidente do Governo Regional dos Açores, ao abrigo do disposto na alínea g), do n.º 2, do artigo 281.º da Constituição da Re-pública Portuguesa (CRP) e do artigo 51.º da Lei 21/82, de 15 de novembro, na redação em vigor (LTC), requereu a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade e da ilegalidade das normas dos artigos 5.º, n.º 3, 12.º, 15.º, n.º 2, 18.º, 22.º, 24.º, n.º 5, 26.º, 35.º, 97.º, 98.º e 107.º, e, em consequência, de todas as demais disposições do Decreto Lei 38/2015, de 12 de março, diploma que desenvolve as Bases da Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional, aprovadas pela Lei 17/2014, de 10 de abril.

2 - O requerente alega, em síntese, o seguinte:

- O território da Região Autónoma dos Açores (RAA) abrange, não apenas as ilhas do arquipélago dos Açores e seus ilhéus (n.º 1 do artigo 2.º do EPARAA), como também as águas interiores, o mar territorial e a plataforma continental contíguas ao arquipélago (n.º 2 do artigo 2.º do EPARAA). - É por isso que do artigo 8.º do EPARAA se extrai o “princípio de concorrência de competências estaduais e regionais” no domínio do mar. Na verdade, o facto de o Estado ser o titular dos bens do domínio público marítimo não significa que as Regiões Autónomas não tenham direitos e prerrogativas quanto a esses mesmos bens, tal como está subjacente aos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA. Enquanto no n.º 1 se visa garantir que os poderes que o Estado detenha sobre os bens que integram o domínio público marítimo estadual devem ser exercidos conjuntamente com a RAA, no n.º 3, com um objeto mais alargado, dado que compreende no seu âmbito a gestão de todas as zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional, visa-se instituir um princípio de gestão partilhada entre o Estado e a RAA. Além disso, o n.º 2 do artigo 8.º do EPARAA atribui expressamente à Região os poderes exclusivos de licenciamento da utilização privativa do domínio público marítimo, das atividades de extração de inertes, da pesca e das energias renováveis.

- Ora, para além do necessário limite da integridade e soberania do Estado, o artigo 8.º do EPARAA não densifica o princípio da gestão partilhada. No entanto, num domínio em que existem atribuições de exercício comum e repartido tem que haver uma definição prévia daquilo que pode ou não ser partilhado, assim como dos termos concretos em que se processa a partilha, a que acresce, como é natural, que a própria definição do que pode, ou não, ser partilhado, nunca poderá ser tomada de modo unilateral e sem um processo de coordenação e concertação entre os órgãos de soberania e os órgãos de governo próprio das regiões autónomas. Na medida em que as concretas formas de utilização do domínio público, nomeadamente quanto ao regime de licenciamento e contratos de concessão, são uma das matérias incluídas no n.º 2 do artigo 84.º da CRP que escapam à previsão do artigo 165.º, n.º 1, alínea v) da CRP, cabem na concorrência legislativa concorrente da Assembleia da República e do Governo.

- Tanto a Lei 17/2014, de 10 de abril (que estabeleceu as Bases da Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional), quanto o Decreto Lei 38/2015, de 12 de março (que desenvolveu aquela última), têm por objeto o estabelecimento de um quadro regulatório aplicável ao ordenamento e à gestão das atividades desenvolvidas no espaço marítimo nacional, incluindo as que têm lugar nos espaços marítimos adjacentes às Regiões Autónomas. Ora, a alínea a), do n.º 1, do artigo 84.º da CRP estabelece que “pertencem ao domínio público [...] as águas territoriais com os seus leitos e os fundos marítimos contíguos [...]”. Já

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de acordo com o disposto no artigo 4.º da Lei 54/2005, “o domínio público marítimo pertence ao Estado”, daqui decorrendo que os espaços marítimos adjacentes ao arquipélago dos Açores integram o domínio público estadual.

- Porém, da inserção destes espaços marítimos no âmbito do domínio público estadual não decorre a impossibilidade de a sua gestão ser confiada a outra entidade, designadamente porque nada impede que - em paralelo com as atividades ligadas à soberania nacional da competência exclusiva das autoridades estaduais - outras atividades de caráter estritamente económico possam ser desenvolvidas pelas Regiões Autónomas. Neste último caso, do que se trata verdadeiramente não é de saber se a titularidade dos espaços marítimos nacionais pode ser transferida para as Regiões Autónomas, mas antes se a gestão desses espaços pode, pelo menos parcialmente, caber aos órgãos de governo próprio da Região Autónoma.

- Assim, se os artigos 22.º e 23.º do EPARAA reconhecem (explícita ou implicitamente) que os bens afetos ao domínio público marítimo não integram a esfera de dominialidade regional, já o artigo 8.º do EPARAA enquadra os termos de referência do quantum da transferência de competências gestionárias do Estado para a RAA. Apesar das dificuldades hermenêuticas que esta norma encerra, parece seguro que os n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA não estabelecem um mero direito de participação (mesmo que obrigatória) num procedimento cuja decisão final caiba exclusivamente a um órgão do Estado. Pelo contrário, cabe ao legislador ordinário definir o modelo concreto de concertação da vontade decisória dos órgãos regionais e nacionais e desta forma densificar o modelo específico de partilha ou exercício conjunto dos poderes de gestão relativos ao domínio público marítimo adjacente ao arquipélago dos Açores.

- Ora, a Lei 17/2014 introduziu na ordem jurídica portuguesa as bases da política de ordenamento e de gestão do espaço marítimo nacional, tendo em vista assegurar a utilização sustentável de todo o espaço marítimo nacional. Só por aqui já se antevê que o objeto deste ato normativo em nada contende com questões de dominialidade pública ou de exercício de soberania nacional, mas antes com o exercício de funções administrativas, nomeadamente (i) a adoção de instrumentos de ordenamento e gestão do espaço marítimo e (ii) a tramitação de procedimentos administrativos relativos aos usos e atividades a desenvolver nesse espaço.

- No que respeita ao primeiro vetor (o ordenamento e gestão do espaço marítimo), a Lei 17/2014 estabeleceu o primeiro entorse ao quadro de gestão conjunta ou partilhada definido nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA, ao atribuir ao Governo da República a competência exclusiva para a aprovação dos planos de situação e de afetação (cf. n.º 2 do artigo 5.º e artigo 8.º).

- Por seu turno, o Decreto Lei 38/2015 densifica, aparentemente, o modelo de gestão conjunta ou partilhada do espaço marítimo, o qual, grosso modo, se traduz na distinção entre duas competências:

(i) a competência de ordenamento do espaço marítimo, referente à adoção de planos de situação ou de afetação (atribuída em exclusivo ao Governo da República); e (ii) a competência para a emissão de títulos de utilização privativa do espaço marítimo (atribuída em exclusivo às Regiões Autónomas se a atividade se desenvolver no espaço marítimo adjacente ao respetivo arquipélago até ao limite das 200 milhas marítimas).

- Porém, no modelo gizado pelo artigo 8.º do EPARAA, esta segunda competência (para a emissão de títulos de utilização privativa) era já exclusiva das Regiões Autónomas, ao passo que a primeira competência (para a adoção de instrumentos de gestão do espaço marítimo adjacente) deveria ter sido sujeita a um modelo de gestão conjunta ou partilhada, o que não sucedeu. De facto, reduziu-se mesmo a posição procedimental das Regiões Autónomas no seu processo de elaboração, tendo-se, além do mais, comprimido as competências de ordenamento do território que, até então, estavam alocadas a esfera da Região Autónoma, por força do disposto nos artigos 53.º e 57.º do EPARAA.

- Assim acontece com o n.º 3 do artigo 5.º de Decreto Lei 38/2015, ao determinar que, para garantir uma melhor articulação e compatibilização entre os planos de situação e de afetação e os demais instrumentos de gestão territorial preexistentes, aqueles últimos devem conter uma identificação expressa “das normas incompatíveis dos programas e planos territoriais preexistentes que devem ser revogadas ou alteradas”. Deste modo, esta disposição assume que os planos de situação ou de afetação elaborados pelo Governo da República prevalecem sobre os programas e planos territoriais adotados pela Região Autónoma ao abrigo da sua competência normativa específica, identificada no artigo 57.º do EPARAA. Ao fazêlo, está a comprimir a competência legislativa regional à margem do texto constitucional e estatutário, sendo por isso inconstitucional, por violação do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 227.º e do n.º l do artigo 228.º, ambos da CRP.

- Por seu turno, o artigo 12.º desse decretolei determina que a competência para a elaboração de um plano de situação compete exclusivamente ao Governo da República (cf., em especial, o n.º 6), reduzindo o papel da Região Autónoma a um direito não qualificado de consulta, ou a um direito de elaboração (mas não de aprovação) de um plano de situação dos espaços marítimos adjacentes até às 200 milhas marítimas. Ao fazêlo, está a violar o disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA, sendo por isso ilegal, na medida em que descura o facto de estatutariamente este poder dever ser partilhado ou exercido conjuntamente. Pelas mesmas razões, o artigo 18.º do mesmo diploma, ao especificar que o plano de situação elaborado pe1a Região Autónoma tem de ser aprovado pelo Governo da República, está a violar o disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA, sendo por isso ilegal.

- Em termos simétricos, os artigos 22.º e 26.º, ao determinarem a aplicação, no âmbito do plano de afetação, do disposto nos n.os 2 a 6 do artigo 12.º e no artigo 18.º, violam igualmente o disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA.

- Acresce que os artigos 12.º, 18.º, 22.º e 26.º, ao comprimirem a competência normativa regional à margem do texto constitucional e estatutário, (designadamente das competências especificamente identificadas na alínea a), do n.º 2, do artigo 53.º e no artigo 57.º do EPARAA), são inconstitucionais, por violação do disposto na a1ínea a), do n.º 1, do artigo 227.º e no n.º 1 do artigo 228.º da CRP.

- Ainda neste quadro, o disposto no n.º 2 do artigo 15.º-ao determinar que o parecer da comissão consultiva, que integra os representantes das Regiões Autónomas (cf. n.º 2 do artigo 14.º) e emite um parecer não vinculativo (cf. n.º 6 do artigo 14.º), substitui os pareceres que a Região deveria emitir se quando consultada na elaboração de um plano de situação ou de afetação - está a reduzir a posição procedimental da Região Autónoma, sendo por isso ilegal, por violar o disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA.

- Para além disso, o artigo 35.º-em linha de coerência com o disposto nos artigos 30.º a 34.º-prevê a possibilidade de ser celebrado com um particular interessado um contrato para ordenamento, o qual tem por objeto a elaboração de um plano de afetação. Na medida em que a competência para a sua celebração pertence exclusivamente ao

Governo da República, o artigo 35.º é ilega1, por violar o disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA.

- Por seu turno, os artigos 97.º e 98.º reportam-se ao ordenamento da atividade aquícola e à emissão de títulos de utilização privativa dos recursos hídricos em águas de transição para fins aquícolas - atividades que cabem na esfera de competência da Região Autónoma, por força do disposto na alínea d), do n.º 2, do artigo 53.º e no artigo 57.º do EPARAA, sendo por isso os artigos 97.º e 98.º ilegais, por violação do disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA.

- Por fim, o artigo 107.º, que remete para legislação regional a adaptação do regime constante deste decretolei para as especificidades regionais, é ilegal, por violação do disposto nos n.os l e 3 do artigo 8.º do EPARAA, porquanto - bem se sabendo que a Região Autónoma não pode legislar sobre esta matéria sem extravasar o âmbito regional e invadir a esfera de competência própria dos órgãos de soberania - está a cristalizar a situação de ilegalidade e a impedir a Região Autónoma dos Açores de exercer o seu direito de gestão conjunta ou partilhada dos espaços marítimos adjacentes. - A inconstitucionalidade e ilegalidade referidas nos parágrafos anteriores afetam - no que à aplicação à Região Autónoma dos Açores diz respeito - o Decreto Lei 38/2015 na sua globalidade, pois, estando em causa as próprias travesmestras do regime jurídico deste diploma, não subsistem normas neste diploma que possuam autonomia suficiente para permanecerem na ordem jurídica.

O requerente fez ainda acompanhar o seu pedido de um parecer jurídico.

3 - Notificado para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, o PrimeiroMinistro, ao abrigo do disposto no artigo 54.º da LTC, opôs-se à sua procedência, alegando, em síntese, o seguinte:

- Os artigos 12.º, 18.º, 22.º, 26.º e 35.º do Decreto Lei 38/2015, de 12 de março - as disposições que constituem o núcleo essencial do juízo de censura constante do pedido - desenvolvem as opções assumidas na Lei 17/2014, de 10 de abril, que veio estabelecer as bases da política de ordenamento e de gestão do espaço marítimo nacional, matéria cujo tratamento legislativo é reservado pela Constituição à Assembleia da República (alíneas v) e z) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP). Deste modo, o sentido normativo daquelas disposições já se encontrava definido, sendo evidente que aquele decretolei não poderia regular de modo diferente, sob pena de ilegalidade por violação da Lei 17/2014.

- O principal parâmetro normativo do controlo da legalidade indicado no pedido é o dos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA. Neste âmbito, a divergência entre a posição do requerente e a do Governo não parece estar ao nível dos princípios sobre os quais assenta o relacionamento da intervenção nacional e regional, mas antes quanto à medida ou à quantidade da sua concretização. Na verdade, é pacífico que o Estado, e apenas o Estado, é titular do domínio público marítimo, já que os bens que o integram se apresentam como essenciais para a sua definição identitária. Ora, o corolário principal deste pressuposto é o da aplicação estrita do regime típico do domínio público:

insusceptibilidade de alienação, intransmissibilidade e inegociabilidade. Tal regime, contudo, não impede o titular do domínio público, caso assim o entenda, de transmitir a terceiros o exercício de poderes instrumentais, genericamente designados como “poderes de gestão” e associados ao aproveitamento económico do bem.

- A este propósito, cabe igualmente recordar os trabalhos da Comissão do Domínio Público Marítimo,

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que concluiu pela impossibilidade de transferência para as regiões autónomas de “poderes primários” sobre o domínio público marítimo (que é um domínio público necessário), admitindo a transferência de “poderes secundários” fundamentalmente associados à atribuição de direitos de uso privativo (aproveitamento) - cf. Parecer da Comissão do Domínio Público Marítimo n.º 5945, in Boletim da Comissão do Domínio Público Marítimo, n.º 116, 2002.

- Ora, no âmbito do ordenamento do território e do urbanismo, a distinção entre poderes “primários” e “secundários” deu origem a dois regimes jurídicos distintos:

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o regime jurídico dos instrumentos de programação e planeamento territorial (ligado à decisão sobre a distribuição das funções no território e sobre a ocupação do solo) e o regime jurídico da urbanização e da edificação (ligado à execução das decisões de programação e planeamento, através da atividade de gestão urbanística). Este exemplo (que se situa num plano semelhante ao do ordenamento do espaço marítimo) evidencia o facto de os poderes de ordenamento, programação e planeamento assumirem natureza distinta da dos poderes de administração ou gestão dos bens e suas utilidades (pré-definidas). Estando indissociavelmente ligados à conformação destas utilidades, os poderes de ordenamento do território não são, assim, poderes meramente instrumentais ou de mera gestão, mas antes poderes principais que expressam opções básicas e essenciais para a vida da comunidade.

- Tendo em conta o comando constitucional e o disposto do artigo 8.º do EPARAA, o Decreto Lei 38/2015, de 12 de março, densificou, pela primeira vez, o conceito de gestão partilhada aplicada ao domínio público marítimo. Os princípios em que se baseia o diploma são os seguintes:

- Os poderes de decisão quanto ao ordenamento, programação e planeamento das utilidades públicas associadas ao espaço marítimo nacional constituem poderes primários indispensáveis à garantia da subsistência do domínio, razão pela qual não podem ser transmitidos a órgãos de qualquer outra pessoa coletiva pública, para além do Estado. Do mesmo modo, os poderes de gestão incindíveis do exercício de poderes primários não podem também ser transmitidos a terceiros, já que uns dependem dos outros.

- Os poderes instrumentais de gestão dos bens do domínio público marítimo adjacentes à Região Autónoma dos Açores devem ser objeto de um exercício conjunto no quadro de uma gestão partilhada, assegurando a existência de mecanismos institucionais que permitam a ocorrência de fluxos de comunicação e manifestação de vontade. Os mecanismos institucionais destinados a concretizar o conceito difuso de “exercício conjunto no quadro de uma gestão partilhada” podem variar em função das matérias concretas e dos objetivos específicos, conquanto assegurem a possibilidade de uma real e efetiva ponderação da vontade dos órgãos da República e dos órgãos da Região. É que, ao contrário do pensamento subjacente ao pedido, os n.os 1 e 3 do artigo 8.º dos EPARAA não impõem o estabelecimento de mecanismos de codecisão relativamente aos poderes abrangidos pelo exercício conjunto no quadro de uma gestão partilhada. - Deste modo, os poderes relativos à aprovação dos planos de situação e de afetação são poderes exclusivos do Estado que, pela sua natureza, escapam à qualificação como poderes de gestão instrumental dominial. Ao invés, constituem um poder essencial para salvaguardar a dominialidade do espaço marítimo nacional e, consequentemente, a sua titularidade pelo Estado. Ora, não integrando o âmbito dos “pode-res de gestão”, não se encontram sujeitos a um “exercício conjunto no quadro de uma gestão partilhada”, por força dos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA. Neste contexto, é entendimento do Governo não lhe ser permitido proceder à transmissão, delegação ou alienação dos poderes de decisão quanto ao ordenamento dos usos e atividades no espaço marítimo nacional, e que devem contribuir para (ou pelo menos não pôr em causa) a manutenção das utilidades públicas que justificam a dominialidade (necessária) do bem.

- Na verdade, seria mesmo inconstitucional a atribuição de poderes de decisão final quanto ao ordenamento do espaço marítimo nacional aos órgãos de governo próprio da Região, em detrimento da exclusividade constitucionalmente atribuída aos órgãos do Estado. A manutenção do poder de decisão nesta matéria funciona, aliás, como uma cláusula de salvaguarda relativa a bens cuja integração necessária no domínio público não resulta de considerações relativas à Região, mas ao Estado.

- Já os poderes relativos à iniciativa e elaboração dos instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional foram configurados pelo Governo a partir de uma perspetiva de alargamento e aprofundamento da atuação cooperativa entre o Estado e a Região Autónoma dos Açores. Não se limitando a cumprir a exigência de adoção de mecanismos de participação reforçada prevista nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do Estatuto PolíticoAdministrativo da Região Autónoma dos Açores, o Governo procurou alargar tanto quanto possível a necessidade de atuação conjunta e articulada. É assim que a iniciativa pode ser assumida quer pelos órgãos do Estado quer pelos órgãos da Região Autónoma; é assim, também, com a conformação material das opções de ordenamento plasmadas nos instrumentos em causa; mais, a iniciativa nacional não preclude a possibilidade de assunção dos poderes materiais de elaboração do instrumento em causa por parte dos órgãos da Região.

- Todas as outras situações de alegada ilegalidade e inconstitucionalidade imputadas no requerimento inicial ao Decreto Lei 38/2015, de 12 de março, têm natureza secundária ou derivada. Em consequência, o pedido de constatação da contaminação global do diploma normativo pelas alegadas ilegalidades e inconstitucionalidades parcelares não faz qualquer sentido e não carece de ponderação acrescida.

- No que toca ao n.º 3 do artigo 5.º, não estão em causa só os planos de situação e afetação elaborados pelo Governo, mas também os planos de situação e afetação elaborados pela Região Autónoma, o que afasta o espectro da ingerência no espaço da autonomia. Por outro lado, a disposição em causa não é uma disposição que estabelece mecanismos de prevalência, mas uma disposição que estabelece mecanismos de compatibilização. Pretende o legislador evitar desconformidades entre os diferentes instrumentos de ordenamento, identificando os focos de conflito e as soluções de superação, salvaguardando a interação marterra em sede de ordenamento.

- O mesmo acontece com o n.º 2 do mesmo artigo 15.º, uma norma procedimental que significa, tão só, a desnecessidade de duplicação de momentos procedimentais, bastando que um dos momentos ou trâmites assuma as funções do outro ou dos outros. É uma norma de simplificação administrativa e de desburocratização da atividade. Não parece que o artigo 8.º do EPARAA exija ou imponha a repetição dos momentos de intervenção procedimental da Região, conquanto a sua intervenção permita concentrar e canalizar a manifestação de vontade relevante.

- Finalmente, uma referência às normas dos artigos 97.º, 98.º e 107.º do Decreto Lei 38/2015, de 12 de março, as quais, no entendimento do Governo, devem ser consideradas conjuntamente. O artigo 107.º remete para legislação regional a adaptação do regime constante do decretolei às especificidades regionais. As especificidades regionais que podem estar em causa não são naturalmente especificidades materiais ou substantivas, mas antes adaptações orgânicas, formais e procedimentais. Independentemente das referências específicas às regiões autónomas constantes de várias normas do Decreto Lei 38/2015, existem muitos aspetos dos regimes jurídicos consagrados no decretolei que têm de ser adaptados à estrutura da Administração Pública regional, aos procedimentos administrativos específicos, às formas de atuação expressamente previstas em cada região. Essa adaptação é necessária para permitir a efetiva execução das normas em causa no território da Região.

- Os artigos 97.º a 99.º, desenvolvendo o artigo 28.º da Lei 17/2014, de 10 de abril, regulam a utilização privativa dos recursos hídricos em águas de transição para fins aquícolas. Estas são, aliás, as únicas disposições do diploma que dizem respeito a massas de água que não estão incluídas no espaço marítimo nacional e que foram previstas no diploma tendo em vista, apenas, a regulação da atividade da aquicultura. As Regiões Autónomas, por força do artigo 107.º, devem promover a aprovação dos necessários decretos legislativos regionais para proceder à adaptação daquelas normas às especificidades regionais. Como é manifesto, não se pretendeu que a Administração Pública continental passasse a exercer competências que já estão a ser exercidas atualmente pela Administração Pública da região.

- Não se crê que a previsão do poder de adaptação de regimes gerais às especificidades administrativas regionais, prevista no artigo 107.º, determine uma violação do artigo 8.º do EPARAA.

- Por fim, cabe referir que as alegadas inconstitucionalidades invocadas no pedido vêm configuradas como meramente consequenciais da ilegalidade supostamente resultante da violação do n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA. Não ocorrendo as ilegalidades também não se verificam as consequentes inconstitucionalidades.

4 - Discutido o memorando elaborado pelo Presidente do Tribunal (artigo 63.º da LCT), cumpre formular a decisão em conformidade com a orientação que fez vencimento (artigo 65.º da LCT).

II - Fundamentação 5 - Delimitação do objeto do pedido. 5.1 - O requerente solicita a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade e da ilegalidade de determinadas normas do Decreto Lei 38/2015, de 12 de março - as extraídas dos artigos 5.º, n.º 3, 12.º, 15.º, n.º 2, 18.º, 22.º, 24.º, n.º 5, 26.º, 35.º, 97.º, 98.º e 107.º-e de todas as demais que em consequência dessa declaração deixam de ter subsistência jurídica autónoma.

O pedido é efetuado ao abrigo do disposto na alínea g), do n.º 2, do artigo 281.º da Constituição (só por lapso, no artigo 1.º do pedido, é indicado o artigo 287.º), fundando-se o pedido de declaração de inconstitucionalidade na violação do disposto nos artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1, da Constituição, disposições que versam sobre a autonomia legislativa das regiões autónomas e, portanto, sobre os “direitos das regiões autónomas” e o pedido de declaração de ilegalidade na violação do disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA, preceito que regula os direitos da Região sobre as zonas marítimas adjacentes ao território regional.

Fundando-se o pedido de inconstitucionalidade na violação dos direitos das regiões autónomas e o pedido de declaração de ilegalidade na violação do respetivo estatuto, de onde advém a legitimidade do requerente, as normas por ele indicadas só podem fazer parte do objeto de fiscalização enquanto normas aplicáveis à Região Autónoma dos Açores. Como as normas do Decreto Lei 38/2015, abrangem a totalidade do espaço marítimo nacional e não apenas as zonas marítimas que fazem parte do território regional - mar territorial e plataforma continental contíguos ao arquipélago - há uma dimensão aplicativa das normas questionadas que não se limita exclusivamente à relação entre o Estado e a Região Autónoma dos Açores. Nessa medida - e em harmonia com o que consta do pedido-, uma eventual declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade das normas em causa valerá exclusivamente para a parte em que se aplicam à Região Autónoma dos Açores.

Por outro lado, os pedidos de declaração de inconstitucionalidade e de ilegalidade incidem, na síntese expressa nos artigos 1.º e 63.º do requerimento inicial, sobre a totalidade das disposições normativas aí referidas, sem distinção entre um juízo e o outro. No entanto, na fundamentação já não é assim, sendo alegado o vício simultâneo da inconstitucionalidade e da ilegalidade apenas em relação a parte das normas assinaladas. No que respeita às restantes, alega-se unicamente a sua inconstitucionalidade ou a sua ilegalidade e não ambas.

Assim, padeceria em exclusivo do vício de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1, da Constituição, a norma que consta do artigo 5.º, n.º 3, do Decreto Lei 38/2015; padeceriam em exclusivo de ilegalidade, por violação dos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA, as normas que constam dos artigos 15.º, n.º 2, 35.º, 97.º e 98.º, e 107.º, todos do diploma sob escrutínio; e padeceriam de ambos os vícios, por violação das disposições constitucionais e estatutárias já assinaladas, as normas que constam dos artigos 12.º, 18.º, 22.º e 26.º do mesmo diploma.

Naturalmente que a apreciação dos vícios invocados terá em conta esta precisão diferenciadora, constante da fundamentação do pedido.

A norma do artigo 24.º, n.º 5, embora referida nos artigos 1.º e 61.º do pedido, não consta depois da respetiva fundamentação. Dado o seu conteúdo, a questão que eventualmente coloca relaciona-se com o disposto no artigo 5.º, n.º 3, pelo que apreciaremos as duas normas em conjunto.

Tendo sido pedidas, cumulativamente, a declaração de inconstitucionalidade e a de ilegalidade das normas assinaladas, este Tribunal deverá apreciar em primeiro lugar a questão de constitucionalidade e só depois, se for caso disso, a questão de legalidade. É que, como se diz no Acórdão 268/88, apesar da declaração de inconstitucionalidade e a de ilegalidade com força obrigatória geral produzirem, de acordo com o disposto no artigo 282.º da Constituição, os mesmos efeitos,

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concorrendo os dois vícios, a inconstitucionalidade, como vício mais grave (vício que põe afinal em xeque a própria Constituição, cuja superioridade hierárquica - Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4.ª edição, página 601 - “relativamente às outras normas implica uma relação axiológica entre a constituição e essas normas, precisamente porque a sua primariedade postula uma maior força normativa”), por via de regra prejudicará o conhecimento da ilegalidade, vício menos grave

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5.2 - Importa ainda sublinhar que, para a apreciação da constitucionalidade e legalidade das normas em questão do Decreto Lei 38/2015, de 12 de março, não há necessidade deste Tribunal tecer considerações adicionais sobre a sua relação com a Lei 17/2014, de 10 de abril, ou sobre a constitucionalidade ou legalidade deste último diploma. Tendo em conta o princípio do pedido (artigo 51.º, n.º 5, 1.ª parte, da LTC), não o deverá fazer, já que nenhuma disposição da Lei de Bases foi impugnada pelo requerente.

O PrimeiroMinistro invocou que o Decreto Lei 38/2015, aprovado

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nos termos das alíneas a) e c) do artigo 198.º da Constituição

»

, é um decretolei de desenvolvimento da Lei de Bases da Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional (LBPOGEMN) - a Lei 17/2014-, matéria cujo tratamento legislativo é reservado pela Constituição à Assembleia da República (alíneas v) e z) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP); por isso, as normas dos artigos 12.º, 18.º, 22.º e 26.º desse diploma, que constituem o núcleo central do pedido, desenvolvem as opções assumidas na LBPOGEMN, mais precisamente, o seu artigo 8.º, e nem poderia ser de outra forma, sob pena de ilegalidade, por violação de lei com valor reforçado.

No entanto, um decretolei de desenvolvimento, independentemente da sua relação com a respetiva lei de bases, está submetido à Constituição. Nesta medida, pode, ele próprio, violar o disposto nos artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º da Constituição, sendo tal inconstitucionalidade direta e não derivada.

O mesmo vale, mutatismutandis, para a questão da legalidade, face ao EPARAA, e ainda que, por hipótese, a matéria regulada pela LBPOGEMN integre a reserva relativa de competência legislativa da As-sembleia da República. É que os estatutos políticoadministrativos das regiões autónomas, de acordo com o disposto na alínea d), do n.º 1, do artigo 281.º da Constituição, valem, na matéria que lhes é reservada, sobre todas as leis ordinárias, com valor reforçado ou não (Blanco de Morais, Curso de Direito Constitucional, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2012, p. 406). Não estando em causa a inconstitucionalidade do próprio EPARAA, quer a LBPOGEMN quer o Decreto Lei 38/2015 estãolhe submetidos, sendo diretamente ilegais se não cumprirem o que se dispõe nesse estatuto.

Além do mais, ainda que se admitisse que a opção tomada no Decreto-Lei 38/2015 era a única possível face ao disposto na LBPOGEMN, com isso apenas se eliminaria um fundamento adicional de invalidade do decretolei em causa:

a sua ilegalidade por violação da lei de bases. Todavia, não cabe ao Tribunal Constitucional, no âmbito do presente pedido, apurar se esta ilegalidade se verificaria se fosse outra a opção plasmada no Decreto Lei 38/2015.

6 - Mérito do pedido. 6.1 - O Decreto Lei 38/2015, de cujos preceitos se extraem as normas impugnadas, estabelece o regime jurídico dos instrumentos de ordenação do espaço marítimo nacional e o regime jurídico aplicável aos títulos de utilização privativa do mesmo espaço. Aplicando-se ao espaço marítimo nacional, tal como definido na LBPOGEMN, importa preliminarmente, e antes de responder às questões de inconstitucionalidade e de ilegalidade, delimitar os bens integrantes desse espaço e definir o respetivo estatuto jurídico, dada a implicação que podem ter no julgamento daquelas questões.

As zonas marítimas sobre as quais o Estado exerce poderes de soberania ou de jurisdição, são as que constam da Lei 34/2006, de 28 de julho, em articulação com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 10 de dezembro de 1982 (CNUDM), ou seja:

(i) as águas interiores, as situadas no lado terrestre das linhas de base que marcam o início do mar territorial (artigo 8.º da CNUDM). Sobre elas, o Estado detém um “poder dominial soberano”, absoluto e exclusivo, que é um poder coincidente com os que são exercidos sobre o território terrestre, não havendo sequer o direito de passagem inofensiva, nem a passagem em trânsito sem autorização, exceto em circunstâncias muito específicas;

(ii) o mar territorial, que tem como limite exterior a linha cujos pontos distam 12 milhas náuticas do ponto mais próximo das linhas de base (artigo 6.º da Lei 34/2006). Nesta zona, o Estado tem o “domínio soberano”, exercido através de consideráveis poderes normativos e administrativos, incluindo poderes de autotutela administrativa, mas com as limitações decorrentes da CNUDM, em especial, o direito de passagem inofensiva (artigos 17.º e 21.º);

(iii) a zona contígua, que tem por limite exterior a linha cuja dis-tância relativamente ao ponto mais próximo das linhas de base se fixa nas 24 milhas náuticas (artigos 5.º e 7.º da CNUDM e artigo 7.º da Lei 34/2006). É uma zona marítima em que o Estado não dispõe de soberania, mas apenas poderes de jurisdição e fiscalização destinados a evitar e reprimir as infrações às leis e regulamentos aduaneiros, fiscais, de imigração ou sanitários que sejam praticadas no seu território ou mar territorial (artigo 33.º da CNUDM e artigo 16.º da Lei 34/2006);

(iv) a zona económica exclusiva, que tem como limite exterior a linha cujos pontos distam 200 milhas náuticas do ponto mais próximo das linhas de base (artigo 57.º da CNUDM e artigo 8.º da Lei 34/2006). Aí, o Estado exerce direitos de soberania no que respeita à fruição dos recursos naturais (vivos e não vivos), mas não sobre o próprio espaço (a coluna de água), assim como poderes de jurisdição referentes à colocação de ilhas artificiais, instalações e estruturas, à investigação científica marinha, e à proteção e preservação do meio marinho (artigos 53.º e 73.º da CNUDM);

(v) a plataforma continental, cujo limite exterior é dado pela linha cujos pontos definem o bordo exterior da margem continental ou pela linha cujos pontos distam 200 milhas náuticas do ponto mais próximo das linhas de base, nos casos em que o bordo exterior da margem continental não atinja essa distância (artigo 76.º da CNUDM e artigo 9.º da Lei 34/2006). Sobre esta zona, o Estado exerce direitos de soberania exclusivos sobre o solo e subsolo e sobre os recursos aí existentes, desde que não prejudiquem os direitos de Estados terceiros que visem apenas o uso do espaço (artigo 77.º da CNUDM).

Nem todas as zonas marítimas acabadas de referir correspondem ao conceito de

«

espaço marítimo nacional

» que a lei utiliza para efeito de planeamento e ordenamento. Segundo o disposto no artigo 2.º, n.º 1, da LBPOGEMN, para a qual remete expressamente o artigo 2.º, n.º 1, do Decreto Lei 38/2015, o espaço marítimo nacional estende-se
«

desde as linhas de base até ao limite exterior da plataforma continental para além das 200 milhas marítimas, e organiza-se geograficamente nas seguintes zonas marítimas:

a) entre as linhas de base e o limite exterior do mar territorial;

b) zona económica exclusiva;

c) plataforma continental, incluindo para além das 200 milhas marítimas

»

. Com esta extensão, o espaço marítimo nacional a ordenar abrange apenas o mar territorial, a zona económica exclusiva e a plataforma continental.

6.2 - Algumas das zonas marítimas referidas são objeto de direitos de domínio público, sendolhes inerente um estatuto jurídico de dominialidade, corporizado num conjunto de princípios e normas de direito público que as diferencia dos demais bens públicos e privados.

De harmonia com o disposto no artigo 84.º n.º 1, alínea a), da CRP, são bens do domínio público as “águas territoriais com os seus leitos e fundos marinhos contíguos”. No mesmo sentido, o artigo 3.º da Lei 54/2005 dispõe que integram o domínio público marítimo as águas costeiras, territoriais e interiores sujeitas à influência das marés, nos rios, lagos e lagoas, assim como o respetivo leito e margens, e os fundos marinhos contíguos da plataforma continental, abrangendo toda a zona económica exclusiva.

O conceito constitucional de

«

águas territoriais

» abrange as águas marítimas interiores e o mar territorial; e o conceito de
«

fundos marinhos contíguos

» pretende abranger a plataforma continental. De modo que o domínio público marítimo integra apenas as águas territoriais (águas internas e mar territorial) e a plataforma continental, ficando de fora a zona contígua e as águas (coluna de água e superfície) da zona económica exclusiva. Na alínea d), do artigo 3.º da Lei 54/2005 de 15 de novembro faz-se referência a esta última zona, mas só os recursos nela existentes é que podem pertencer ao domínio público, uma vez que decorre do artigo 56.º da CNUDM que nessa zona o Estado português apenas detém direitos de soberania no que tange à exploração, aproveitamento e gestão dos recursos naturais.

A integração do mar territorial e da plataforma continental no domínio público marítimo fundamenta-se essencialmente na ligação que têm com a soberania do Estado. De facto, além de se tratar de bens cuja existência e estado resultam de fenómenos naturais, qualidade que já impõe a sua dominialidade (domínio público natural), a utilidade que apresentam à coletividade pública está conexionada

«

de uma forma muito especial com a integridade territorial do Estado, e com a respetiva sobrevivência enquanto tal, senão mesmo com a própria identidade (identificação) nacional

»

(Ana Raquel Gonçalves Moniz, in, O Domínio Público. O Critério e o Regime Jurídico da Dominialidade, Almedina, pág. 292). Ora, o desempenho desta importante função tem consequências ao nível do regime jurídico aplicável, o qual há de apresentar características mais exigentes do que o previsto para bens dominiais que não se caracterizem pela mesma utilidade pública.

6.3 - Desde logo, são zonas marítimas que pertencem ao domínio público necessário, por serem

«

bens que não podem pertencer senão ao Estado, e o seu estatuto jurídico não pode ser outro senão o da dominia-lidade

»

(Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.º ed. pág. 1002). A conexão íntima do mar territorial e da plataforma continental com as funções de soberania e defesa do Estado e mesmo com a sua identidade, sujeitam esses espaços a um regime de domínio público estadual.

Em virtude do disposto no n.º 2 do artigo 84.º, em conjugação com a alínea v), do n.º 1, do artigo 165.º da CRP, compete à lei determinar os sujeitos titulares dos diversos tipos de domínio, podendo assumir-se como tal, o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais. Não obstante esta reserva de lei, referem aqueles autores que

«

é natural que certos bens não podem deixar de integrar o domínio público do Estado, por serem inerentes ao próprio conceito de soberania (como sucede com o domínio público marítimo e aéreo), não podendo por isso pertencer ao domínio público de entes públicos infraestaduais

»

(ob. cit. pág. 1004). Um critério material de definição da titularidade dominial que o artigo 4.º da Lei 54/2005 tornou indiscutível:

«

o domínio público marítimo pertence ao Estado

»

. O domínio público estadual compreende todo o mar territorial e toda a plataforma continental, incluindo assim as áreas adjacentes das Regiões Autónomas. Os espaços marinhos territoriais, ainda que integrados no território regional (artigo 2.º, n.º 2 do EPARAA), pertencem ao domínio público estadual, porque conaturais à caracterização do território do Estado Português, enquanto lugar de exercício da soberania estadual, mas também pelo significado que revestem para a própria identidade e soberania nacional e pelas funções que podem desempenhar, designadamente as de defesa e segurança nacional.

Este tem sido o entendimento da jurisprudência deste Tribunal, que reiteradamente considera o mar circundante das regiões autónomas um bem dominial integrado necessariamente no domínio público marítimo estadual, atenta a incindível conexão com a identidade e a soberania nacionais (Acórdãos n.os 280/90, 330/99, 131/2003, 654/2009, 402/2008 e 315/2014).

De igual modo defende a doutrina, que exclui do domínio público regional as águas territoriais e os fundos marinhos contíguos da plataforma continental integrados no território regional pelo facto de serem

«

inerentes ao próprio conceito de soberania

»

(Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. pág. 1004;

Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, Coimbra Editora, 2006, pág. 92;

Rui Medeiros/Tiago Fidalgo de Freitas/Rui Lanceiro, Enquadramento da Reforma do Estatuto PolíticoAdministrativo da Região Autónoma dos Açores, 2006, pág. 190;

Ana Raquel Gonçalves Moniz, “Direito do Domínio Público”, in Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. V, Almedina, pág. 109; e Fernando Alves Correia/Ana Raquel Gonçalves Moniz, Estudo sobre os Regimes Jurídicos das Zonas Costeiras da Região Autónoma dos Açores, Coimbra:

CEDOUA, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2015, pág. 26).

Em conformidade com esta jurisprudência e doutrina, o n.º 2 do artigo 22.º do EPARAA, após a 3.ª revisão, acabou por excetuar do domínio público regional os bens afetos ao domínio público militar, ao domínio público marítimo, ao domínio público aéreo e, salvo quando classificados como património cultural, os bens dominiais afetos a serviços públicos não regionalizados.

6.4 - Sendo o Estado e só ele a pessoa coletiva pública competente para exercer os direitos dominiais resultantes da soberania e jurisdição que tem sobre aquelas zonas marítimas, cabe à lei, no quadro do disposto no n.º 2 do artigo 84.º da CRP, definir o

«

seu regime jurídico, condições de utilização e limites

»

.

Embora caiba à lei a definição do regime dos bens do domínio público, naturalmente que a margem de liberdade do legislador na conformação desse regime não é total, pois não pode ele ignorar ou

«

eliminar dimensões essenciais à própria definição do conceito de domínio público

»

, tal como foi recebido na Constituição (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. pág. 1005). Não obstante o feixe de poderes públicos atribuídos à Administração variar de acordo com o interesse público específico que justifica a dominialização, o que pode originar vinculações específicas para cada bem ou tipo de bens, o objetivo de subtrair o bem ao

«

comércio jurídico privado

» é uma matriz comum a todo o regime de dominialidade, que se confirma pelas notas típicas de inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade. Como se refere no Acórdão 103/99
«

a característica essencial do regime dos bens do domínio público é o facto de, enquanto se mantiverem aí integrados, estarem submetidos a um regime de direito público, que o mesmo é dizer terem um estatuto jurídico de dominialidade. Encontram-se, por isso, fora do comércio jurídico privado - o que significa que não podem ser objeto de propriedade privada ou de posse civil, nem de contratos de direito civil, designadamente de venda ou permuta. Mais:

tais coisas são imprescritíveis e inalienáveis

»

.

O estatuto da dominialidade pressupõe pois um acervo de poderes/ faculdades a exercer sobre um bem público, que são outorgados aos entes públicos para proteção dos fins que motivaram a sua qualificação como bem dominial. Aos titulares de bens dominiais devem ser concedidos poderes próprios e exclusivos que, por emergirem da relação estabelecida com o domínio público, não podem ser entregues a outras entidades, sob pena de se esvaziar o sentido da garantia institucional consagrada no n.º 2 do artigo 84.º da CRP. Desta garantia institucional resulta a impossibilidade de se remeter para uma entidade a definição do regime de bens dominiais na titularidade de outra, assim como a impossibilidade de se negar ao titular do bem dominial o exercício de competências normativas e administrativas dirigidas ao seu modo de gestão. Como refere Ana Raquel Gonçalves Moniz,

«

à titularidade de bens dominiais pelo Estado, regiões autónomas e autarquias locais corresponde um conjunto de poderes próprios e exclusivos, que não podem ser “expropriados” pelo Estadolegislador e entregues a outras entidades

»

(“Direito do Domínio Público”, ob. cit. pág. 39).

Pelo que respeita ao domínio público marítimo, pertencendo ele necessariamente ao Estado, então, além da sua titularidade propriamente dita, não poderão ser transmitidos a outras entidades os poderes que efetivamente a justificam. Atribuir em exclusivo ao Estado a titularidade dos bens em causa, por poderosas razões que se prendem com a soberania, identidade e unidade do Estado, e depois admitir a possibilidade de tal atribuição, através da transmissão a outras entidades, ou de partilha com outras entidades, dos poderes essenciais associados ao domínio, seria uma opção constitucional destituída de sentido, pois esvaziaria de conteúdo essa posição dominial. Aceites as premissas, esta conclusão é inelutável, constituindo, portanto, jurisprudência uniforme e constante deste Tribunal (Acórdãos n.os 330/99, 131/2003, 402/2008 e 315/2014).

6.5 - Há, sem dúvida, um conjunto de poderes exclusivos dos titulares de bens dominiais que não podem ser objeto de transferência para outras entidades, sob pena de ofensa à titularidade. Com efeito, pode afirmar-se que a impossibilidade de transferência de bens do domínio público arrasta consigo a impossibilidade de transferência do núcleo essencial dos poderes dominiais que sobre eles recaem. Como se lê no Acórdão 131/2003,

«

é corolário necessário da não transferibilidade dos bens do domínio público marítimo do Estado a impossibilidade de transferência dos poderes que sejam inerentes à dominialidade, isto é, os necessários à sua conservação, delimitação e defesa, de modo a que tais bens se mantenham aptos a satisfazer os fins de utilidade pública que justificaram a sua afetação

»

.

Mas se é pacífico que a titularidade do domínio público, incluindo aí os poderes e prerrogativas que formam o núcleo essencial da dominialidade, não pode ser transmitida, tem vindo a admitir-se que o exercício de certos poderes de domínio pode ser transferido para outras entidades (públicas e privadas), sem que seja afetada a função pública que justifica a dominialização do bem.

A propósito dos poderes das regiões autónomas sobre os bens do domínio público marítimo situados no seu território, a jurisprudência constitucional e a doutrina, além de fazerem a separação entre titularidade e exercício de competências sobre o domínio público, efetuam uma distinção entre poderes primários, que são insuscetíveis de transferência, e poderes secundários, que podem ser objeto de transferência para outras entidades. É a própria natureza do bem dominial e a função por ele prosseguida que permite fazer a destrinça entre estes dois tipos de poderes de domínio.

No caso dos bens integrados no domínio público marítimo, porque indissociavelmente conexionados com a soberania e identificação nacional, o desempenho de determinadas funções só se revela possível quando o seu titular for o Estado. Por isso, os poderes necessários à satisfação dessas funções - defesa nacional, por exemplo - não podem ser transferidos para outras entidades, sob pena de se comprometer o “núcleo essencial da dominialidade”. Nesse sentido, os poderes respeitantes à soberania e integridade do Estado ou à manutenção, delimitação e defesa dos bens dominiais, na medida em que respeitam à defesa, unidade e autoridade do Estado, são poderes intransferíveis para outras entidades. Como escreve Ana Raquel Gonçalves Moniz,

«

para os titulares estão reservados os poderes que contendem com a consistência ou a subsistência do estatuto da dominialidade, em especial os atos de aquisição e extinção do domínio público, bem como aqueles que, dependendo da vontade dos titulares, impliquem uma mutação dominial subjetiva. A estes devem acrescentar-se a classificação e a delimitação, enquanto correspondentes ao exercício de poderes de autotutela

»

(“Direito de Domínio Público”, ob. cit. pág. 113).

Todavia, se a salvaguarda da integridade territorial e da soberania do Estado constitui a função precípua do domínio estadual sobre os espaços marítimos, a verdade é que atualmente esse estatuto não se encontra exclusivamente vocacionado à conservação e defesa dos bens dominiais, mas também à rentabilidade e aproveitamento económico das potencialidades que lhe são inerentes. De facto, como há muito tempo referiu Freitas do Amaral,

«

o domínio afirma-se cada vez mais, na época moderna, como uma riqueza a explorar, um bem que, na medida em que a sua afetação não for contrariada, é e deve ser objeto de gestão econó-mica

»

(A Utilização do Domínio Público pelos Particulares, Lisboa, 1965, pág. 167). Por essa razão, o direito da dominialidade pública, que tradicionalmente se encontrava mais centrado na conservação, passou a ser um direito voltado para a exploração e aproveitamento das potencialidades económicas dos bens públicos.

E assim sendo, os poderes/faculdades dirigidos à sua exploração económica já não contendem com a função pública inerente à dominialidade, por se tratar de os colocar ao serviço de outros interesses públicos, além daqueles que constituem o fundamento da sua dominialidade. Daí que, para prossecução desses interesses públicos, os poderes de exploração ou de gestão do domínio público possam ser transferidos para outras entidades, públicas ou privadas, sem que se ponha em causa a função que justificou a sua submissão a um regime de dominialidade. Afinal,

«

do que se trata é de reconhecer que o estatuto jurídico associado à dominialidade não é uniforme e que, se certos poderes ou faculdades são intransferíveis, outros, menos vitais e nada atentatórios da unidade do Estado, não o são

»

(Pedro Lomba, “Regiões Autónomas e Transferência de Competências sobre o Domínio Natural - Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 131/03”, in Jurisprudência Constitucional, n.º 2, abril/junho 2004, pág. 659).

A separação, no universo dos poderes de domínio, entre poderes primários e poderes secundários, segundo o critério da transferibilidade, tem vindo a ser admitida pela jurisprudência deste Tribunal. No seguimento da posição já tomada nos Acórdãos n.os 131/2003, 402/2008 e 654/2009, diz-se no Acórdão 315/2014 o seguinte:

«

O reenvio que o artigo 84.º da CRP faz para lei, quanto à definição dos bens integrantes do domínio público, bem como do seu regime, condições de utilização e limites (alínea f) do n.º 1 e n.º 2), consente a separação entre titularidade e o exercício dos poderes característicos do estatuto da dominialidade, o que significa, por outras palavras, que a titularidade do domínio não engloba necessariamente todos os poderes de gestão do bem dominial. [...].

De facto, não pode deixar de se reconhecer que há poderes ou faculdades inerentes à dominialidade que não podem ser subtraídos ao seu titular sem se ofender o fim e a função pública que justifica a dominialização do bem. No domínio público marítimo são intransferíveis os poderes que respeitem à integridade e soberania do Estado ou os poderes que sejam incompatíveis com a integração dos bens em causa nesse domínio, designadamente os poderes de manutenção, delimitação e defesa do domínio. Já quanto à gestão do bem dominial, incluindo o seu aproveitamento ou utilização, não há impedimento a que ela seja dissociada do titular do domínio e confiada a outras pessoas coletivas públicas ou a particulares, designadamente concessionários

»

.

Da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o domínio público marítimo resulta, assim, de forma clara, que os poderes de domínio que respeitem à integridade e soberania do Estado, assim como aqueles cuja transferência frustraria a finalidade que justifica a atribuição da titularidade dominial ao Estado não podem ser transferidos para outras entidades. No âmbito desses poderes cabem os poderes de manutenção, delimitação e defesa do domínio, sem se excluir que outros possam estar em causa. Já os poderes de exploração ou gestão do domínio público marítimo podem competir a entidades diferentes do Estado. E no âmbito desses poderes cabem não apenas a atribuição de direitos de uso privativo, como parece resultar do Acórdão 131/2003, mas também a concessão de exploração de parcelas do domínio público ou a adjudicação à satisfação de interesses próprios de outras pessoas coletivas públicas territoriais.

A possibilidade de separação entre a titularidade e o exercício de poderes de administração sobre os bens do domínio público hídrico, onde se inclui o domínio público marítimo, está hoje consagrada no artigo 9.º da Lei 54/2005, de 15 de novembro, onde se dispõe que

«

o domínio público hídrico pode ser afeto por lei à administração de entidades de direito públicas encarregadas da prossecução de atribuições de interesse público a que ficam afetos, sem prejuízo da jurisdição da autoridade nacional da água

»

(n.º 1); e que

«

a gestão de bens do domínio público hídrico por entidades de direito privado só pode ser desenvolvida ao abrigo de um título de utilização, emitido pela autoridade pública competente para o respetivo licenciamento

»

(n.º 2).

Esta Lei, que estabelece o regime da titularidade dos recursos hídricos, e que se aplica às regiões autónomas, sem prejuízo de diploma regional que proceda às necessárias adaptações, estabelece, no n.º 2 do artigo 28.º, que

«

a jurisdição do domínio público marítimo é assegurada, nas Regiões Autónomas, pelos respetivos serviços regionalizados na medida em que o mesmo lhe esteja afeto

»

. Ora, a medida de afetação do domínio público marítimo à Região

Autónoma dos Açores está fixada no artigo 8.º do EPARAA.

7.1 - Este preceito tem a seguinte redação:

Direitos da Região sobre as zonas marítimas portuguesas

«
Artigo 8.º

1 - A Região tem o direito de exercer conjuntamente com o Estado poderes de gestão sobre as águas interiores e o mar territorial que pertençam ao território regional e que sejam compatíveis com a integração dos bens em causa no domínio público marítimo do Estado.

2 - A Região é a entidade competente para o licenciamento, no âmbito da utilização privativa de bens do domínio público marítimo do Estado, das atividades de extração de inertes, da pesca e de produção de energias renováveis.

3 - Os demais poderes reconhecidos ao Estado Português sobre as zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional adjacentes ao arquipélago dos Açores, nos termos da lei e do direito internacional, são exercidos no quadro de uma gestão partilhada com a Região, salvo quando esteja em causa a integridade e soberania do Estado.

4 - Os bens pertencentes ao património cultural subaquático situados nas águas interiores e no mar territorial que pertençam ao território regional e não tenham proprietário conhecido ou que não tenham sido recuperados pelo proprietário dentro do prazo de cinco anos a contar da data em que os perdeu, abandonou ou deles se separou de qualquer modo, são propriedade da Região

»

.

As diferentes normas que compõem este artigo visam estabelecer os poderes gestionários que a Região Autónoma dos Açores detém, não apenas sobre as zonas marítimas que pertencem ao domínio público do Estado, mas sobre todo o espaço marítimo nacional adjacente ao arquipélago. Na interpretação desenvolvida no Acórdão 315/2014, da conjugação dessas normas resultam três níveis distintos de competências:

1) Estão reservados, em exclusivo, ao Estado os poderes gestionários cujo exercício pela Região, ainda que em conjunto ou de forma partilhada, seria incompatível com a integração dos bens em causa no domínio público marítimo do Estado, de acordo com o disposto no n.º 1, ou que respeitem à integridade e soberania do Estado, ao abrigo do n.º 3;

2) As competências exclusivas da Região constam no n.º 2 e respeitam ao “licenciamento, no âmbito da utilização privativa de bens do domínio público marítimo do Estado, das atividades de extração de inertes, da pesca e de produção de energias renováveis”

;

3) Os poderes que não sejam atribuídos em exclusivo ao Estado ou à Região são exercidos “conjuntamente” (n.º 1) ou “no quadro de uma gestão partilhada” (n.º 3), pelas duas entidades.

A intransferibilidade de poderes essenciais relativos a bens do domínio público, prevista no n.º 1, decorre em primeira linha, como vimos, da própria Constituição e não do EPARAA. O mesmo se passa, contudo, com os poderes gestionários referidos no n.º 3, inclusive no caso de respeitarem a bens que não integrem o domínio público do Estado. A justificação para a não transferibilidade de certos poderes de domínio pertencentes ao Estado tem a ver, em última instância, com as razões que levam a que os bens respetivos integrem o domínio público estadual. Como vimos, uma das principais razões que identificámos para essa pertinência tem a ver precisamente com a integridade e soberania do Estado. Por conseguinte, se esses interesses estiverem em causa, a Constituição impõe, por paridade de razões, que os poderes respetivos sejam exercidos pelo Estado. Assim, no que respeita às competências exclusivas estaduais, o EPARAA não contém nenhum limite que não decorresse já da Constituição.

Todavia, o direito ao exercício de poderes gestionários por parte da Região está, excetuando o caso do n.º 2, sujeito a um requisito adicional:

terá de ser efetuado “conjuntamente com o Estado” ou “no quadro de uma gestão partilhada”. É este requisito que visa concretizar o princípio da cooperação entre o Estado e as regiões autónomas, assente no artigo 229.º da Constituição, que urge, agora, densificar. 7.2 - Não parece haver qualquer diferença gradativa, em termos literais, entre a gestão partilhada, prevista no n.º 3, e a efetuada em conjunto, prevista no n.º 1. Afinal, o que é efetuado em conjunto é partilhado, e viceversa. Os restantes elementos da interpretação não sugerem igualmente nenhuma diferença de conteúdo entre as duas expressões. A existência de duas normas nesta matéria parece explicar-se pela circunstância dos poderes sobre as zonas marítimas respetivas não serem completamente coincidentes. Como já se referiu, de acordo com o disposto na CNUDM, são distintos os poderes reconhecidos ao Estado português sobre o mar territorial (artigo 2.º), a zona económica exclusiva (artigo 56.º) e a plataforma continental (artigo 77.º). Parece ser, aliás, por esta razão que a plataforma continental, um bem do domínio público estadual exconstitutione, não é abrangida pelo n.º 1 do artigo 8.º do EPARAA. Ainda assim, na medida em que a sua pertença àquele elenco é imposta pela própria Constituição, sempre se dirá que o exercício, por entidades não estaduais, de poderes relativos à plataforma continental está sujeito à condição de que esses poderes

«

sejam compatíveis com a integração dos bens em causa no domínio público marítimo do Estado

»

.

Em consonância, o n.º 3 refere-se aos

«

demais poderes reconhecidos ao Estado Português

» e sujeita a sua partilha apenas ao limite da
«

integridade e soberania do Estado

»

. A atribuição do exercício de certos poderes em exclusivo ao Estado, em detrimento da Região, está, como é natural, sujeita à condição prévia de esses poderes lhe serem reconhecidos internacionalmente. De contrário, a questão da repartição interna de competências nem se chegaria a colocar. Assim, será, em primeira linha, por a existência de diferenças no âmbito dos poderes reconhecidos ao Estado português poder implicar diferenças no âmbito da reserva exclusiva de competências do Estado que, nesta matéria, se preveem duas normas e não apenas uma.

Em qualquer caso, ainda que não se possa arredar completamente a existência de uma ténue nuance distintiva entre o “exercício conjunto” e a “gestão partilhada”, os dois conceitos sempre terão um conteúdo muito semelhante.

Como se pode ler no já referido Acórdão 315/2014:

«

[O]s poderes de gestão são atribuídos à Região para um exercício conjunto, no quadro de uma gestão partilhada, o que convoca a existência de estruturas organizatóriofuncionais e procedimentais que tornem possível a participação e a obtenção do acordo dos vários órgãos competentes.

Não se afigura simples a delimitação dos conceitos de exercício conjunto e de gestão partilhada. Ambos têm em comum o facto de dois ou mais órgãos administrativos, uns da República e outros da Região, terem poderes para gerir as zonas marítimas adjacentes aos Açores:

a prática de atos de gestão dessas zonas é, pois, comum a vários órgãos habilitados a dispor sobre a matéria em causa. Mas os meios para a participação e manifestação da vontade dos vários órgãos competentes na gestão das zonas marítimas não são uniformes, pois podem cobrir práticas muito diversificadas que vão da simples consulta à codecisão

»

.

“Exercício conjunto” e “gestão partilhada” são assim conceitos indeterminados, com um alto grau de elasticidade, que não permitem uma plena vinculação. Por isso, na medida dessa indeterminação, admitem formas variáveis de cooperação gestionária entre os órgãos da República e os da Região. Assim se reconhece expressamente no Acórdão 315/2014:

«

a comparticipação no exercício da atividade administrativa de uns e de outros órgãos pode assumir diversas formas, desde a criação de instituições de “concertação” entre diversas unidades administrativas, até à previsão de mecanismos procedimentais de consulta, propostas, pareceres, autorizações, aprovações, homologações, informações, etc.

»

.

Como o artigo 8.º do EPARAA não densifica o princípio da gestão conjunta ou partilhada, nem dá indicações sobre o respetivo “modus faciendi”, é necessário determinar um conteúdo prescritivo que permita uma aplicação vinculada. É o que se refere no Acórdão 315/2014:

«

num domínio em que existem atribuições de exercício comum e repartido tem que haver uma definição prévia daquilo que pode ou não ser partilhado, assim como dos termos concretos em que se processa a partilha

»

.

Nos termos do disposto nos artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e 112.º, n.º 4, da Constituição, tal tarefa incumbe ao legislador da República. E assim é, porque o requisito do “âmbito regional”, a que se encontra sujeita a competência legislativa regional, tem um duplo sentido:

«

sem prejuízo de esta expressão ter antes de mais um sentido geográfico, traçando os limites espaciais de vigência dos decretos legislativos regionais, ela tem também forçosamente um sentido institucional, que impede os Parlamentos insulares de emanar legislação destinada a produzir efeitos relativamente a outras pessoas coletivas públicas que se encontram fora do âmbito de jurisdição natural das Regiões Autónomas

»

(Acórdãos n.os 258/2007, 402/2008, 304/2011 e 793/2013).

Ora, a concretização do disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA envolve a repartição de competências entre órgãos da República e da Região, e consequentemente, produz efeitos em relação a pessoas coletivas públicas - neste caso, o próprio Estado - que se encontram fora da jurisdição natural da Região Autónoma dos Açores. Por isso, deverá ser efetuada pelos órgãos da República e não pelos da Região, como se decidiu no Acórdão 315/2014:

«

A Região Autónoma dos Açores não pode unilateralmente definir os termos da gestão partilhada do domínio público marítimo, justamente porque a regulação primária dessa matéria contenderia com as competências das autoridades nacionais. O parâmetro do “âmbito regional” (alínea a) do n.º 1 do artigo 227. º da CRP), na sua componente institucional, impede que os parlamentos insulares produzam legislação destinada a produzir efeitos relativamente a pessoas coletivas que se encontram fora do âmbito de jurisdição natural das Regiões Autónomas, como é o caso do próprio Estado

»

.

É de notar que a densificação do modelo de repartição de competências previsto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA tanto pode ser efetuada pelo Governo como pela Assembleia da República, já que não integra, mesmo no que respeita às zonas marítimas que pertencem ao domínio público do Estado, o âmbito da reserva de competência relativa do último órgão. É verdade que, de acordo com o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea v), da Constituição, é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre a

«

definição e regime dos bens do domínio público

»

. Contudo, o artigo 84.º, n.º 2, da lei fundamental dispõe que a lei, além do “regime”, define as “condições de utilização e limites” destes bens.

Assim, como este Tribunal reconheceu no Acórdão 402/2008 (superando a posição inicial, mais restritiva, assumida nos Acórdãos n.os 330/99 e 131/2003), estão excluídas do âmbito da reserva relativa de competência as dimensões constantes da parte final do n.º 2 do artigo 84.º-as “condições de utilização e limites”. O Tribunal baseou tal posição sobretudo em elementos históricos e sistemáticos, numa argumentação que se mantém válida:

o legislador constitucional de 1989, ao introduzir o artigo 84.º, não se limitou a reproduzir os termos que constam no artigo 165.º, n.º 1, alínea v) - a “definição” e o “regime”. Além desses, referenciou no artigo 84.º, n.º 2, precisamente “as condições de utilização” e “limites”. Tal opção só tem sentido se estas duas categorias não estiverem já contidas no termo “regime”. Não o estando, deverá considerar-se que as matérias a que se referem não se encontram abrangidas pelo artigo 165.º, n.º 1, alínea v).

Ora, a concretização do modelo previsto no n.º 1 do artigo 8.º do EPARAA diz respeito à repartição de poderes gestionários cujo exercício conjunto pelo Estado e pela Região previamente se estabeleceu serem compatíveis com o regime dos bens do domínio público do Estado. Tem a ver, assim, com as “condições de utilização” das zonas marítimas em causa, pelo que essa regulação não pertence ao âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República.

Estando delineado o enquadramento constitucional e estatutário nesta matéria, importa agora confrontálo com as normas impugnadas.

8.1 - O requerente começa por invocar a inconstitucionalidade das normas de dois grupos de preceitos do Decreto Lei 38/2015, de 12 de março:

(i) as normas dos artigos 12.º, 18.º, 22.º, 24.º, n.º 5, e 26.º;

(ii) as normas dos artigos 5.º, n.º 3 e 24.º, n.º 5. Alega que as normas de cada um desses grupos “comprimem a competência normativa regional à margem do texto constitucional”, sendo por isso inconstitucionais, por violação do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 227.º e no n.º 1 do artigo 228.º da CRP.

O primeiro grupo de normas regula os atos que compõem os procedimentos de elaboração dos planos de situação e de afetação dos espaços marítimos. Em ambos os procedimentos, aquelas normas atribuem ao membro do Governo responsável pela área do mar a competência para praticar o ato inicial do procedimento e ao Conselho de Ministros a competência para tomar a decisão final, na forma de resolução; e preveem a participação procedimental dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas, em várias fases do procedimento e em diversas modalidades.

Em relação a este grupo de normas, o requerente considera que a atribuição de competência exclusiva ao Governo para aprovar a versão final dos planos de situação e de afetação “comprime” ou anula a competência legislativa regional que os artigos 53.º, n.º 2, alínea a), e 57.º do EPARAA enunciam para a mesma matéria, o que está em desconformidade com a autonomia legislativa que é concedida à Região Autónoma pela alínea a), do n.º 1, do artigo 227.º e pelo n.º 1 do artigo 228.º da CRP.

Nos termos em que a questão de constitucionalidade vem colocada, importa sublinhar, desde já, a contradição contida na fundamentação do pedido:

por um lado, considera-se que a competência para legislar sobre o ordenamento do espaço marítimo pertence à Região Autónoma, por outro, alega-se que só o legislador da República pode densificar o princípio da gestão conjunta ou partilhada do domínio público marítimo.

De facto, nos artigos 35.º e 57.º do requerimento, citando jurisprudência constitucional, diz-se que

«

cabe ao legislador ordinário definir o modelo concreto de concertação da vontade decisória dos órgãos regionais e nacionais e desta forma densificar o modelo específico de partilha ou exercício conjunto dos poderes de gestão relativos ao domínio público marítimo adjacente ao arquipélago dos Açores

»

, e porquanto,

«

bem se sabendo que a Região Autónoma não pode legislar sobre esta matéria sem extravasar o âmbito regional e invadir a esfera de competência própria dos órgãos de soberania

»

.

Ora, embora a questão de constitucionalidade esteja claramente delineada, a verdade é que, dado o concomitante pedido de declaração de ilegalidade incidente sobre as mesmas normas e, sobretudo, a fundamentação que o suporta, não é evidente o seu sentido e razão de ser. A argumentação desenvolvida no pedido debruça-se quase exclusivamente sobre a violação, pelas normas em apreciação, do modelo de partilha ou exercício conjunto de poderes de gestão sobre as zonas marítimas adjacentes ao arquipélago dos Açores, consagrado nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA. Como o requerente não contesta que cabe ao legislador ordinário nacional definir o modelo concreto de gestão partilhada, por se tratar de matéria respeitante aos “limites e condições de utilização” do domínio público (n.º 2 do artigo 84.º da CRP), carece de sentido a invocação de que se legislou sobre matéria enunciada no respetivo estatuto políticoadministrativo. A competência legislativa para densificar o modelo de gestão contido nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA pertence aos órgãos de soberania e não à Região Autónoma dos Açores, ainda que o n.º 1 do artigo 53.º do EPARAA disponha que

«

compete à Assembleia Legislativa legislar em matéria de pescas, mar e recursos marinhos

»

, especificando a alínea a), do n.º 2, que nessa matéria estão incluídas as

«

condições de acesso às águas interiores e mar territorial pertencentes ao território da Região

»

, e que, por sua vez, o artigo 57.º disponha que

«

compete à Assembleia Legislativa legislar em matérias de ambiente e ordenamento do território

»

. É que, além destas disposições deverem ser articuladas com outras normas do mesmo diploma e, neste caso, em especial, com o regime que consta do artigo 8.º, a inclusão da matéria a regular no respetivo estatuto políticoadministrativo é apenas um dos três parâmetros a partir dos quais se afere a competência legislativa regional. De acordo com o disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 227.º da Constituição, é ainda necessário que as matérias em causa “não estejam reservadas aos órgãos de soberania” e que não extravasem do “âmbito regional”. Como vimos, a concretização do artigo 8.º do EPARAA envolve a repartição de competências entre órgãos da República e da Região, e, consequentemente, produz efeitos em relação a pessoas coletivas públicas - neste caso, o próprio Estado - que se encontram fora da jurisdição natural da Região Autónoma dos Açores. Por isso, a regulação dos poderes de gestão do domínio público marítimo estadual é matéria que extravasa do “âmbito regional”, e assim, deverá ser elaborada pelo legislador da República. De modo que a intervenção normativa consubstanciada no Decreto-Lei 38/2015 não se processou “à margem do texto constitucional”, como se alega no pedido, representando antes o exercício de uma competência legislativa que cabe, por força da Constituição, ao legislador da República.

A questão da violação da autonomia legislativa regional ainda poderia preservar alguma substância própria se pudéssemos dar como assente que as normas em apreciação não operam exclusivamente a concretização do modelo gizado nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA. Na medida em que extravasassem esse domínio, para reger matérias dentro do âmbito regional, poderia pôr-se, com pertinência, a questão de uma eventual afetação da competência legislativa da Região.

Todavia, o que se apura do teor das normas dos artigos 12.º, 18.º, 22.º e 26.º não permite semelhante conclusão. Elas versam sobre a repartição das competências relativas à elaboração e aprovação dos planos de situação e de afetação, instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional. Estes instrumentos estão previstos no artigo 7.º da LBPOGEMN, e o seu conteúdo foi concretizado pelo Decreto Lei 38/2015. Assim, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 9.º deste último diploma, o plano de situação

«

representa e identifica a distribuição espacial e temporal dos usos e das atividades existentes e potenciais, procedendo também à identificação dos valores naturais e culturais com relevância estratégica para a sustentabilidade ambiental e a solidariedade intergeracional

»; e o plano de afetação, por força do disposto no n.º 1 do artigo 19.º, do mesmo decretolei, procede
«

à afetação de áreas e ou volumes do espaço marítimo nacional a usos e atividades não identificados no plano de situação, estabelecendo, quando aplicável, os respetivos parâmetros de utilização

»; e, por força do n.º 2 do mesmo artigo, os planos de afetação, uma vez aprovados, integram-se automaticamente no plano de situação. Ora, o que se retira destas definições legais, é que os planos de situação e de afetação, conjugados, procedem à distribuição, pelas diversas áreas e volumes do espaço marítimo nacional, de usos e atividades, atuais ou potenciais, a exercer por entidades públicas ou privadas. Para tal, têm de identificar, em primeira linha, os condicionamentos a essa distribuição. Por conseguinte, os poderes incluídos nestes instrumentos, na parte em que se referem às zonas marítimas contíguas ao arquipélago dos Açores, integram-se, todos eles, na densificação do modelo de gestão dos espaços marítimos previsto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA e não no âmbito da repartição do exercício de competências ambientais ou outras.

Por isso, o que se pode questionar não é, em si, a competência para regulação, por diploma da República, desta matéria, mas o modo como o legislador do Decreto Lei 38/2015 o fez, indagando-se se houve ou não respeito pelos “direitos da Região sobre as zonas marítimas portuguesas”, mais concretamente, o direito a uma gestão conjunta ou partilhada. Contudo, essa é já uma questão de legalidade e não de constitucionalidade, não podendo a inconstitucionalidade ser configurada como meramente consequencial da ilegalidade supostamente resultante da violação do princípio da gestão partilhada.

É certo que, no estrito plano da Constituição, poderemos ver no princípio da cooperação (artigo 229.º da CRP) a matriz última, o étimo fundante do regime estabelecido nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA. Mas o princípio da cooperação é, estruturalmente, um puro princípio, uma indicação de sentido regulador que, impondo-se à intervenção legislativa, não dispensa a mediação desta para uma determinação mais precisa do que dele normativamente se extrai, consoante as matérias em jogo. Ora, não estando em causa uma pura e simples exclusão das entidades regionais do procedimento conducente à aprovação dos planos de situação e de afetação, não pode dizer-se que não esteja prevista uma certa forma de cooperação. O que resta saber é apenas se o grau ou medida de participação dessas entidades corresponde ou não ao conceito de gestão partilhada ou conjunta, consagrado nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA. E, sendo assim, a resposta não pode obter-se no plano constitucional, devendo antes ser procurada no plano da legalidade, em função dos parâmetros fornecidos por este diploma. Em conclusão:

as normas dos artigos 12.º, 18.º, 22.º e 26.º do Decreto-Lei 38/2015, de 12 de março, não enfermam de qualquer inconstitucionalidade, por violação dos artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1, da Constituição da República.

8.2 - O segundo grupo de normas do Decreto Lei 38/2015 regula a articulação e compatibilidade dos instrumentos de ordenamento do espaço marítimo com os programas e planos territoriais, sendo o n.º 3 do artigo 5.º de alcance genérico e o n.º 5 do artigo 24.º restrito ao plano de afetação.

Especificamente em relação à norma do artigo 5.º, n.º 3, mas valendo a argumentação para a outra norma, alega o requerente que essa disposição assume que os planos de situação ou de afetação elaborados pelo Governo da República

«

prevalecem

» sobre os programas e planos territoriais adotados pela Região Autónoma, ao abrigo da sua competência normativa prevista no artigo 57.º do EPARAA, estando-se desse modo a comprimir a competência legislativa regional à margem do texto constitucional, sendo por isso inconstitucional, por violação do disposto na alínea a), do n.º 1 do artigo 227.º e do n.º 1 do artigo 228.º, ambos da CRP. A ratio das normas questionadas é concretizar um dos princípios fundamentais do ordenamento e da gestão do espaço marítimo nacional:

o princípio da gestão integrada, que é assegurado, entre o mais, pela “coerência” entre o ordenamento do espaço marítimo nacional e o ordenamento do espaço terrestre, em especial o das zonas costeiras (subalínea iii), da alínea c), do artigo 3.º da LBPOGEMN). Como se refere no preâmbulo do Decreto Lei 38/2015, o que se visa é

«

sal-vaguardar a interação marterra em sede de ordenamento

»

.

Para esse efeito, a LBPOGEMN, no n.º 2 do artigo 5.º, atribui ao membro do governo responsável pela área do mar a competência para

«

assegurar a devida articulação e compatibilização com o ordenamento e gestão do espaço terrestre

»; e no n.º 2 do artigo 27.º estatui que os planos de situação e de afetação deverão assegurar a articulação e compatibilização com os programas e os planos territoriais em vigor no espaço terrestre
«

sempre que incidam sobre a mesma área ou sobre área que, pela interdependência estrutural ou funcional dos seus elementos, necessitem de coordenação integrada do ordenamento

»

.

Em desenvolvimento destas diretrizes, e também da obrigação imposta pela Diretiva n.º 2014/89/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de julho de 2014 (artigo 7.º), o Decreto Lei 38/2015, que transpôs aquela diretiva, estabeleceu regras procedimentais destinadas a harmonizar e compatibilizar as normas dos diferentes planos com incidência no espaço marinho:

(i) no âmbito da elaboração dos planos de situação e de afetação preveem-se mecanismos de concertação, quando sejam detetadas incompatibilidades com programas e planos territoriais preexistentes (artigos 14.º, n.º 6, alínea c), 16.º e 24.º);

(ii) se o consenso não for alcançado, a entidade responsável pela elaboração dos planos deverá fundamentar o não acolhimento das objeções efetuadas (artigos 16.º, n.º 2, e 24.º, n.º 5);

(iii) não sendo possível assegurar a articulação entre planos marítimos e terrestres, os instrumentos de ordenamento do espaço marítimo devem identificar as normas dos programas e planos territoriais a revogar ou alterar (artigo 5.º, n.º 3, 18.º, n.º 4, e 26.º);

(iv) se o plano de ordenamento do espaço marítimo não contiver medidas de compatibilização e, nomeadamente, se não proceder à identificação das normas a alterar ou revogar, é nulo, por violação do plano territorial preexistente (artigo 42.º).

Alegadamente, as normas em apreciação contendem com as competências legislativas que, em matéria de ordenamento do território, a Região indiscutivelmente detém, de acordo com o disposto nos artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1, da CRP e no artigo 57.º do EPARAA. Ao abrigo dessa competência, a Região procedeu ela própria ao desenvolvimento da lei que estabeleceu as bases da política de ordenamento do território e de urbanismo (Lei 48/98, de 11 de agosto, entretanto revogada pela nova lei de bases nesta matéria, a Lei 31/2014, de 30 de maio), através do Decreto Legislativo Regional 35/2012/A. Neste diploma, estão previstos e regulados os diversos planos de ordenamento do território aplicáveis na Região, quer ao nível regional, quer ao nível municipal. No âmbito regional, são aprovados por decreto legislativo regional o Plano Regional de Ordenamento do Território dos Açores e os planos sectoriais (artigos 39.º e 46.º); por sua vez, o plano de ordenamento do território de ilha é aprovado por decreto regulamentar regional (artigo 55.º).

Não obstante a Região ter o direito, concorrente com o do Governo, de elaborar planos de ordenamento do espaço marítimo nacional e, ainda que não o exerça, de ser ouvida no âmbito dessa elaboração, os planos são sempre aprovados pelo Governo, cuja posição, em caso de divergência, prevalece sobre a da Região (artigos 12.º, n.º 6, 18.º, n.os 2 e 3, 22.º, n.º 2, e 26.º). Assim, na medida em que os planos de ordenamento do espaço marítimo nacional contenham uma indicação de revogação ou alteração de disposições de planos territoriais aprovados pelos órgãos da Região, estar-se-ia a restringir a autonomia legislativa regional, pelo menos indiretamente - é que, ainda que nem todos os planos sejam aprovados por decreto legislativo regional, são, pelo menos, aprovados ao abrigo do disposto num decreto legislativo regional.

Todavia, do ponto de vista dos efeitos jurídicos contidos nas normas impugnadas, o resultado não é esse. No n.º 3 do artigo 5.º apenas se estabelece que os planos de ordenamento marítimo devem identificar expressamente as normas dos programas e planos territoriais que, por incompatibilidade, devem ser revogadas ou alteradas; e no n.º 5 do artigo 24.º impõe-se o dever de fundamentar o não acolhimento dos pareceres das entidades que elaboraram os planos territoriais, no caso de não se ter obtido uma solução concertada que ultrapassasse as divergências existentes. Ora, o facto de os planos marítimos terem de identificar e fundamentar as normas dos planos territoriais que são incompatíveis com os usos e atividades neles previstos, sob pena de nulidade, não tem como consequência jurídica direta a extinção ou a modificação das normas territoriais incompatíveis. Só as entidades com poder para aprovar os planos territoriais podem revogar ou alterar as normas em colisão com os planos de situação ou de afetação e, portanto, nem há invasão da esfera de competência dessas entidades, nem se preveem consequências em caso de subsistência, por não revogação ou alteração, das normas incompatíveis ou desconformes. Por conseguinte, o sentido normativo daqueles preceitos é o de resolver antinomias de normas de diferentes espécies de planos e não o de se sobrepor à competência normativa das entidades que aprovam os planos territoriais.

O conflito de normas é resolvido com base num critério de articulação de planos, que se caracteriza

«

pela obrigação de compatibilização recíproca entre planos, a qual se traduz na proibição de coexistência de planos que contenham disposições contraditórias

»

(Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, Almedina, Vol. I, 2,ª ed. pág. 365). De facto, as medidas previstas no Decreto Lei 38/2015 têm o seu simétrico reflexo no Decreto Lei 80/2015, de 14 de maio, que procede à revisão do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT). Assim, após se preceituar, no n.º 3 do artigo 25.º deste diploma, que

«

os programas e os planos territoriais devem assegurar a respetiva compatibilidade com os instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional, sempre que incidam sobre a mesma área

»

, prevê-se no n.º 4 que

«

os programas e os planos territoriais avaliam e ponderam as regras dos instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional preexistentes, identificando expressamente as normas incompatíveis que devem ser revogadas ou alteradas

»; e para assegurar esta compatibilização, preveem-se diversos mecanismos de concertação para a fase de elaboração dos programas e planos territoriais (artigo 49.º); por sua vez, por força do disposto no artigo 129.º, n.º 2,
«

são, ainda, nulos os programas e os planos territoriais aprovados em violação de instrumentos de ordenamento do espaço marítimo, sempre que não tenham sido previstas as necessárias medidas de compatibilização, de acordo com o disposto no artigo 25.º

»

. Significa isto que, se os planos territoriais preexistentes poderão ter que ser revogados ou alterados por força da sua incompatibilidade com os planos de ordenamento marítimo a aprovar ao abrigo do Decreto Lei 38/2015, a inversa também é verdadeira, estando previsto que futuros planos territoriais, aprovados posteriormente aos de ordenamento marítimo, tenham idêntica repercussão sobre a vigência destes. As soluções previstas no Decreto Lei 38/2015 deverão, portanto, ser compreendidas à luz deste equilíbrio, de procurar um dinâmico ajustamento recíproco dos dois tipos de planos. É em atenção a esta regulação global que se pode concluir que o legislador não pretendeu estabelecer nenhuma prevalência, em geral, dos instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional sobre os programas e planos territoriais, mas apenas estabelecer um critério temporal de compatibilização de planos.

Na falta de um critério imposto diretamente pela Constituição, o legislador da República deverá estabelecer mecanismos que permitam a articulação entre competências que possam entrar em conflito - e só ele o poderá fazer, uma vez que não estamos no âmbito de uma competência legislativa concorrente do Estado e das regiões. Foi o que fez, não só quanto à articulação e compatibilização de planos territoriais com os instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional (artigo 25.º), como quanto à relação entre os programas territoriais de âmbito nacional e regional (artigo 26.º) - onde, aliás, adotou o mesmo critério de “um compromisso recíproco de compatibilização das respetivas opções”. Em suma:

não se afigura que o regime questionado, de articulação dos planos de ordenamento marítimo e de planos territoriais, configure uma compressão ilegítima da competência legislativa da Região Autónoma dos Açores, em violação dos artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1, da CRP. 9.1 - O requerente também questiona a legalidade das normas dos artigos 12.º, 18.º, 22.º, 26.º e 35.º do Decreto Lei 38/2015, que versam, como vimos, sobre a competência para a elaboração e aprovação dos planos de situação e afetação - os instrumentos de ordenamento do espaço marítimo previstos no Decreto Lei 38/2015.

Alega que a adoção da LBPOGEMN, a que se submete aquele diploma, tem em vista

«

assegurar a utilização sustentável de todo o espaço marítimo nacional

»

, o que

«

em nada contende com questões de dominialidade pública ou de exercício de soberania nacional, mas antes com o exercício de funções administrativas

»

, pelo que os poderes de gestão respetivos deveriam ser exercidos em conjunto ou no quadro de uma gestão partilhada. Deste modo, as normas em apreciação, ao reduzirem

«

o papel da Região Autónoma a um direito não qualificado de consulta, ou a um direito de elaboração (mas não de aprovação) de um plano de situação ou de afetação dos espaços marítimos adjacentes até às 200 milhas marítimas

»

, violam o disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA. Por sua vez, o autor das normas, vem afirmar que cabem ao Estado

«

os poderes essenciais à titularidade do domínio público marítimo (delimita-ção, defesa, manutenção das utilidades públicas)

»; e que os poderes de ordenamento do território marítimo,
«

estão indissociavelmente ligados à conformação da utilidade pública (ou utilidades públicas) prosseguida pelo bem, pelo que não são poderes meramente instrumentais ou de mera gestão, mas antes poderes principais que expressam opções básicas e essenciais para a vida da comunidade

»; por isso,
«

os poderes de decisão quanto ao ordenamento, programação e planeamento das utilidades públicas associadas ao espaço marítimo nacional constituem poderes primários indispensáveis à garantia da subsistência do domínio, razão pela qual não podem ser transmitidos a órgãos de qualquer outra pessoa coletiva pública, para além do Estado

»; além do mais,
«

os poderes de gestão incindíveis do exercício de poderes primários não podem também ser transmitidos a terceiros, já que uns dependem dos outros

»

.

De onde se segue que o ponto central da sua argumentação assenta na atribuição de distinta natureza aos poderes de ordenamento e aos poderes de administração ou gestão dos bens e suas utilidades. Só estes podem caber às entidades regionais, pois os primeiros são essenciais “para salvaguardar a dominialidade do espaço marítimo nacional e, consequentemente, a sua titularidade pelo Estado”. Justificar-se-ia, assim, plenamente, que os poderes de decisão quanto ao ordenamento estejam reservados aos órgãos do Estado, admitindo-se apenas que as regiões autónomas possam exercer poderes de iniciativa e de elaboração dos respetivos planos.

Vejamos, então, se o poder de ordenar o espaço marinho envolve questões de domínio público marinho incluídas no âmbito da gestão conjunta ou da gestão partilhada estabelecida nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º da EPARAA. 9.2 - É inequívoco que a Região Autónoma dos Açores só pode exercer sobre as zonas do espaço marítimo nacional adjacente ao seu território os poderes que forem compatíveis com a integração dos bens em causa no domínio público marítimo do Estado e não respeitarem à integridade e soberania do Estado (n.º 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA) - em suma, os poderes que não constituam uma competência exclusiva do Estado.

Como já dissemos, no âmbito do domínio público marítimo, não podem deixar de ser exercidos pelo Estado os poderes cuja transferência frustraria a finalidade que justifica a dominialização do bem e a sua atribuição ao Estado. Cabem neste âmbito, designadamente, os poderes de manutenção, delimitação e defesa do domínio. O parâmetro assim fixado admite, pelo menos em termos estritamente literais, diversas interpretações, que lhe atribuem uma abrangência maior ou menor. No seu núcleo, contudo, encontram-se alguns poderes que incontestavelmente pertencem à competência exclusiva do Estado, como é o caso da defesa nacional e da segurança interna, funções que se prendem com a soberania.

Ora, o artigo 1.º, n.º 3, da LBPOGEMN parece afastar completamente estas matérias do seu âmbito de aplicação, ao prever que,

«

sem prejuízo do disposto no número seguinte, a presente lei não se aplica a atividades que, pela sua natureza e atendendo ao seu objeto, visem exclusivamente a defesa nacional ou a segurança interna do Estado português

»

.

Mas isso não significa que os diversos planos de ordenamento marítimo não tenham e não devam considerar e salvaguardar esses interes-ses nacionais, nomeadamente quando incidem sobre áreas marítimas delimitadas:

no artigo 10.º, n.º 1, alínea e), do Decreto Lei 38/2015, relativo ao conteúdo material do plano de situação, estabelece-se que ele deve conter a

«

identificação das redes de estruturas e infraestruturas e dos sistemas indispensáveis à defesa nacional, à segurança interna e à proteção civil, sempre que não haja prejuízo para os interesses do Es-tado

»; e no n.º 2 do artigo 25.º do RJIGT, determina-se que as regras e as diretrizes dos programas sectoriais e especiais, as quais podem respeitar aos domínios da defesa e segurança ou à salvaguarda de objetivos de interesse nacional, devem ser integradas nos instrumentos de ordenamento do espaço marítimo. Nestes casos, ainda que se trate meramente de identificar ou integrar programas de defesa e segurança nacional, esta competência deverá pertencer em exclusivo ao Estado, não podendo ser partilhada com a Região Autónoma dos Açores.

Decerto que muitas das competências manifestadas nos planos de situação e de afetação, não se prendem com as funções de soberania assinaladas, nem envolvem, na sua essência, questões do domínio público marítimo. Tais instrumentos visam proceder à distribuição, pelas diversas áreas e volumes do espaço marítimo nacional, de usos e atividades, atuais ou potenciais, a exercer por entidades públicas ou privadas, identificando, em primeira linha, os condicionamentos a essa distribuição (artigo 7.º da LBPOGEMN). Sob o ponto de vista do ordenamento do espaço marítimo nacional, os planos procedem à inventariação da realidade existente, descrevendo o espaço tendo em conta os diversos limites que devem ser observados, como, por exemplo, os ambientais ou de defesa nacional e segurança interna, e depois, em função desses limites, efetuam a distribuição espacial de usos e atividades. Ora, dada a natureza tridimensional do espaço marítimo (fundos marinhos, coluna de água e superfície) e a multiplicidade de utilidades suscetíveis de serem proporcionadas por ele, a planificação e o plano convocam a intervenção de competências que não pertencem necessariamente ao universo dos direitos dominiais. De facto, os elementos que fazem parte do conteúdo material e documental dos planos, que vêm referidos nos artigos 10.º, 11.º, 20,º e 21.º do Decreto Lei 38/2015, evidenciam uma interligação e dependência recíproca com bens materialmente distintos dos que consubstanciam os direitos dominiais, como é o caso da proteção ambiental.

Isto mostra claramente que os poderes de ordenamento do território marítimo estão ligados à conformação das utilidades públicas prosseguidas pelos bens em causa. O poder de afetar uma área à prática de atividades desportivas em detrimento, por exemplo, da investigação científica mais não é do que o poder de optar pela prossecução de uma utilidade pública em detrimento de outra. Assim sendo, então, a questão decisiva consiste em saber se as decisões finais quanto à “pré-definição” das utilidades fruíveis podem ficar, em exclusivo, reservadas ao Estado ou se à Região, no quadro da gestão partilhada da zona marítima adjacente ao seu território, deve ser assegurada uma intervenção qualificada também nessa fase deliberativa da atividade planificadora.

9.3 - Para isso, temos de começar por saber se o poder de ordenar o espaço marítimo é um tipo de poder que se integra no âmbito dos “poderes de gestão” sujeitos ao exercício conjunto ou partilhado, por força do disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA.

Antes de mais, cumpre referir que não é pela significação semântica das expressões

«

ordenamento

» e
«

gestão

» que é possível determinar objetivamente se a ação de planificar e de ordenar também denota uma atividade de gestão:

se, por um lado, ordenar tem latente uma certa ideia de gestão, por outro, a gestão significa execução ou concretização do que já está ordenado. De modo que não é pelo conteúdo dessas expressões que se pode determinar por si só se o conceito de ordenamento, no contexto discursivo em que é invocado, também está incluído no conceito de gestão.

E também não é através dos termos usados no artigo 8.º do EPARAA, nomeadamente das expressões

«

poderes de gestão

» e
«

gestão parti-lhada

»

, que é possível determinar de um modo absolutamente seguro quais as qualidades que esses poderes devem manifestar para que as normas que dele se extraem sejam aplicáveis. De facto, a vaguidade dessas expressões textuais não permite identificar se, no universo dos poderes de gestão, o

«

ordenamento

» está incluído na
«

gestão

»

.

No entanto, se bem repararmos, quando o preceito, no n.º 2, atribui competência exclusiva à Região, fálo através de atuações de poder que se materializam em atos individuais e concretos - licenciamento de atividades de extração de inertes, da pesca e de energias renováveis - praticados no âmbito da utilização privativa de bens do domínio público marítimo, ou seja, através da descrição de um tipo de poderes - secundários ou instrumentais - que pode indiciar a qualidade ou a índole dos

«

demais poderes

» cujo exercício tem que ser partilhado (n.º 3).

Já sabemos que o espírito do artigo 8.º do EPARAA, com o seu sentido especificamente normativo, é o de partilhar com a Região Autónoma poderes de gestão do domínio público marítimo estadual que não ponham em causa a integridade territorial e a autoridade do Estado e/ou que sejam compatíveis com a integração do bem no domínio pú-blico. Tal transferência está constitucionalmente legitimada a partir do momento em que se rejeita a

«

tese de que a titularidade do domínio é necessariamente acompanhada pela titularidade de (todas) as competências gestionárias

»

(Acórdão 402/2008) e se aceita que há formas de exploração e rendibilização dos bens dominiais que têm conexão com os interesses específicos da Região.

Daí que o legislador da República, ao definir, nos termos do n.º 2 de artigo 84.º da CRP, as “condições de utilização” do espaço marítimo nacional, no que se refere à zona adjacente à Região Autónoma dos Açores, deve levar em conta, com o peso devido, a autonomia regional. O interesse dos poderes regionais na definição das formas de exploração e gestão do espaço marítimo adjacente encontra apoio claro nos fundamentos e objetivos da autonomia fixados no n.º 2 do artigo 225.º da CRP, em particular nos objetivos de

«

desenvolvimento económico-social

» e de
«

promoção e defesa dos interesses regionais

»

. É aqui, no princípio da autonomia regional, que a partilha de poderes de gestão do espaço marítimo enunciada nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º da EPARAA encontra a sua razão-de-ser e o seu objetivo prático. Note-se, no entanto, que se fala de partilha e não de transferência absoluta, porque no caso de

«

uma autêntica transferência de poderes, não para a prática de atos, mas para a sua regulação em abstrato [...], a Região ganharia uma competência para lá das exigências do princípio da autonomia

»

(Acórdão 402/2008).

O poder de planear e ordenar o espaço marítimo manifesta-se através de um conjunto de atos e formalidades tendentes à formação dos planos de situação e de afetação. A função realizada por esses procedimentos releva para se aferir se o poder de ordenar está ou não relacionado com o fim da dominialização. Se o fim a que se dirige o ordenamento do espaço marítimo influir com a funcionalidade específica que justificou a sua submissão a um regime de dominialidade - e que constitui um limite aos poderes dominiais-, então o poder de ordenar assume-se como um poder essencial à subsistência e manutenção do domínio.

Ora, os planos de ordenamento do espaço marítimo - de situação e de afetação-, nos termos em que a lei os define, fixa os objetivos e determina o respetivo conteúdo, desempenham:

(i) uma função de identificação dos usos, atividades existentes e potenciais;

(ii) uma função de conformação do espaço marítimo;

(iii) e uma função de gestão do espaço marítimo.

A primeira, que está expressamente contemplada nos artigos 9.º, n.º 1, e 10.º, n.º 1, do Decreto Lei 38/2015, para os planos de situação, e no artigo 20.º, alínea a), para os planos de afetação, consiste na inventariação dos usos e atividades que estão a ser desenvolvidos e dos que são passíveis de ser desenvolvidos ao abrigo de um título de utilização privativa.

A segunda, consagrada nos artigos 9.º, n.º 1, 10.º, n.º 1 e 2 e 11.º, para os planos de situação, e nos artigos 20.º, alínea a), e 21.º, n.º 1, para os planos de afetação, consiste na

«

distribuição espacial

» dos usos e atividades, dividindo o espaço marítimo em “zonas” abertas a usos e atividades, assim como na representação geoespacial dessas zonas.

A terceira, que encontra expressão no artigo 11, n.º 2, para os planos de situação, e no artigo 21.º, n.º 2, para os planos de afetação, realiza-se com a previsão de

«

normas de execução que identificam as restrições de utilidade pública, os regime de salvaguarda e de proteção dos recursos naturais e culturais e as boas práticas a observar na utilização e gestão do espaço marítimo nacional

»

.

Esta última função - gestão do espaço marítimo - espelha bem a separação conceptual entre

«

ordenamento

» e
«

gestão

»

, na medida em que os planos, ao incorporarem normas de execução concreta das suas previsões, interessam-se pelo modo de concretização do modelo de distribuição espacial por eles desenhado. Por isso mesmo, a utilização comum ou privativa do espaço marítimo está sempre subordinada aos condicionamentos definidos nos planos de ordenamento (artigos 46.º, n.º 2 e 48.º, n.º 3, alínea b), do Decreto Lei 38/2015). É, aliás, essa separação que dá coerência sistemática à LBPOGEMN e ao decretolei que a desenvolve, quer no uso reiterado da expressão

«

ordenamento e gestão

»

, quer na inclusão, em ambos os diplomas, das normas de ordenamento num capítulo próprio (capítulo II) e separado do capítulo regulador das normas de gestão (capítulo III). De resto, mais esclarecedor do que está intencionado nessas expressões não pode deixar de ser o próprio Decreto Lei 38/2015, quando no preâmbulo refere que,

«

no quadro de uma gestão partilhada entre o Estado e as Regiões Autónomas, o presente decretolei distingue o ordenamento do espaço marítimo nacional da atribuição dos títulos de utilização privativa. De forma a garantir a unidade do território e uma visão integrada do espaço marítimo nacional, prevê-se que compete ao Governo coordenar as ações necessárias ao seu ordenamento. Já no que respeita aos títulos de utilização privativa, a sua atribuição compete aos órgãos e serviços competentes das Regiões Autónomas

»

.

Significa isto que para o legislador ordinário os conceitos de

«

gestão

» e de
«

ordenamento

»

, assim como

«

poderes de gestão

» e os
«

poderes de ordenar

»

, são funcionalmente distintos e atuados por procedimentos e por entidades de natureza diferente.

Mas a função de conformação é a que mais pode contender com algumas “dimensões” do domínio público marítimo. Nessa função, os planos procedem a um “zonamento” ou “espacialização” do espaço marítimo nacional, delimitando áreas e volumes, localizando e organizando usos e atividades, definindo parâmetros a que devem obedecer esses usos e atividades, criando uma situação de ordenamento que, no caso dos planos de situação, compreende a

«

totalidade

» do espaço marinho (artigo 9.º n.º 2, do Decreto Lei 38/2015). Assim, uma solução de ordenamento que demarca zonas e subzonas, a que correspondem regimes de uso diferenciados e, portanto, diferentes opções quanto à localização de usos e atividades, introduz compressões e condicionamentos ao uso comum, natural ou normal, do espaço marítimo. Assim o refere o n.º 2 do artigo 46. º daquele decretolei:
«

a utilização comum do espaço marítimo nacional deve respeitar a lei e os condicionamentos definidos nos instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional aplicáveis

»

.

Ora, o espaço marítimo é um bem natural que serve de suporte físico a diversos usos e atividades e, por isso, um bem suscetível de desempenhar funções que exigem a intervenção de várias entidades públicas. Mas, dada a natureza do bem, a afetação a múltiplas funções públicas não é suficiente para justificar a sua pertinência ao Estado. Como já se referiu, a dominialização do espaço marítimo está associada à integridade e identidade do Estado, enquanto lugar do exercício da soberania estadual. Para proteção desse “domínio eminente”, tendo em vista a tutela dos diversos modos de utilização, o Estado tem que estar investido de poderes públicos de autoridade que assegurem o cumprimento do fim público que determinou a dominialização, designadamente poderes de uso, controlo e defesa. De facto, tratando-se de bens insuscetíveis de apropriação, como refere Marcelo Caetano,

«

o domínio, aí, consiste em mera reserva dos direitos de soberania, de fruição e de disposição pelo Estado, o qual tem o poder de regular e policiar os usos dessas águas. É nesse sentido que a lei as integra no domínio público

»

(Manual de Direito Administrativo, Vol. II, 9.ª ed., pág. 876).

O domínio do espaço marítimo nacional manifesta-se assim através de poderes públicos que denotam supremacia e supra ordenação do Estado e cujo exercício depende exclusivamente dele. Um dos poderes de referência dessa autoridade é o poder regulamentar, através do qual o titular do domínio marítimo, no desempenho da função administrativa de conservação, proteção e utilização, cria regras jurídicas de conduta que provocam a produção de efeitos jurídicos com repercussão imediata na esfera jurídica de terceiros. Os planos de ordenamento do espaço marinho, para além das regras de distribuição espacial de usos e atividades, contêm restrições de utilidade pública e condicionamentos que vinculam as entidades públicas e os particulares nas concretas utilizações que venham a ser permitidas ou autorizadas. De modo que o exercício do poder de planear e de ordenar é uma faculdade regulamentária que conduz à criação de regras de eficácia plurissubjectiva sobre o uso, gestão e tutela do espaço marítimo.

Acontece que as disposições sobre o zonamento, o tipo ou modalidades de usos e atividades e os próprios mapas indicativos da localização das diferentes zonas, projetam os seus efeitos no estatuto dominial, na medida em que obrigam o titular do domínio a adequar os poderes de tutela, vigilância e polícia em conformidade com o ordenamento estabelecido nos planos. Para o conjunto de entidades que exercem poderes de autoridade marítima, no quadro do sistema de autoridade marítima - Decreto Lei 43/2002, de 2 de março, com as alterações do Decreto Lei 263/2009, de 28 de setembro - não é indiferente o modo como está ordenado o espaço onde exercem a fiscalização e a polícia de conservação e de utilização. É que a alocação de recursos humanos e materiais, que geralmente são escassos, exige a necessária compatibilidade com a localização dos usos e atividades identificados, distribuídos e afetados pelos planos de ordenamento marítimo. Daí que, pelo menos neste aspeto, o poder de ordenar seja um poder funcionalizado à realização dos fins prosseguidos com a dominialização:

a tutela e proteção do bem dominial. Mas também noutras matérias, como o das reservas dominais, que só o titular do domínio pode definir, podem ser postas em causa pelas diretivas fixados nos planos de ordenamento. Afigura-se-nos, pois, que é bastante questionável a possibilidade do Estado abdicar do poder de ordenar o espaço marinho, transferindo o seu exercício para as regiões autónomas, ainda que parcialmente. Nessa hipótese, ficaria despojado de um instrumento fundamental, porventura o mais essencial, à regulação e proteção do domínio público marítimo. 10.1 - Ainda que ao termo

«

poderes de gestão

» seja dado o mais amplo significado, no sentido de incluir a regulação e a gestão propriamente dita, não se chega à conclusão que o legislador, nas normas questionadas, foi além do que lhe era permitido pelo princípio da gestão partilhada.

Como vimos, perante a indeterminação do conceito de gestão partilhada, tem que haver uma definição prévia daquilo que pode ou não ser partilhado, assim como dos termos concretos em que se processa a partilha, sendo certo que a Região Autónoma dos Açores não pode unilateralmente definir esses termos, justamente porque a regulação primária dessa matéria contenderia com as competências das autoridades nacionais. Assim, a concretização do modelo de gestão conjunta ou partilhada previsto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA constitui uma competência legislativa reservada aos órgãos de soberania, dispondo o legislador ordinário de uma ampla margem de estipulação nessa definição.

O conceito

«

gestão partilhada

» é indeterminado quanto ao modo e quanto ao método da partilha das competências gestionárias. Os n.os 1 e 3 do artigo 8.º são
«

normas de competência

» que se limitam a conceder um poder e a demarcarlhe os limites, mas não fornecem um critério que permita, em sede legal, determinar a forma como os poderes de gestão são partilhados entre os órgãos da administração central e da administração regional. Já em sede interpretativa, abre-se um campo de várias soluções possíveis, dentro dos limites traçados pela norma à liberdade de conformação do legislador e oferecidos pelo princípio da autonomia regional. Em princípio, a gestão partilhada tanto pode incidir sobre a globalidade dos poderes de gestão como reportar-se a cada um deles; e tanto pode realizar-se em codecisão como através de participações procedimentais que influenciem a decisão. O que significa que a liberdade de conformação do legislador se traduz na faculdade de opção de entre uma pluralidade de opções possíveis, todas igualmente válidas, desde que realizem o fim que determinou a concessão do direito à gestão partilhada das zonas marítimas adjacentes às regiões autónomas.

A opção que o legislador tomou na LBPOGEMN e no Decreto Lei 38/2015 foi no sentido de partilhar o conjunto dos poderes de gestão formado pela atividade de planeamento, pelos planos de ordenamento e pela respetiva execução. Assim, no n.º 2 do artigo 5.º da LBPOGEMN atribui competência ao membro do governo responsável pela área do mar para

«

desenvolver e coordenar as ações necessárias ao ordenamento e gestão do espaço marinho nacional, sem prejuízo dos poderes exercidos no quadro de uma gestão partilhada com as regiões autónomas

»; e no Decreto Lei 38/2015 repartiu o conjunto desses poderes, quando incidentes sobre as zonas marítimas adjacentes às regiões autónomas, do seguinte modo:

(i) pelo governo, a aprovação dos planos de situação e de afetação (artigos 18.º, n.os 3 e 26.º);

(ii) pelas regiões autónomas, a atribuição de títulos de utilização privativa (artigo 51.º, n.º 1).

É evidente que, se a partilha dos poderes funcionais sobre o espaço marítimo adjacente às regiões autónomas tivesse que ser referenciada a cada poder de gestão individualmente considerado, o modo de partilha não se mostrava adequado a determinar objetivamente o sentido intencionado no conceito de

«

gestão partilhada

»

, uma vez que tinha por objeto o conjunto e não cada um dos poderes que o formam. Nessa hipótese, tanto seria ilegal a atribuição ao governo da competência para aprovar a versão final dos planos como a atribuição aos órgãos do governo próprio das regiões autónomas da competência para atribuir títulos de uso privativo. Curiosamente, o requerente questiona a legalidade da primeira atribuição, mas esquece-se de referir a segunda, que nesta forma de partilha está nas mesmas condições de legalidade, uma vez que os atos que constituem aqueles títulos vão muito além dos mencionados no n.º 2 do artigo 8.º do EPARAA.

Mas a partilha das competências gestionárias efetuada pelo legislador, separando a regulação da gestão propriamente dita, não se mostra desadequada a concretizar o conceito de

«

gestão partilhada

»

. Isto porque os interesses específicos das regiões autónomas, subjacentes ao princípio da gestão partilhada, pesam significativamente nessa solução. De facto, a principal finalidade a que se destina o ordenamento marítimo, e que consiste no aproveitamento económico do espaço marítimo, só se realiza com a concreta atribuição de concessões, licenças e autorizações de uso privativo e de concessões de exploração de domínio púbico. Vê-se, assim, que a transferência para as regiões autónomas da comercialidade (de direito público) de todas as potencialidades inerentes às zonas marítimas adjacentes, com reserva para o titular dominial da identificação e da distribuição espacial dos usos e atividades, é uma solução de iusaequum. Com efeito, na ponderação dos interesses públicos que se pretendem satisfazer com o dominialização com os interesses que dão suporte à autonomia regional, a reserva de regulação serve apenas para manifestar a relação de pertinência que as zonas marítimas têm com o Estado, ficando o interesse regional satisfeito com a possibilidade de as rentabilizar e explorar economicamente. Um equilíbrio que, do ponto de vista da adequação teleológica, não frusta, nem as finalidades que justificam a dominialização dos bens em causa, nem os interesses públicos prosseguidos pela autonomia regional.

10.2 - Mas se entendermos que a gestão partilhada incide sobre cada um dos poderes de gestão, ainda assim se verifica que o modelo de participação desenhado para o procedimento de ordenamento marítimo abre espaço para que os interesses regionais sejam razoavelmente integrados na formação dos planos de situação e de afetação.

Nos termos do Decreto Lei 38/2015, a intervenção dos órgãos do governo próprio das regiões autónomas no procedimento de formação dos planos dá-se em vários momentos e sob diversas formas:

(i) consulta prévia ao ato que determina a abertura do procedimento (artigos 12.º, n.º 2, 22.º, n.º 5 e 31.º, n.º 1);

(ii) possibilidade de elaboração dos planos, por sua iniciativa ou na sequência daquela consulta, nas zonas marítimas adjacentes ao respetivo arquipélago (artigos 12.º, n.º 4 e 22.º, n.º 5);

(iii) audiência prévia à aprovação dos planos respeitantes à plataforma continental para além das 200 milhas (artigos 12.º, n.º 5 e 22.º, n.º 5);

(iv) representação na comissão consultiva que acompanha o desenvolvimento da elaboração dos planos (artigos 14.º, n.º 2 e 22.º, n.º 3);

(v) participação nas reuniões de concertação promovidas pela comissão consultiva ou pela entidade que elabora os planos, quando no âmbito da comissão consultiva tenham sido levantadas objeções às propostas apresentadas (artigos 16.º, n.º 1 e 24.º, n.º 4);

(vi) participação no âmbito da discussão pública das propostas dos planos (artigos 17.º e 25.º).

Como se vê, a intervenção procedimental dos órgãos do governo próprio das regiões autónomas é particularmente intensa, ao ponto de serem eles mesmos a elaborar os planos de ordenamento. Neste caso, na qualidade de entidade pública responsável pela elaboração dos planos, detêm poderes de direção e instrução que possibilitam a integração dos interesses regionais na resolução final dos procedimentos de planeamento. Competelhes identificar, distribuir e afetar os usos e atividades existentes (e potenciais) nas zonas marítimas adjacentes ao respetivo arquipélago, representandoos em mapas geoespaciais; cabelhes ponderar o parecer final da comissão consultiva, assim como as objeções que não tenham sido ultrapassadas na reunião de concertação, fundamentando o eventual não acolhimento das recomendações (artigo 16.º, n.º 2); e incumbelhes ainda dirimir os conflitos de usos e atividades com base em critérios de preferência avaliados de acordo com parâmetros económicos e sociais que interessam às regiões autónomas (artigo 27.º, n.º 2). Verifica-se, pois, que nesta forma de participação a administração regional age não apenas como simples interessada, mas sobretudo como entidade responsável pela condução e gestão do procedimento, com objetivos, programas e interesses próprios a realizar, dando assim expressão às necessidades concretas das suas populações. Mas também, nos casos em que a entidade responsável pela elaboração dos planos não é um organismo ou serviço regional, a participação da administração regional permite a integração efetiva dos interesses regionais na versão final dos planos. Com efeito, no esquema apresentado pelo Decreto Lei 38/2015, a intervenção dos órgãos regionais no procedimento de formação dos planos não se reduz à mera auscultação - participação consultiva-, envolvendo também um acompanhamento contínuo do procedimento, num diálogo que possibilita encontrar consensos e soluções de compromisso capazes de satisfazerem os interesses específicos das regiões autónomas. As Regiões estão representadas numa

«

comissão consultiva

» a quem compete apoiar e acompanhar a elaboração dos planos, assegurando a sua eficácia, e promover
«

uma adequada concertação de interesses

»

(artigo 14.º, n.º 1). Se no âmbito dessa comissão não for possível chegar a um consenso, a entidade responsável pela elaboração do plano promove a realização de uma

«

reunião de concertação

»

, com vista a ultrapassar as objeções formuladas às propostas dos planos (artigo 16.º, n.º 1). Significa isso que, no domínio da

«

concertação

»

, os órgãos da administração regional podem negociar ou ajustar compromissos de ordenamento do espaço marítimo que devam ser considerados na resolução final do procedimento. E, sendo assim, o resultado alcançado em sede de concertação, e formalizado nos planos, não deixa de exprimir uma atuação conjunta que associa a administração regional ao exercício da função pública visada pelo ordenamento.

Esta fórmula participativa e de atuação concertada constituem uma técnica adequada a densificar o conceito de gestão partilhada. A função que é cometida à comissão consultiva, de representação dos vários interesses e de concertação ou composição dos interesses em conflito, leva à convicção de que os seus pareceres, ainda que não vinculativos, e os consensos obtidos devem ser respeitados e só podem ser contrariados pela sobreposição de interesses coletivos mais relevantes e ponderosos, tornados claros nos fundamentos da decisão (artigo 16.º n.º 2). Em bom rigor, não se pode dizer que a intervenção da comissão consultiva é meramente instrumental, auxiliar ou informativa, que não contribui para própria formação da vontade do órgão decisor. No contexto organizativo e procedimental em que se insere, a manifestação de vontade dos representantes dos organismos que a compõem, sobretudo quando fundada em consenso, não pode deixar de ser valorizada e respeitada na resolução final, sob pena de se comprometer a finalidade das reuniões de concertação.

Não é, porém, nesse sentido que o requerente interpreta o conceito de gestão partilhada. No seu entendimento, só há verdadeira

«

gestão partilhada

» quando a vontade dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas tiver um peso específico na decisão do procedimento que aprova a versão final dos planos de situação e de afetação. Embora não faça referência às possíveis formas de participação nessa decisão, dá a entender que apenas a codecisão torna possível a distribuição do poder de decidir aqueles procedimentos. Nesta hipótese, é necessário o assentimento daqueles órgãos regionais para que os planos entrem em vigor.

Ora, num procedimento tendente à codecisão, o consentimento dos órgãos regionais poderia manifestar-se através de vários atos, como propostas imperativas, pareceres vinculativos e despachos conjuntos, ou através da representação em estruturas orgânicas com competência decisória (participação orgânica). Estas fórmulas participativas, com maior ou menor intensidade, têm influência no processo decisório. A vinculação de quem decide ao conteúdo de propostas imperativas ou de pareceres vinculativos, ainda que autonomizados da decisão final, exprime o consentimento ao conteúdo da proposta ou do parecer, e nessa medida se pode dizer que correspondem a uma participação na decisão. Já o despacho conjunto exige o acordo entre os órgãos competentes das duas administrações - central e regional-, que têm ambos de manifestar a sua vontade e de assinar o ato de aprovação dos planos, sob pena de não ter por autores todos os órgãos que devia ter e assim ficar incompleto e inválido. Não se contesta que estas ou outras formas de participação na fase final do procedimento, pela influência que podem ter na configuração da decisão, constituem mecanismos participatórios suscetíveis de concretizar o modelo postulado pelo conceito de

«

gestão partilhada

»

.

Só que, como vimos, a opção pelo modelo de concertação que o legislador tomou no Decreto Lei 38/2015, não sendo incompatível com o imperativo da gestão partilhada, é uma ponderação que otimiza razoavelmente os interesses públicos envolvidos no espaço marítimo. A escolha de uma fórmula participatória que permita a integração dos diferentes interesses deve tomar em conta a função pública a cuja pros-secução o bem dominial está adstrito, os fins realizados pelos planos de ordenamento e, no caso das zonas marítimas adjacentes às regiões autónomas, os interesses específicos dessas regiões.

Ora, a codecisão dos planos de ordenamento tem o inconveniente de poder comprometer a eficiência e eficácia administrativa, uma vez que a exigência de consentimento ou de um ato de união de vontades no momento decisório do procedimento é suscetível de gerar situações de inefetividade, como aconteceria caso um dos órgãos intervenientes se recusasse a decidir ou vetasse as propostas e os pareceres do outro. As funções desempenhadas pelo ordenamento do espaço marítimo não poderiam ser prosseguidas se os órgãos da administração regional, por qualquer motivo, não aceitassem a distribuição espacial de usos e atividades proposta no plano de situação, quando é certo que ele abrange a totalidade do espaço marítimo nacional e não apenas a área adjacente aos arquipélagos. Por outro lado, e de acordo com o já referido princípio da gestão integrada, os planos devem ser articulados e compatibilizados com os diversos tipos de planos que incidem sobre a mesma área,

«

identificando ainda as respetivas medidas de articulação e de coordenação

»

(artigos 10.º, n.º 1, alínea b) e 20.º, alínea c)). Ora, o modelo de gestão partilhada do ordenamento do espaço marítimo não pode deixar de ponderar a necessidade de se alcançar, de forma eficiente e eficaz, a compatibilidade e conformidade entre as normas dos diversos planos. Daí que, dentro da margem de liberdade que o legislador tem na escolha desse modelo, não se afigura desrazoável que, para assegurar a conjugação, harmonização e eficácia dos planos, se tenha optado por concentrar no Governo o poder formal de aprovar os planos, salvaguardando a relevância dos interesses regionais no contexto decisório, através de uma intensa participação procedimental dos órgãos do governo próprio das regiões autónomas. De modo que o modelo de concertação estabelecido no Decreto Lei 38/2015 constitui um razoável equilíbrio entre o princípio da eficácia da Administração e o princípio da autonomia regional.

Conclui-se, assim, que as normas questionadas que atribuem ao Governo a competência para aprovar os planos de situação e de afetação não violam os n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA.

11 - Assente que a forma de participação dos órgãos do governo próprio das regiões autónomas na gestão do domínio público marítimo não está em desconformidade com o princípio da gestão partilhada consagrado nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA, deixam de ter fundamento as demais questões de ilegalidade alegadas pelo recorrente - as que incidem sobre as normas dos artigos 15.º, n.º 2, 97.º, 98.º e 107.º do Decreto Lei 38/2005 - assim como a pretensão de ilegalidade consequente de todas as demais normas desse diploma.

Com efeito, na base da motivação desses pedidos estão ainda os meios participatórios que o legislador escolheu para fazer valer os interesses regionais nos procedimentos de ordenamento marítimo. Alega-se que (i) a norma do n.º 2 do artigo 15.º reduz a posição procedimental da Região Autónoma;

(ii) as normas dos artigos 97.º e 98.º se reportam a atividades que cabem na competência da Região Autónoma;

(iii) e que a norma do artigo 107.º cristaliza a ilegalidade do modelo de gestão partilhada adotado pelo Decreto Lei 38/2005.

11.1 - Na primeira questão, o requerente sustenta que o disposto no n.º 2 do artigo 15.º do Decreto Lei 38/2015 - ao determinar que o parecer da comissão consultiva substitui os pareceres que a Região deveria emitir quando consultada na elaboração de um plano de situação ou de afetação - está a reduzir a posição procedimental da Região Autónoma, sendo por isso ilegal, por violar o disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA.

Só que este modo de ver depara com uma objeção:

a Região não está impedida de apresentar pareceres, quer nos atos de consulta e de audição referidos nos n.os 3 e 5 do artigo 12.º do Decreto Lei 38/2015, quer no período de discussão pública do plano, quer ainda no âmbito das reuniões de concertação promovidas pela comissão consultiva e/ou entidade pública responsável pela sua elaboração. De modo que não está excluída a participação consultiva dos órgãos do governo próprio das regiões autónomas. A norma do n.º 2 do artigo 15.º apenas dispensa as entidades públicas representadas na comissão consultiva de emitir pareceres obrigatórios, designadamente os referidos no artigo 13.º, porque os respetivos representantes estão munidos de delegações de poderes que as vinculam. Nada impede pois que tais pareceres sejam canalizados para a comissão consultiva por via dos representantes dos organismos e serviços que a compõem.

O que parece estar subjacente à argumentação do requerente é a ideia de que a consulta dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas deveria, no caso dos instrumentos atinentes às zonas marítimas adjacentes ao arquipélago dos Açores, processar-se autonomamente e não no seio de uma comissão consultiva alargada, integrada também por representantes de ministérios e organismos públicos estaduais e por representantes de entidades intermunicipais. Com esta participação “diluída” no âmbito de uma comissão consultiva, onde assume apenas a qualidade de um elemento integrante, a par e no mesmo plano de elementos não representativos da Região, enfraquece-se e reduz-se a “posição procedimental” que lhe deveria caber.

Não está em causa, porém, reduzir o âmbito de intervenção dos órgãos do governo próprio das regiões autónomas, mas pelo contrário, valorizar o papel da

«

concertação

»

, como meio mais apropriado à composição dos interesses públicos envolvidos no ordenamento marítimo. Com efeito, para ser eficaz na obtenção de consensos, a concertação dos diferentes interesses que é feita no interior da comissão consultiva exige a presença das entidades que os representam, mesmo que seja uma zona marítima adjacente aos arquipélagos. Não se trata de subalternizar ou “subordi-nar” a autonomia regional, mas sim de criar as melhores condições para uma ação conjunta na procura de soluções equilibradas na distribuição espacial de usos e atividades no espaço marítimo.

11.2 - Na segunda questão, o requerente alega que os artigos 97.º e 98.º se reportam ao ordenamento da atividade aquícola e à emissão de títulos de utilização privativa dos recursos hídricos em águas de transição para fins aquícolas, atividades que cabem na esfera de competência da Região, por força do disposto na alínea d), do n.º 2, do artigo 53.º e no artigo 57.º do EPARAA, sendo por isso ilegais, por violação do disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA.

O artigo 97.º refere-se ao ordenamento da atividade aquícola em

«

águas de transição

»

, preceituando no n.º 3 que à elaboração e aprovação do plano para a aquicultura se aplicam as normas dos artigos 21,º, 22.º e 24.º a 26.º, relativas aos planos de afetação; e o artigo 98.º regula a atribuição de títulos de utilização privativa dos recursos hídricos nessas águas para fins aquícolas, remetendo para os artigos 52.º, 53.º, 58.º, 61.º, e 65.º a 73.º o regime de concessão desses títulos.

A questão de ilegalidade só se coloca em relação à entidade competente para a aprovação dos planos para a aquicultura, pois a atribuição de títulos de utilização privativa dos recurso hídricos para fins aquícolas é da competência das regiões autónomas, tal como se verifica com os títulos de utilização privativa das demais zonas marítimas que fazem parte do seu território.

No que respeita ao planeamento da atividade aquícola, estando as águas de transição fora do espaço marítimo nacional, coloca-se a questão de saber se pertencem ao domínio público marítimo estadual, e se por isso estão abrangidas pelo artigo 8.º do EPARAA. De facto, as águas de transição não integram o espaço marítimo nacional, tal como definido no artigo 2.º da LBPOGEMN, já que estão localizadas no interior das linhas de base do mar territorial. No entanto, o n.º 1 do artigo 8.º do EPARAA não se refere apenas às águas territoriais, mas também às águas interiores.

Ora, o conceito de “águas interiores” não é unívoco. Nos termos do artigo 8.º da CNUDM, as águas interiores são as águas compreendidas entre a linha de base do mar territorial e a linha da máxima de preiamar. Em termos mais precisos, na definição de Marques Guedes, são as águas

«

compreendidas entre as linhas da máxima preiamar, por ocasião das marés vivas equinociais, e da baixamar, ou entre as primeiras e as linhas de base retas (incluindo de fecho) que tiverem sido traçadas em substituição da linha de baixa-mar

»

(Direito do Mar, Coimbra, 1998, pág. 98-99). Mas a definição que é dada pelo direito interno, designadamente pela Leis das Águas (Lei 58/2005, de 29 de dezembro, na redação que lhe foi dada Decreto Lei 130/2012, de 22 de junho), é diferente:

as águas interiores são

«

todas as águas superficiais lênticas ou lóticas (correntes) e todas as águas subterrâneas que se encontram do lado terrestre da linha de base a partir da qual são marcadas as águas territoriais

»

(alínea e) do artigo 4.º); e as águas de transição são as

«

águas superficiais na proximidade das fozes dos rios, parcialmente salgadas em resultado da proximidade de águas costeiras mas que são também significativamente influenciadas por cursos de água doce

»

(alínea c) do artigo 4.º). E também no Anexo I do Decreto Lei 166/2008, de 22 de agosto (Regime Jurídico da Reserva Ecológica Nacional) se especifica que as “águas de transição”

«

são delimitadas, a montante, pelo local até onde se verifique a influência da propagação física da maré salina

»

, devendo a delimitação das faixas de proteção

«

partir da linha de máxima preiamar de águas vivas equinociais

»

. Isto significa que, para efeito destes diplomas, entre linha de base do mar territorial e a linha da máxima de preiamar, apenas as águas subterrâneas são qualificadas como águas interiores.

Seja porém como for, no contexto do n.º 1 do artigo 8.º, o que se pretende abranger é, claramente, o domínio público marítimo localizado no interior das linhas de base do mar territorial. Ora, de acordo com o disposto na alínea b), do artigo 3.º, da Lei 54/2005, de 15 de novembro, o domínio público marítimo compreende

«

as águas interiores sujeitas à influência das marés, nos rios, lagos e lagoas

»

. Trata-se, por outras palavras, das águas compreendidas entre a linha de base do mar territorial e a linha de máxima da preiamar, independentemente de serem superficiais ou subterrâneas. Deste modo, as águas de transição são

«

águas interiores sujeitas à influência das marés

» e, por isso, integram o domínio público marítimo. Estão, assim, sujeitas ao regime previsto no n.º 1 do artigo 8.º do EPARAA.

Estabelecendo o n.º 3 do artigo 97.º que,

«

na elaboração e aprovação do plano para a aquicultura em águas de transição, é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 21.º, 22.º e 24.º a 26.º

» e tendo-se considerado que essas normas não violam o princípio da gestão partilhada, também a norma remissiva não padece de idêntico vício.

11.3 - Na terceira questão, o requerente alega que

«

o artigo 107.º do Decreto Lei 38/2015, que remete para legislação regional a adaptação do regime constante deste decretolei para as especificidades regionais, é ilegal, por violação do disposto nos n.os l e 3 do artigo 8.º do EPARAA, porquanto - bem se sabendo que a Região Autónoma não pode legislar sobre esta matéria sem extravasar o âmbito regional e invadir a esfera de competência própria dos órgãos de soberania (cf. Acórdão 315/2014 do Tribunal Constitucional) - está a cristalizar a situação de ilegalidade (em virtude da supra referida impossibilidade de a Região legislar sobre esta matéria) e a impedir a Região Autónoma dos Açores de exercer o seu direito de gestão conjunta ou partilhada dos espaços marítimos adjacentes

»

. Ora, não sofre dúvida que a normação primária desta matéria sempre teria de constar, como vimos, de uma lei da República, pois a impossibilidade da Região legislar sobre esta matéria resulta da Constituição e do EPARAA e não da própria norma do artigo 107.º Por conseguinte, não tem sentido sustentar que se “está a cristalizar a situação de ilega-lidade”. Mas tal não prejudica a possibilidade de, no quadro dessa lei e com respeito pelas suas estatuições, um decreto legislativo regional levar a cabo as adaptações impostas pelas especificidades regionais. Não podendo contrariar o disposto na lei da República, um decreto legislativo ainda assim pode adaptála às especificidades regionais, de onde se pode retirar que a norma do artigo 107.º não é, ela própria, ilegal.

11.4 - Por fim, o requerente não se limita a impugnar a constitucionalidade e legalidade das normas do Decreto Lei 38/2015, individualmente identificadas. No artigo 2.º do pedido, sustenta ainda que as inconstitucionalidades e ilegalidades especificamente alegadas

«

afetam - no que à aplicação à Região Autónoma dos Açores diz respeito - o Decreto Lei 38/2015 na sua globalidade, pois, estando em causa as próprias travesmestras do regime jurídico deste diploma, não subsistem normas neste diploma que possuam autonomia suficiente para permanecerem na ordem jurídica

»

.

Já na alínea b) do artigo 61.º-na conclusão-, afirma-se que,

«

por não terem subsistência jurídica autónoma, as normas que se extraem dos artigos 9.º a 11.º, 13.º a 17.º, 19.º a 25.º, 27.º a 29.º, 30.º a 34.º, 36.º a 42.º, 45.º, 49.º e 50.º, 74.º, 75.º a 86.º e 104.º do Decreto Lei 38/2015 padecem de vícios de inconstitucionalidade e ilegalidade consequente

»

. Esta aparente restrição do âmbito do pedido segue-se, em qualquer caso, ao artigo 58.º, em que se repete ipsisverbis o que consta no artigo 2.º Deste modo, deve entender-se que o pedido de inconstitucionalidade e ilegalidade consequentes se refere a todo o diploma e não apenas às normas especificadas na conclusão.

Todavia, não se verificando nenhuma das inconstitucionalidades e ilegalidades alegadas no pedido, também não pode apontar-se, obviamente, nenhuma inconstitucionalidade ou ilegalidade consequente.

III - Decisão Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide, relativamente às normas do Decreto Lei 38/2015, de 12 de março, na parte em que se aplicam à Região Autónoma dos Açores:

a) Não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 5.º, n.º 3, 12.º, 18.º, 22.º, 24.º, n.º 5, e 26.º;

b) Não declarar a ilegalidade das normas constantes dos artigos 12.º, 15.º, n.º 2, 18.º, 22.º, 26.º, 35.º, 97.º, 98.º, e 107.º;

c) Não declarar a ilegalidade consequente das restantes normas. Lisboa, 29 de fevereiro de 2016. - Lino Rodrigues Ribeiro - Fernando Vaz Ventura - Carlos Fernandes Cadilha - João Cura Mariano - Maria Lúcia Amaral - Teles Pereira - Maria José Rangel de Mesquita (com declaração) - Pedro Machete - Ana Guerra Martins [vencida quanto às alíneas b) e c) conforme declaração anexa] - Maria de Fátima MataMouros [vencida quanto às alíneas b) e c) de acordo com a declaração que junto] - Catarina Sarmento e Castro (vencida, nos termos da declaração de voto junta) - João Pedro Caupers (ven-cido conforme declaração em anexo) - Joaquim de Sousa Ribeiro [vencido, quanto às alíneas b) e c) da decisão, de acordo com a declaração junta].

Declaração de voto Acompanha-se a decisão expressa na alínea b) da Decisão do presente Acórdão essencialmente pelos fundamentos aduzidos no n.º 9.3 da Fundamentação. - Maria José Rangel de Mesquita.

Declaração de voto Votei vencida quanto às alíneas b) e c) da decisão por considerar que, tal como está delineada, nos artigos 12.º, 15.º, n.º 2, 18.º, 22.º, 26.º, 35.º, 97.º 98.º e 107.º do Decreto Lei 38/2015, de 12 de março, a participação das regiões autónomas nos planos de ordenamento do espaço marítimo - de situação e de afetação - no que toca à Região Autónoma dos Açores, viola o artigo 8.º, n.os 1 e 3, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (EPARAA), pelo que estas normas estão feridas de ilegalidade.

Com efeito, no que diz respeito aos direitos da Região Autónoma dos Açores sobre as zonas marítimas portuguesas, o artigo 8.º, n.º 1, do EPARAA prevê o “direito de [a Região] exercer conjuntamente com o Estado poderes de gestão sobre as águas interiores e o mar territorial que pertençam ao território regional e que sejam compatíveis com a integração dos bens em causa no domínio público marítimo do Estado”. Em nosso entender, o direito de exercer conjuntamente uma determinada competência deve implicar o exercício em comum dessa competência, o que impõe uma qualquer participação na fase da decisão final. Ora, no caso em apreço, a aprovação - ou seja, o ato final - quer do plano de situação quer do plano de afetação compete somente ao Governo (ar-tigos 18.º, n.º 1, 26.º e 35.º do Decreto Lei 38/2015, de 12 de março). A atribuição de um poder de iniciativa e/ou de um poder de audição e/ou de um poder de elaboração de pareceres não vinculativos à Região Autónoma dos Açores não nos parece suficiente para dar cumprimento ao artigo 8.º, n.º 1, do EPARAA, uma vez qualquer destes poderes existe prévia e independentemente do Estatuto. Isto porque as regiões autónomas detêm um poder genérico - constitucionalmente consagrado - de se pronunciarem, por sua iniciativa ou sob consulta dos órgãos de soberania, sobre questões da competência destes que lhe digam respeito (artigo 227.º, n.º 1, alínea v), 1.ª parte, da CRP).

O sentido do artigo 8.º do Estatuto só pode ser o de conferir à Região Autónoma dos Açores algo mais no que toca aos poderes de gestão sobre as águas interiores e o mar territorial que pertençam ao território regional do que aquilo que já está genericamente consagrado na CRP para todas as matérias.

O mesmo raciocínio é aplicável aos demais poderes reconhecidos ao Estado Português sobre as zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional adjacentes ao arquipélago dos Açores, nos termos da lei e do direito internacional, em que não esteja em causa a integridade e a soberania do Estado. O n.º 3 do artigo 8.º do EPARAA prevê o exercício desses poderes no quadro de uma gestão partilhada com a Região.

Ora, tal como o exercício conjunto de poderes de gestão entre o Estado e a Região implica, do nosso ponto de vista, uma participação mais ativa da Região na fase da decisão final do que aquela que está prevista no decretolei em apreço, também o exercício dos demais poderes no quadro de uma gestão partilhada entre o Estado e a Região deverá implicar um plus em relação aos poderes que a Constituição já confere às Regiões Autónomas.

Assim, em nosso entender, a noção de partilha implica igualmente o exercício em comum de uma determinada competência, pelo que se aplicam aqui as considerações acima expostas. Ou seja, o facto de o ato final de aprovação dos planos competir apenas ao Governo não assegura o cumprimento do artigo 8.º, n.º 3, do EPARAA.

Por conseguinte, a ilegalidade das normas acima mencionadas acarreta a ilegalidade consequente das restantes normas do Decreto Lei 38/2015, de 12 de março, na parte em que se aplicam à Região Autónomas dos Açores. - Ana Guerra Martins.

Declaração de voto

1 - Vencida quanto às alíneas b) e c) da decisão. 2 - A Constituição regula a relação entre República e as Regiões Autónomas de acordo com um modelo de Estado unitário regional cooperativo (artigo 229.º). De facto, a Constituição portuguesa rejeita modelos de concorrência, conflito ou de delimitação mutuamente excludente de poderes, assentando num regionalismo de cooperação. Os interesses públicos regionais e nacionais devem ser prosseguidos pelos diversos entes públicos no pleno respeito pelas respetivas atribuições e competências, garantindo uma atuação coerente, uniforme e eficaz do Estado. Essa lógica cooperativa tem diversos afloramentos, como o procedimento legislativo de aprovação dos estatutos políticoadministrativos e das leis eleitorais para as assembleias legislativas (artigo 226.º), a regulamentação regional de leis da República (artigo 227.º, n.º 1, alínea d)) e a participação regional na definição e condução da política externa (artigo 227.º, n.º 1, alíneas t) e v)).

É nesse contexto, também, que a Constituição consagra poderes extensos de participação e de audição das Regiões Autónomas pelos órgãos políticos de soberania sobre questões da sua competência que lhes digam respeito (artigo 227.º, n.º 1, alínea v), e artigo 229.º, n.º 2). Esta determinação constitucional obriga os órgãos de soberania a ouvir as Regiões, a permitir a sua participação nos processos de tomada de decisão no exercício das suas competências ou a consagrar a sua presença em órgãos consultivos - desde que estejam em causa matérias que sejam do interesse das Regiões. Esta audição não deve ser meramente formal, devendo dar origem a uma efetiva tomada em consideração da posição regional. As normas do Decreto Lei 38/2015, de 12 de março, objeto de fiscalização consagram esta participação, estando em conformidade com o mandato constitucional.

3 - Acontece, porém, que o Estatuto PolíticoAdministrativo da Região Autónoma dos Açores (EPARAA), relativamente aos poderes de gestão sobre as zonas marítimas portuguesas, estabelece um regime especial de partilha de atribuições e competências.

Nunca se colocando em causa a natureza de bens do domínio público do Estado destes bens, o EPARAA estabelece que a regra geral será o exercício conjunto, em gestão partilhada, dos poderes de gestão sobre estes bens (artigo 8.º, n.os 1 e 3 - a diferença dos dois números passa pelo facto de se estar no âmbito das águas interiores e do mar territorial, no caso do n.º 1, e das restantes zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional, no caso do n.º 3). Existem duas exceções:

i) pertencem à Região os poderes de licenciamento, no âmbito da utilização privativa de bens em causa, das atividades de extração de inertes, da pesca e de produção de energias renováveis (artigo 8.º, n.º 2, do EPARAA); e ii) pertencem à República os poderes de gestão quando esteja em causa a integridade e soberania do Estado (artigo 8.º, n.º 3, in fine, do EPARAA) e quando a gestão conjunta seria incompatível com a integração dos bens em causa no domínio público marítimo do Estado (artigo 8.º, n.º 1, in fine, do EPARAA). Trata-se de uma construção legal desenvolvida a partir das linhas definidas no Acórdão 131/2003 (n.º 7.4) que o Tribunal Constitucional aceitou como conforme à Constituição no seu o Acórdão 402/2008 (n.º 22).

Assim sendo, quando confrontado com a necessidade de aferir da legalidade das normas do Decreto Lei 38/2015, de 12 de março, face ao artigo 8.º, do EPARAA, o Tribunal tinha duas opções iniciais:

ou i) considerava que estava em causa um conjunto de poderes inerentes à dominialidade que não podiam ser subtraídos ao Estado sem se ofender o fim e a função pública que justifica a sua dominialização - caso em que seria de rejeitar o regime de “gestão partilhada”

; ou ii) considerava que se tratavam de poderes secundários de gestão do bem dominial (aproveitamento ou utilização), passíveis de dissociação do titular do domínio - caso em que se aplica o regime de “gestão partilhada”. Concluindo que se tratava deste último caso, então o passo seguinte seria aferir se o regime em causa - na sua globalidade - consagrava um regime de verdadeira “gestão partilhada” (ou de exercício conjunto).

4 - Quanto à questão de saber se estão em causa poderes dominiais intransferíveis, o Tribunal Constitucional já referiu que no âmbito do

«

domínio público marítimo são intransferíveis os poderes que respeitem à integridade e soberania do Estado ou os poderes que sejam incompatíveis com a integração dos bens em causa nesse domínio, designadamente os poderes de manutenção, delimitação e defesa do domínio

»

(cf. Acórdão 315/2014, n.º 7.5). Ora, as matérias aqui em causa dizem respeito à elaboração e aprovação de planos de situação (que representam e identificam

«

a distribuição espacial e temporal dos usos e das atividades existentes e potenciais, procedendo também à identificação dos valores naturais e culturais com relevância estratégica para a sustentabilidade ambiental e a solidariedade intergera-cional

»

, cf. artigo 9.º, n.º 1, do Decreto Lei 38/2015) e de planos de afetação (que procedem

«

à afetação de áreas e ou volumes do espaço marítimo nacional a usos e atividades não identificados no plano de situação, estabelecendo, quando aplicável, os respetivos parâmetros de utilização

»

, cf. o artigo 19.º, n.º 1, do Decreto Lei 38/2015). Nessa medida, como se refere no presente acórdão (n.º 8.1.), está em causa a

«

distribuição, pelas diversas áreas e volumes do espaço marítimo nacional, de usos e atividades, atuais ou potenciais, a exercer por entidades públicas ou privadas. Para tal, têm de identificar, em primeira linha, os condicionamentos a essa distribuição. Por conseguinte, os poderes incluídos nestes instrumentos, na parte em que se referem às zonas marítimas contíguas ao arquipélago dos Açores, integram-se, todos eles, na densificação do modelo de gestão dos espaços marítimos previsto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA

»

. Concordo com esta conclusão. É excessivo, neste contexto, argumentar que, apenas porque os poderes de tutela, vigilância e polícia ficam condicionados com o ordenamento estabelecido nos planos, estes se tornam automaticamente poderes intransponíveis (cf. n.º 9.3. do acórdão) - mesmo que se trate de uma mera opção pacífica entre usos (balnear e pesca, por exemplo). Diga-se, igualmente, que a Lei de Bases da Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional (Lei 17/2014), que o Decreto-Lei 38/2015 desenvolve, dispõe expressamente que

«

a presente lei não se aplica a atividades que, pela sua natureza e atendendo ao seu objeto, visem exclusivamente a defesa nacional ou a segurança interna do Estado português

»

(artigo 1.º, n.º 3, da Lei 17/2014).

Assim, concluindo que não se está perante poderes dominiais insuscetíveis de exercício conjunto, caberia determinar se o regime constante do Decreto Lei 38/2015, de 12 de março, se pode enquadrar no modelo de “gestão partilhada”. Esta avaliação teria necessariamente de ter em conta que as Regiões já têm, nos termos da Constituição, poderes de participação e intervenção procedimental - que esta “gestão partilhada” deveria ser um grau mais exigente de intervenção das Regiões.

De facto, a noção de “gestão partilhada” há de passar pela consagração de procedimentos de tomada de decisão em que existe uma codecisão ou, pelo menos, uma garantia efetiva de que a posição regional é acautelada, através da participação em órgãos conjuntos que emitam pareceres vinculativos, pelo menos em certas situações ou perante certos casos, da existência de mecanismos efetivos de conciliação de posições ou da consagração de deveres especiais de fundamentação caso a posição regional não seja acautelada. Estes mecanismos devem garantir que o exercício dos poderes em causa é o resultado de uma relação de cooperação entre duas entidades que prosseguem interesses públicos próprios e autónomos, constitucionalmente previstos. Não faz sentido o receio de que este exercício conjunto ponha em causa a soberania ou a unidade nacional:

os poderes dominiais nesse âmbito são excluídos, por definição, do exercício dos poderes em “gestão partilhada” (artigo 8.º, n.º 1 e n.º 3, do EPARAA) - tal como não poderia deixar de ser.

Ora, do modelo constante do Decreto Lei 38/2015, de 12 de março, resulta a participação da Região sem que, no entanto, se consagrem institutos de codecisão ou que garantam que o interesse regional tenha um peso específico na decisão do procedimento que aprova a versão final dos planos de situação e de afetação. À Região são atribuídos poderes de iniciativa, de pronúncia ou mesmo de condução de procedimentos, devendo ser ouvida, a vários títulos e em fóruns diversos, mas sempre sem a virtualidade de condicionar juridicamente a decisão final que cabe, exclusivamente, ao Governo. Ora, estes são poderes que a Região sempre teria, independentemente do artigo 8.º, do EPARAA, em virtude do dever de audição constitucionalmente consagrado. Não vejo como é possível ver nesta mera participação um modelo de “gestão partilhada” ou de exercício conjunto de poderes. Tal, manifestamente, não existe.

5 - O presente acórdão passa ao lado de toda esta questão. Ignora, desde logo, a natureza cooperativa do regionalismo português e que os poderes de participação das Regiões previstos no Decreto Lei 38/2015, de 12 de março, não são graças concedidas pela República, mas o resultado normal da aplicação da relação de cooperação entre Regiões e República consagrada na Constituição. Nesse domínio, ao fazer referências significativas, ao longo do acórdão, à noção de “interesse específico” - assumidamente abolida pelo legislador de revisão cons-titucional-, o Tribunal, aparenta permanecer enredado numa visão das autonomias anterior à revisão constitucional de 2004 ao mesmo tempo que parece adotar uma perspetiva de concorrência de atribuições entre República e Regiões, em vez de complementariedade e cooperação. A natural consequência dessa visão é que o presente acórdão se recusa a fazer uma interpretação do regime especial de partilha de poderes de gestão sobre as zonas marinhas consagrado no artigo 8.º, do EPARAA, reconhecendo que este consagra a atuação conjunta da República e da Região. Para o Tribunal, admitir a submissão ao regime de “gestão partilhada” parece equivaler a uma alienação da competência da Repú-blica e não o seu exercício conjunto - como se apenas duas hipóteses existissem:

o exercício exclusivo pela República com a audição da Região ou o exercício pela Região. Esta interpretação ignora que a letra do artigo 8.º, do EPARAA - que era o parâmetro de fiscalização da legalidade - se refere a um exercício conjunto de competências. Ao aceitar a sua redução a uma mera participação das Regiões num processo de decisão estadual, o Tribunal desperdiça a oportunidade de testar os limites do conceito estatutário de “gestão partilhada”. Nessa medida, a presente decisão representa um retrocesso na construção de um modelo de cooperação no exercício dos poderes de gestão sobre as zonas marítimas portuguesas desejado pelo legislador estatutário.

Em suma, o presente acórdão esvazia de conteúdo uma norma estatutária redigida de acordo com a sua jurisprudência e que o Tribunal já tinha afirmado estar em conformidade com a Constituição.

6 - O requerente impugna não só a legalidade de algumas normas do Decreto Lei 38/2015, mas também deste decretolei na sua globalidade. Concluindo pela ilegalidade, face ao artigo 8.º, n.os 1 e 3, do EPARAA, das normas dos artigos 12.º, 18.º, 22.º, e 26.º do Decreto Lei 38/2015, esta ilegalidade afeta, de facto, o diploma na sua globalidade. Sendo ilegais as normas que estabelecem a competência para a elaboração e adoção de planos de situação e de afetação, os instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional, as restantes normas não possuem autonomia suficiente para subsistirem por si e, fora do contexto em que foram criadas, serem aplicadas à Região. De facto, se as normas que procedem à repartição de competências entre o Estado e a Região são ilegais, então a regulação do objeto a que se referem deixa de fazer sentido, na parte em que se aplica à Região. - Maria de Fátima MataMouros. Declaração de voto

1 - Votei o acórdão na parte em que não declarou a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 5.º, n.º 3, 12.º, 18.º, 22.º, 24.º, n.º 5, e 26.º do Decreto Lei 38/2015, de 12 de março [alínea a)].

2 - Acompanhei, naturalmente, a decisão, na parte em que considera não existir qualquer inconstitucionalidade consequente.

3 - Todavia, afasteime da decisão relativamente às alíneas b) e c), já que votei no sentido da ilegalidade das normas constantes dos artigos 12.º, 18.º, 22.º e 26.º do Decreto Lei 38/2015, de 12 de março, por violação do disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA (Estatuto PolíticoAdministrativo da Região Autónoma dos Açores), bem como pela ilegalidade consequente das restantes normas do mesmo decretolei. 4 - Ao contrário do acórdão, não tenho para mim que a solução adotada quanto ao modelo que circunscreve os poderes estaduais e regionais de planear e de ordenar o espaço marítimo, estabelecido por estas normas - que definem a competência para a elaboração e aprovação dos planos de situação e afetação desse bem do domínio público-, otimize razoável e suficientemente os diferentes interesses públicos envolvidos no uso do espaço marítimo, de modo a permitir a real integração dos interesses das Regiões Autónomas.

O acórdão admite que a autonomia regional sustenta a existência de uma partilha de poderes de gestão do espaço marítimo, opção que perfilho. O que nos separa, é o entendimento quanto ao grau de participação concretizadora da autonomia regional que o EPAARA obriga que se fixe nesta matéria.

Acontece que, a meu ver, se do artigo 8.º do EPARAA resulta, por um lado, a obrigatoriedade de que a transferência, para a Região Autónoma, de poderes relativos ao domínio público, não ponha em causa a integridade territorial e a soberania do Estado (como impõe o n.º 3); que tal transferência seja compatível com a integração do bem no domínio público (n.º 1), salvaguardando-se os fins que justificam a dominialização do espaço marítimo; e, até, que, quando se preveja uma partilha de poderes de gestão do espaço marítimo adjacente às Regiões Autónomas, esta salvaguarde estes princípioschave (o que, aliás, decorre da Constituição, como limite a esta partilha); por outro lado, considero que do mesmo artigo 8.º do EPARAA se deve retirar, ainda, a exigência de que, da transferência destes poderes para planear e ordenar o espaço marítimo, resulte que estes devam ser exercidos de modo a assegurar uma participação efetiva e determinante nesta matéria, por parte das Regiões Autónomas. Só assim se levará suficientemente em conta os interesses regionais e a autonomia regional.

Ora, a meu ver, o regime instituído pelas normas que o acórdão aprecia, embora cumpra suficientemente o disposto no artigo 227.º, n.º 1, alínea s), da Constituição (“participar na definição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos”), não constitui uma solução compatível com referida leitura do artigo 8.º do EPARAA, que tenho por mais exigente.

O que sucede é que das normas em apreciação resulta uma forma de participação/partilha dos modos de planear e ordenar o espaço marítimo que não garante que os interesses regionais venham a ser efetivamente tidos em conta, de modo determinante e condicionador, na definição dos usos a que é afetado o espaço marítimo adjacente, já que tal participação se resume à atribuição, à Região, de um direito de iniciativa, de elaboração (mas não de aprovação) de planos de situação e afetação, de mera consulta prévia, de participação na comissão consultiva que elabora o parecer final, de participação nas reuniões de concertação ou nas discussões públicas.

Ora, mesmo que esta intervenção exceda a mera audição da Região Autónoma (como demonstram a intervenção na elaboração dos planos, por exemplo), a verdade é que não fica garantida à Região uma participação determinante na fase deliberativa da atividade que tem por fim planificar o destino e fins dos bens do domínio público, que fica, assim, exclusivamente reservada ao Estado, sem que a intervenção daquela possa, de modo decisivo, condicionar as decisões tomadas para sua gestão. Não é, por isso, manifestação suficiente de exercício conjunto dos poderes de gestão ou de gestão partilhada.

Ainda que se considere que o artigo 8.º do EPARAA não obriga a que se consagre um regime de codecisão que equiparasse Estado e Regiões Autónomas, deste insuficiente grau de participação das Regiões Autónomas resulta a violação deste artigo 8.º (n.os 1 e 3, já que o n.º 2 respeita, não à gestão partilhada entre Estado e Região Autónoma, mas a competências relativas ao licenciamento no âmbito da utilização privativa de bens do domínio público marítimo do Estado, fora da gestão partilhada), em virtude do forte desequilíbrio que introduz na distribuição dos poderes de gestão entre o Estado e as Regiões, quando globalmente considerados.

5 - Já quanto à alínea c) do acórdão, em que também fiquei vencida, entendi que a ilegalidade que considerei existir, relativamente às normas constantes dos artigos 12.º, 18.º, 22.º e 26.º, afeta todo o diploma, ferindo-o de ilegalidade. Ainda que as restantes normas, quando em si mesmas consideradas, pudessem ser salvas de uma decisão de ilegalidade, não creio que mantivessem autonomia suficiente fora do desenho de distribuição de competências previsto pelas normas apreciadas, que considerei ilegal. - Catarina Sarmento e Castro.

Declaração de voto Tendo manifestado a minha concordância com a declaração de ilegalidade das normas do Decreto Lei 38/2015, de 12 de março, tal como vinha proposta no memorando apresentado pelo Presidente, não posso fazer outra coisa que não seja formalizar a minha discordância com a posição, de sentido oposto, que prevaleceu no acórdão. Faço-o, em coerência com as minhas précompreensões sobre os limites da autonomia regional e, também, quanto à natureza e razão de ser do domínio público. No que respeita às primeiras e pese embora a evolução, que tenho por positiva, da jurisprudência do Tribunal, afigura-se-me difícil de compreender que, estando em causa arquipélagos, conjuntos de ilhas, não se reconheça - que o Estado não reconheça - que o mar assume um significado e uma importância inultrapassáveis para os açorianos e os madeirenses, significado e importância que justificariam amplamente uma especial capacidade de intervenção nos assuntos a ele relativos por parte daquelas comunidades, ambas integrantes da comunidade nacional. Parecemme inadequadas e criticáveis posições hiperdefensivas de supostos interesses do Estado, resultado de uma atávica tradição centralizadora - que, por vezes, na ânsia de rejeitar a existência de um mar açoriano ou de um mar madeirense, até parecem esquecer que açorianos e madeirenses também são portugueses-, posições que assentam numa noção restrita de âmbito regional mas se batem por uma noção excessivamente lata de defesa nacional - com o objetivo, assumido ou escamoteado, de limitar as capacidades de intervenção dos órgãos regionais nos assuntos do mar (e noutros domínios relevantes para as regiões).

Quando estiver concluído o processo de extensão da plataforma continental, em curso no âmbito das Nações Unidas, Portugal terá jurisdição sobre um espaço marítimo sensivelmente equivalente a trinta vezes o território nacional (o 11.º maior do mundo e o terceiro da Europa), respondendo os Açores e a Madeira por cerca de três quartos de tal área. Esta circunstância deveria constituir fator de legitimação acrescida da capacidade de intervenção dos órgãos de poder açorianos e madeirenses nos assuntos do mar (do nosso mar, que é também, senão principalmente, o mar deles). Consequentemente, a capacidade de intervenção dos órgãos regionais nos assuntos dos mares que lhes estão próximos deveria ser a maior possível - indo até aos limites da constitucionalidade -, impondo, designadamente, o entendimento da gestão partilhada no sentido da maior intensidade e amplitude possíveis dos poderes de intervenção daqueles órgãos.

Não creio que o caminho da clarificação do conceito haja de passar pelo debate ad nauseam da sua natureza, debate que se me afigura de duvidoso proveito. O conceito de gestão partilhada - necessariamente mais do que a mera intervenção consultiva na gestão, algo menos do que a codecisão - reclama, simplesmente, o máximo da capacidade de intervenção dos órgãos regionais compatível com o exercício da soberania do Estado português.

Noutro plano, tenho as maiores dúvidas que uma conceção moderna do domínio púbico - que, recorde-se, se desenvolveu em França, depois da Grande Revolução, num quadro ideológico, político e económico liberal, assente numa lógica diferencial (relativamente à propriedade privada), protecionista (contra apropriações indevidas) e muito limitada, das antigas rei extra commertium - seja compatível com uma lógica, inteiramente oposta, de indiferenciação, de alargamento contínuo do universo dominial e de maximização do aproveitamento económico dos bens dominiais, de que o recente Estatuto das Estradas da Rede Rodoviária Nacional constitui, porventura, o melhor exemplo.

Dito isto, não ignoro que se encontra atribuído ao Estado o monopólio da titularidade dos bens do domínio público marítimo. Mas estou convencido que é uma má opção. Entendo que a expansão dominial, por controversa que seja, deveria ser acompanhada do reconhecimento de que é indispensável, sem pôr em causa a soberania do Estado e as funções de autoridade que este exerce no mar português - nomeadamente nos planos da vigilância, segurança e polícia-, garantir a existência de algum domínio público marítimo açoriano e madeirense. A Lei Fundamental, de resto, não impõe a pertença dos espaços marítimos sob jurisdição nacional ao Estado, limitando-se a afirmar a sua integração no domínio público (artigo 84.º).

Deixar as regiões autónomas sem a titularidade de qualquer domínio público marítimo consubstancia uma escolha do legislador ordinário da República:

uma escolha mal explicada e insuficientemente fundamentada, assente num simples preconceito. - João Pedro Caupers.

Declaração de voto Votei vencido quanto à decisão de não declarar a ilegalidade, por violação do disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (EPARAA), das normas constantes dos artigos 12.º, 18.º, 22.º e 26.º do Decreto Lei 38/2015, de 12 de março [alínea b) da decisão], e quanto à decisão de não declarar a ilegalidade consequente das restantes normas do mesmo diploma [alínea c) da decisão].

É inequívoco que a Região Autónoma dos Açores só pode exercer sobre as zonas do espaço marítimo nacional adjacente ao arquipélago os poderes que forem compatíveis com a integração dos bens em causa no domínio público marítimo do Estado (n.º 1 do artigo 8.º do EPARAA) e não respeitarem à integridade e soberania do Estado (n.º 3 do mesmo preceito). No âmbito do domínio público marítimo, não podem deixar de ser exercidos pelo Estado os poderes cuja transferência frustraria a finalidade que justifica a dominialização do bem e a sua atribuição ao Estado. Cabem neste âmbito, designadamente, os poderes de manutenção, delimitação e defesa do domínio.

As normas dos artigos 12.º, 18.º, 22.º e 26.º versam sobre a competência para a elaboração e aprovação dos planos de situação e afetação - os instrumentos de ordenamento do espaço marítimo previstos no Decreto-Lei 38/2015. Ambos os instrumentos de ordenamento, conjugados, visam, em última instância, proceder à distribuição, pelas diversas áreas e volumes do espaço marítimo nacional, de usos e atividades, atuais ou potenciais, a exercer por entidades públicas ou privadas. Prendem-se, portanto, com a conformação da utilidade pública prosseguida pelos bens em causa.A questão decisiva neste plano é, assim, a de saber se as decisões finais quanto à “pré-definição” das utilidades fruíveis podem ficar, em exclusivo, reservadas ao Estado, ou se à Região, no quadro da gestão partilhada da zona marítima adjacente ao seu território, deve ser assegurada uma intervenção qualificada também nessa fase deliberativa da atividade planificadora.

Ora, ao definir, nos termos do n.º 2 de artigo 84.º da CRP, as “condições de utilização” do espaço marítimo nacional, o legislador da República, no que se refere à zona adjacente à Região Autónoma dos Açores, tem que levar em conta, com o peso devido, a autonomia regional. Sendo esta uma autonomia não só administrativa mas também política, a qual, nos termos constitucionais, visa, inter alia, “o desenvolvimento económicosocial e a promoção e defesa dos interesses regionais” (n.º 2 do artigo 225.º da CRP), não se visionam razões, em tudo o que não invada funções que só ao Estado cabe exercer, para arredar as entidades regionais de uma intervenção, quanto ao ordenamento do espaço marítimo, capaz de influenciar o sentido e o teor das decisões primárias, por força própria (não dependente, em exclusivo, da vontade de aceitação de um ente estadual). O que não pode deixar de ser assegurado é que o ordenamento com vista à prossecução de utilidades não comprometa o exercício idóneo de funções de soberania - daí todo um conjunto de limitações e condicionamentos cuja definição cabe, em exclusivo, ao Estado. Não se exclui que algumas dessas matérias se projetem sobre os planos de situação e afetação (cf., a propósito, a alínea e) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto Lei 38/2015), mas, em geral, a definição dos usos a que é afetado o espaço marítimo e os parâmetros a que ela obedece não contendem com poderes contidos na titularidade do Estado e que só por este possam ser exercidos. Na verdade, o artigo 27.º (“conflito de usos ou de atividades”) do Decreto Lei 38/2015 torna claro que,

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desde que estejam assegurados os valores singulares de biodiversidade identificados, o bom estado ambiental do meio marinho e o bom estado das águas costeiras e de transição

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, os critérios para a escolha de um uso ou atividade em detrimento de outro ou outra são sobretudo económicos e sociais (por exemplo, a “criação de número de postos de trabalho” ou a “viabilidade económica do projeto”).Não se vislumbra, no elenco aí contido, nenhum parâmetro que deva ser avaliado, em último termo, pelos órgãos do Estado, sob pena de se frustrar as finalidades que justificam a dominialização dos bens em causa. Todas as matérias elencadas são, certamente, do interesse do Estado (do todo nacional), mas também o são, e em primeira linha, da Região. Não se trata - convém sublinhálo - de o Estado abdicar dos poderes em causa, mas somente de partilhar o seu exercício. Aceite a premissa de que as competências em causa não estão reservadas ao Estado, daí não se segue que elas passem a pertencer em exclusivo à Região, mas apenas que esta tem o direito de as exercer em conjunto ou no quadro de uma gestão partilhada, como se prevê nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA.

À luz da ideia retora que percorre todo o artigo 8.º, de só reservar para a competência exclusiva do Estado os poderes que se prendam com funções de soberania, não parece que o entendimento restritivo de que os poderes de gestão a partilhar sejam apenas os de execução ou tramitação de atos administrativos, em aplicação de critérios predefinidos por instrumentos de ordenamento aprovados a nível estadual, corresponda ao sentido da cooperação na gestão do espaço marítimo adjacente às regiões autónomas que aquele preceito veio consagrar. No âmbito dos poderes de gestão, para esse efeito, devem ser compreendidos os poderes, materializados nos planos de situação e de afetação, de distribuição de atividades essencialmente apontadas para o aproveitamento económico dos bens. Neste contexto, estando apenas em causa a definição e conformação das utilidades a explorar, o conceito de “ordenamento” não pode ser separado do de “gestão”, sendo antes um primeiro (e determinante) instrumento desta. O legislador da República possui, certamente, uma ampla margem de estipulação na definição, em concreto, do modelo de gestão partilhada previsto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA. Estas disposições impõem que exista uma efetiva partilha de poderes entre os órgãos do Estado e da Região, mas, além de essa partilha poder tomar formas diversas, só é imposta em relação à globalidade das competências gestionárias, não a respeito de todo e qualquer poder aí subsumível. O juízo de compatibilidade terá, portanto, de ter em conta a arquitetura geral do regime e não cada competência tomada isoladamente.

Mas, a bem ver, nenhuma competência propriamente partilhada ou exercida em conjunto se prevê, mas antes uma separação de níveis de intervenção:

os planos de situação e de afetação são aprovados pelo Governo e os poderes de atribuição de títulos de utilização privativa pertencem à Região. Tudo indica que, na ótica do Autor das normas, seria pela junção das competências atribuídas nestas duas esferas separadas de intervenção que se obteria a satisfação das exigências contidas nas normas em apreciação.

Mas, se é essa a justificação, ela não merece concordância. O poder de planear e ordenar o espaço marítimo não pode ser subtraído à exigência de partilha contida nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA. Pondo de lado aquelas matérias que, como vimos, são da competência exclusiva do Estado, teria de ser garantido que os interesses da Região - por exemplo, os elencados no artigo 27.º, n.º 2-, tal como definidos pela própria Região, são efetivamente tidos em conta no âmbito do ordenamento marítimo e, portanto, ao nível do conteúdo dos planos de situação e de afetação. De contrário, não se pode afirmar que os poderes de gestão em causa sejam exercidos em conjunto ou no quadro de uma gestão partilhada, não se cumprindo, assim, o conteúdo mínimo imposto pelos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA.

Deste modo, tudo está em saber se o regime constante do Decreto Lei 38/2015, no atinente à elaboração e aprovação dos planos de situação e de afetação, dá à Região um grau de participação suficiente a possibilitar um exercício autenticamente partilhado de competência ordenadora. Retira-se das normas previstas nos artigos 12.º, 18.º, 22.º e 26.º do Decreto Lei 38/2015 que os órgãos de governo próprios das regiões autónomas são sempre consultados no âmbito da elaboração de um plano de situação ou de afetação. Especificamente no que respeita às zonas adjacentes aos arquipélagos respetivos, possuem as Regiões um direito de elaboração do plano, concorrente com o do Governo. Além do mais, o plano é sempre aprovado pelo Governo, ainda que tenha sido elaborado pelos órgãos de governo próprios das Regiões.

Em face deste regime, tem que concluir-se que à Região é outorgado mais do que o direito de manifestar opinião, nos termos decorrentes do direito de audição. O direito de elaborar planos de situação e de afetação tem, certamente, relevância, fazendo acrescer significativamente o grau de participação dos órgãos da Região, em relação ao que corresponderia a um mero direito a ser ouvidos quanto a planos elaborados por entidades estaduais.

Mas não está previsto nenhum modo de o plano assim elaborado se projetar na fase decisória, de alguma forma juridicamente limitativa ou condicionante do sentido da decisão final do órgão de soberania, pelo que não se oferece nenhuma garantia, por mínima que seja, de esta integrar interesses regionais, tal como representados pelos órgãos próprios da Região. É de concluir que estamos apenas perante mais um canal de expressão da vontade, de uma proposta, que o decisor tomará ou não livremente em conta. De resto, quanto aos planos de afetação, trata-se de um direito que em pouco se distingue da possibilidade que os próprios particulares possuem de apresentar propostas nesse âmbito. De facto, ao abrigo do disposto no artigo 30.º, n.º 1, do Decreto Lei 38/2015,

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os interessados na elaboração de um plano de afetação podem apresentar ao membro do Governo responsável pela área do mar proposta de contrato para ordenamento que tenha por objeto a elaboração de um plano de afetação

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. O plano de afetação que, eventualmente, resultar desta iniciativa alterará o plano de situação respetivo (cf. o artigo 19.º, n.º 2).

Desta forma, há um claro desequilíbrio entre as posições do Estado e da Região no exercício de poderes de gestão sobre o espaço marítimo adjacente ao arquipélago. Não se contesta que o princípio da gestão partilhada não impõe a codecisão nem exclui, sem mais, a possibilidade de, em certas áreas, se estabelecer meramente a audição de órgãos da Região, inclusivamente de forma não vinculativa. No quadro do Decreto Lei 38/2015, todavia, esta reduzida possibilidade de influência estende-se a todas as matérias abrangidas pelos planos de situação e de afetação, não havendo nenhuma em que se detete a garantia de influência na decisão final. Há, assim, uma clara subalternização do papel da Região na gestão de um espaço marítimo que, no que concerne ao mar territorial e à plataforma continental, não deixa de ser território regional (cf. o n.º 2 do artigo 2.º do EPARAA), ainda que não de domínio regional.

Não contraria este juízo global a circunstância de os poderes de atribuição de títulos de utilização privativa pertencerem, em exclusivo, à Região. Com efeito, estes poderes, além de em parte já estarem previstos no artigo 8.º, n.º 2, do EPARAA e, por isso, não constituírem uma concretização do princípio da gestão partilhada, são condicionados de forma muito relevante pelo disposto nos planos de situação e afetação, sempre aprovados pelo Governo. Trata-se, pois, de uma competência fortemente vinculada a um regime de enquadramento em cuja definição a Região não tem participação determinante.

De todo o exposto resulta que os poderes conferidos pelas normas impugnadas aos órgãos regionais, no que diz respeito à dimensão essencial da gestão que é a elaboração e aprovação de planos de ordenamento - poderes de audição, de elaboração de propostas e de integração na comissão consultiva que elabora o parecer final - são poderes cuja natureza e alcance permitem apenas estabelecer “fluxos de comunicação e manifestação de vontade” por parte desses órgãos, mas não dão qualquer garantia de que essa vontade seja minimamente tida em conta ou respeitada na decisão final. Satisfarão o direito das regiões autónomas de “participar na definição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos”, previsto na alínea s) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP. Mas esse é um direito genérico, respeitante a todas as zonas marítimas, tendo por fundamento o contributo decisivo dos arquipélagos da Madeira e dos Açores para a extensão da jurisdição marítima portuguesa e a importância do mar para as vidas das populações e para a economia desses territórios.

No respeitante às zonas marítimas adjacentes ao território regional, e no plano da legalidade de que estamos a tratar, os poderes da Região são reforçados, nos termos dos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA, que instituíram, em tudo o que não contenda com as funções de soberania reservada ao Estado, um modelo de gestão dual, partilhada, em conjunto, pelos órgãos de soberania e pelos órgãos da Região Autónoma dos Açores. Este mais exigente padrão de concurso de poderes não é satisfeito, pelas razões apontadas, pelas normas dos artigos 12.º, 18.º, 22.º e 26.º do Decreto Lei 38/2015, de 12 de março. A conclusão a tirar é a de que as referidas normas violam aqueles preceitos estatutários, pelo que estão feridas de ilegalidade.

Ora, se as normas que procedem à repartição de competências entre o Estado e a Região são ilegais, então a regulação do objeto a que se referem deixa de fazer sentido, na parte em que se aplicam à Região. Por outro lado, não subsistindo os planos de situação e de afetação, não podem igualmente subsistir os títulos que neles se deverão basear.

Além do mais, é a repartição global das competências gestionárias relativas ao espaço marítimo nacional adjacente ao arquipélago que pode ou não respeitar o princípio da gestão partilhada, previsto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA. Deste modo, as normas dos artigos 12.º, 18.º, 22.º e 26.º não podem ser vistas isoladamente, mas como fazendo parte de um todo, de uma conformação global, que contém a regulação da utilização do espaço marítimo nacional. Visando o diploma desenvolver as Bases da Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional, os vícios detetados nas normaschave respeitantes aos instrumentos desse ordenamento “contaminam” tendencialmente todo o sistema regulador. - Joaquim de Sousa Ribeiro.

209456081

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2550207.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-07-28 - Lei 21/82 - Assembleia da República

    Estabelece as condições para o reconhecimento da qualidade de produtor e distribuidor independente de energia eléctrica.

  • Tem documento Em vigor 1988-12-21 - Acórdão 268/88 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes das Resoluções 42/87, de 15 de Janeiro e 5/88, de 28 de Janeiro, do Governo Regional dos Açores ( fixam os valores do salário mínimo mensal a observar a partir de, respectivamente, 1 de Janeiro de 1987 e 1 de Janeiro de 1988 ). ( Proc. nº 207/88 )

  • Tem documento Em vigor 1998-08-11 - Lei 48/98 - Assembleia da República

    Estabelece as bases da política de ordenamento do território e de urbanismo.

  • Tem documento Em vigor 2002-03-02 - Decreto-Lei 43/2002 - Ministério da Defesa Nacional

    Cria o sistema da autoridade marítima - SAM - definindo a sua organização e atribuições e cria igualmente a Autoridade Marítima Nacional, estrutura superior de administração e coordenação dos órgãos e serviços que, integrados na Marinha, possuem competências ou desenvolvem acções enquadradas no SAM. Compõem o SAM as seguintes entidades: Autoridade Marítima Nacional, Polícia Marítima, Guarda Nacional Republicana, Polícia de Segurança Pública, Polícia Judiciária, Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Inspecçã (...)

  • Tem documento Em vigor 2003-04-04 - Acórdão 131/2003 - Tribunal Constitucional

    Pronuncia-se pela inconstitucionalidade das normas constantes do n. 8 do artigo 3º e do nº 1 do artigo 36º do Decreto-Lei nº 468/71, de 5 de Novembro, na redacção que lhe é dada pelo artigo 1º do decreto da Assembleia da República nº 30/IX, na medida em que se referem ao domínio público marítimo. (Proc. nº 126/2003)

  • Tem documento Em vigor 2005-02-17 - Decreto-Lei 38/2005 - Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

    Institui a Fundação Museu Nacional Ferroviário Armando Ginestal Machado.

  • Tem documento Em vigor 2005-11-15 - Lei 54/2005 - Assembleia da República

    Estabelece a titularidade dos recursos hídricos.

  • Tem documento Em vigor 2005-12-29 - Lei 58/2005 - Assembleia da República

    Aprova a Lei da Água, transpondo para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2000/60/CE (EUR-Lex), do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro, e estabelecendo as bases e o quadro institucional para a gestão sustentável das águas.

  • Tem documento Em vigor 2006-07-28 - Lei 34/2006 - Assembleia da República

    Determina a extensão das zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional e os poderes que o Estado Português nelas exerce, bem como os poderes exercidos no alto mar.

  • Tem documento Em vigor 2008-08-22 - Decreto-Lei 166/2008 - Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional

    Aprova o Regime Jurídico da Reserva Ecológica Nacional.

  • Tem documento Em vigor 2009-09-28 - Decreto-Lei 263/2009 - Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

    Institui o sistema nacional de controlo de tráfego marítimo (SNCTM), criando um quadro geral de intervenção dos órgãos e serviços públicos responsáveis pelo controlo de tráfego marítimo nas zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional, e procede à 1.ª alteração do Decreto-Lei n.º 43/2002, de 2 de Março, à 3.ª alteração do Decreto-Lei n.º 180/2004, de 27 de Julho, e à 1.ª alteração do Decreto-Lei n.º 198/2006, de 19 de Outubro.

  • Tem documento Em vigor 2012-06-22 - Decreto-Lei 130/2012 - Ministério da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território

    Altera a Lei 58/2005, de 29 de dezembro, que aprova a Lei da Água, transpondo a Diretiva n.º 2000/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro, e estabelecendo as bases e o quadro institucional para a gestão sustentável das águas.

  • Tem documento Em vigor 2012-08-16 - Decreto Legislativo Regional 35/2012/A - Região Autónoma dos Açores - Assembleia Legislativa

    Define o regime de coordenação dos âmbitos do sistema de gestão territorial, o regime geral de uso do solo e o regime de elaboração, acompanhamento, aprovação, execução e avaliação dos instrumentos de gestão territorial.

  • Tem documento Em vigor 2014-04-10 - Lei 17/2014 - Assembleia da República

    Estabelece as Bases da Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional.

  • Tem documento Em vigor 2014-05-30 - Lei 31/2014 - Assembleia da República

    Estabelece as bases gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo e excepciona a sua aplicação ao ordenamento e à gestão do espaço marítimo nacional.

  • Tem documento Em vigor 2015-03-12 - Decreto-Lei 38/2015 - Ministério da Agricultura e do Mar

    Desenvolve a Lei n.º 17/2014, de 10 de abril, que estabelece as Bases da Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional

  • Tem documento Em vigor 2015-05-14 - Decreto-Lei 80/2015 - Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia

    Aprova a revisão do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de setembro

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