Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 252/2014, de 9 de Maio

Partilhar:

Sumário

Não declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 3 do artigo 188.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (Orçamento do Estado para 2013). (Processo n.º 525/13)

Texto do documento

Acórdão 252/2014

Processo 525/13

Plenário

Relator: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - O Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira veio "solicitar a fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade do n.º 3 do artigo 188.º da Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro, que aprova o Orçamento de Estado para 2013, conjugado com o n.º 1 do artigo 187.º da mesma lei, conforme explicitado no parecer" para esse efeito anexado.

Do parecer para que remete o pedido apresentado constam as seguintes conclusões:

"1.ª - A norma da alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição, ao determinar que constitui um poder das regiões autónomas "Dispor ...das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas", tal poder, no confronto com as receitas tributárias/fiscais da autoridade do Estado", expressa no segundo normativo daquela línea j), ao referir "bem como de uma participação nas receitas tributárias do Estado", resulta que há, na equação constitucional em matéria de receitas fiscais, uma reserva constitucional de receitas tributárias das regiões autónomas, precisamente traduzida na titularidade/disponibilidade das "receitas fiscais nelas cobradas ou geradas".

2.ª - Esta reserva constitucional abrange qualquer receita fiscal, seja ela obtida através de impostos principais ou de impostos acessórios (adicionais, sobretaxas, etc.), seja a obtida em "regime de normalidade fiscal" (impostos ordinários), seja a obtida em "regime de anormalidade fiscal" (impostos extraordinários).

3.ª - Tratando-se de uma matéria fundamental para a autonomia político-administrativa dos arquipélagos, o que lhe confere uma "sensibilidade" constitucional superlativa, mal se compreenderia que o legislador constitucional, se quisesse ou tivesse querido excluir daquela reserva as receitas cobradas ou geradas por impostos extraordinários, o não fizesse expressamente.

4.ª - Sendo constitucionalmente atribuídas às regiões as receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, consubstanciando, nestes termos uma receita constitucionalmente reservada à respetiva região, esta reserva é constitucionalmente indisponível e irrestringível, constituindo um limite constitucional à soberania fiscal do Estado, não permitindo ou habilitando a Constituição que o legislador nacional reverta ou converta para receitas tributárias do Estado o que ela própria, na mesma disposição constitucional, qualifica como receitas tributárias das regiões autónomas.

5.ª - Pelo que se impõe extrair a sanção jurídico-constitucionalmente pertinente: a norma contida no n.º 3 do artigo 188.º da Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro, que aprova o Orçamento de Estado para 2013, nos termos do qual "A receita da sobretaxa reverte integralmente para o Orçamento de Estado", conjugada com a norma do n.º 1 do artigo 187.º da mesma lei, ao determinar que "Sobre a parte do rendimento coletável do IRS ... auferido por sujeitos passivos residentes em território português, que exceda, por sujeito passivo, o valor anual da retribuição mínima mensal garantida, incide a sobretaxa de 3,5 %", é materialmente inconstitucional quando interpretada no sentido de, nela, também serem abrangidas as receitas fiscais que a alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição atribui às regiões autónomas, no primeiro segmento normativo da mesma alínea ("Dispor ...das receitas fiscais nelas cobrada sou geradas").

6.ª - A justificação e o fundamento que o legislador pretende invocar para a reversão integral da receita da sobretaxa para o Orçamento do Estado - n.º 3 do artigo 188.º da Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro, que aprova o Orçamento do Estado para 2013, conjugado com o n.º 1 do artigo 187.º da mesma lei, respeitante à sobretaxa de 3,5 % sobre a parte do rendimento coletável do IRS, que remetem para as normas da lei de enquadramento orçamental - referem-se exclusivamente às transferências a efetuar por conta do Orçamento do Estado, sendo isto, e apenas isto, o que pode significar o artigo 88.º da lei de enquadramento orçamental, nos termos do qual a lei do orçamento pode determinar transferências do Orçamento do Estado de montante inferior àquele que resultaria das leis financeiras especialmente aplicáveis (n.º 1), sendo que aquela possibilidade de redução depende sempre da verificação de circunstâncias excecionais (n.º 2).

7.ª - Tal remissão da lei do Orçamento do Estado, relativamente às receitas fiscais, só pode habilitar/justificar, nos termos da Constituição, uma participação menor das regiões autónomas nas receitas tributárias da titularidade do Estado em relação àquela que, em regra, seria esperável não fosse a ocorrência de circunstâncias excecionais, e nunca que o Estado se aproprie da titularidade de receitas fiscais que a Constituição reserva às regiões autónomas.

8.ª - Mesmo a admitir-se no plano hipotético que o legislador nacional pudesse dispor das receitas fiscais autónomas extraordinárias, fazendo-as reverter integralmente para o Orçamento de Estado, numa avaliação comparativa de soluções, ainda assim não encontraria justificação constitucional: à luz de um critério constitucional medido pelo princípio da proporcionalidade/exigibilidade, a impor a adoção de medidas nacionais menos ofensivas para a autonomia regional, designadamente a autonomia fiscal/financeira, enquanto pilar fundamental da autonomia político-administrativa das regiões autónomas ou enquanto substrato material da sua autonomia político-administrativa, tem de se concluir que o legislador nacional dispunha (e dispõe) de outras soluções financeiras/orçamentais para conseguir o desiderato pretendido, podendo, inclusivamente, fazer entrar nessa própria equação a sobretaxa de IRS, sem que, para o efeito, tenha de amputar às regiões a titularidade constitucional das "receitas fiscais nelas cobradas ou geradas".

9.ª - O juízo de constitucionalidade não se altera contra um eventual argumento baseado no facto de a lei, ao dizer que a "receita da sobretaxa reverte integralmente para o Orçamento de Estado", não pretende afetar aquela titularidade, mas tão só a sua disponibilidade: este eventual argumento fica prejudicado pelo seu manifesto artificiosíssimo, na medida em que sempre ficaria cerceado o núcleo essencial daquela ou uma das projeções dela - a efetiva disponibilidade da receita fiscal.»

2 - Notificada para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, a Assembleia da República, através da respetiva Presidente, limitou-se a oferecer o merecimento dos autos.

3 - Apresentado o memorando a que se refere o n.º 1 do artigo 63.º da Lei 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre elaborar acórdão nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

II - Fundamentação

A) Da legitimidade processual do requerente

4 - No presente processo, o Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira vem requerer a fiscalização abstrata da constitucionalidade do n.º 3 do artigo 188.º da Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro, que aprova o Orçamento de Estado para 2013, conjugado com o n.º 1 do artigo 187.º da mesma lei, invocando como parâmetro material de invalidação, conforme explicitado no parecer para o efeito anexado, a norma constante da alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição.

A alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição atribui ao Presidente das Assembleias Legislativas das regiões autónomas legitimidade para requerer a fiscalização da constitucionalidade de normas com fundamento na violação dos direitos das regiões autónomas.

Ao invés do que sucede com o poder de iniciativa atribuído aos demais órgãos enumerados no n.º 2 do artigo 281.º da Constituição, aquele que é conferido às entidades mencionadas na respetiva alínea g) é, não geral, mas limitado, resultando essa limitação dos específicos requisitos a que se encontra sujeita a respetiva causa de pedir.

O poder de requerer a fiscalização abstrata da constitucionalidade de normas conferido ao Presidente das Assembleias Legislativas das regiões autónomas pressupõe, assim, que esteja em causa uma eventual violação de direitos das regiões autónomas consagrados na Constituição, isto é, dos "direitos constitucionalmente reconhecidos às regiões face à República" (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed., Coimbra, 2010, pg. 967).

O entendimento segundo o qual, quando o pedido for de declaração de inconstitucionalidade, o poder de iniciativa conferido pela alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição se encontra tematicamente circunscrito, para efeitos de legitimidade processual ativa, à violação dos "direitos que conformarem constitucionalmente de modo direto a autonomia político-administrativa das regiões" (cf. Acórdão 634/2006) vem sendo sucessivamente reafirmado na jurisprudência deste Tribunal (neste sentido, vide Acórdãos n.os 403/89, 198/2000, 615/2003, 75/2004, 491/2004, 239/2005 e 411/2012), desta se podendo com clareza extrair a ideia de que só "com fundamento em normas constitucionais que definam poderes jurídicos conferidos às regiões autónomas enquanto pessoas coletivas territoriais, em concretização do princípio da autonomia político-administrativa regional", poderão "as entidades mencionadas no artigo 281.º, n.º 2, alínea g), da Constituição, requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de quaisquer normas" (cf. Acórdão 615/03).

No caso em presença, a invocação da inconstitucionalidade da norma orçamental contida no n.º 3 do artigo 188.º da Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro, na medida em que tem por fundamento a violação da alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição, que atribui às regiões autónomas o poder de dispor, nos termos dos estatutos e da lei de finanças das regiões autónomas, das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, visa indubitavelmente a defesa das normas constitucionais que consagram os poderes substantivos em que se traduz o regime político-administrativo dos Açores e da Madeira, o que basta para que se conclua pela legitimidade do requerente em face do critério estabelecido na alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º da Lei Fundamental.

B) Do mérito

5 - Cumpre, assim, apreciar do mérito do pedido quanto à questão de inconstitucionalidade colocada pelo requerente a este Tribunal.

5.1 - O requerente pretende ver declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 188.º da Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro - Orçamento do Estado para 2013, em conjugação com o n.º 1 do artigo 187.º, do mesmo diploma legal.

O n.º 3 do artigo 188.º da Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro, tem o seguinte teor:

"Artigo 188.º

Disposições transitórias no âmbito do IRS

[...].

3 - A receita da sobretaxa reverte integralmente para o Orçamento do Estado, nos termos dos artigos 10.º-A, 10.º-B e 88.º da lei de enquadramento orçamental, aprovada pela Lei 91/2001, de 20 de agosto, alterada e republicada pela Lei 52/2011, de 13 de outubro

A sobretaxa cujo destino é fixado no n.º 3 do artigo 188.º da Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro, encontra-se prevista no respetivo artigo 187.º, em cujo n.º 1 se dispõe o seguinte: "Sobre a parte do rendimento coletável do IRS que resulte do englobamento nos termos do artigo 22.º do Código do IRS, acrescido dos rendimentos sujeitos às taxas especiais constantes dos n.os 3, 6, 11 e 12 do artigo 72.º do mesmo Código, auferido por sujeitos passivos residentes em território português, que exceda, por sujeito passivo, o valor anual da retribuição mínima mensal garantida, incide a sobretaxa de 3,5 %».

No Acórdão 187/2013, em que concluiu pela conformidade constitucional da norma constante do n.º 1 do artigo 187.º da Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal teve já ocasião de esclarecer a natureza da taxa adicional aí prevista, considerando que a mesma, apesar de corresponder a uma verdadeira "sobretaxa em sede de IRS", apresenta "elementos dissonantes das regras gerais do IRS", uma vez que: i) "tem uma taxa fixa (em vez de se lhe aplicarem as taxas gerais progressivas previstas no artigo 68.º do CIRS)"; ii) "é sujeita a um regime próprio de retenção na fonte (n.º 5 do artigo 187.º)"; iii) "tem deduções à coleta próprias, quer quanto ao tipo de despesas atendíveis quer quanto aos seus limites (n.º 2 do artigo 187.º)", distintas das previstas nos artigos 78.º e segs. do CIRS.

Nesta sobretaxa, assim caracterizável, não teve o Tribunal dúvidas em reconhecer uma medida de "natureza excecional e transitória, destinada a dar resposta às necessidades de finanças públicas extraordinárias" que motivaram em larga medida as soluções consagradas na Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro - Orçamento do Estado para 2013, em particular a de "extrair as devidas consequências da decisão do Tribunal Constitucional, que declarou a inconstitucionalidade, com efeitos a partir de 2013, das normas dos artigos 21.º e 25.º da lei do Orçamento do Estado para 2012", compensando, através da introdução da referida sobretaxa, os efeitos da limitação a "apenas um dos subsídios" da parcial suspensão dos rendimentos auferidos pelos "trabalhadores do setor público" prevista na Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro, para o ano de 2013 (cf. relatório sobre o OE2013, p. 67).

5.2 - Por dispor que a "sobretaxa em sede de IRS" prevista no n.º 1 do artigo 187.º da Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro, reverte integralmente para o Orçamento do Estado, nos termos dos artigos 10.º-A, 10.º-B e 88.º da lei de enquadramento orçamental, ao n.º 3 do artigo 188.º daquele diploma legal é imputada a violação da prescrição contida na alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição, nessa violação sendo feita radicar a inconstitucionalidade que se pretende ver declarada.

Nem a questão geral da compatibilidade entre a afetação ao Orçamento de Estado de sobretaxas extraordinárias lançadas sobre os rendimentos sujeitos a IRS e a dimensão fiscal da autonomia político-administrativa das regiões autónomas, tal como consagrada na alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição, nem, mais concretamente, a questão da conformidade a esta última previsão da norma aqui impugnada - isto é, da constante do n.º 3 do artigo 188.º da Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro -, são novas na jurisprudência deste Tribunal.

No Acórdão que recentemente apreciou o pedido de "declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade e, subsidiariamente, da ilegalidade", entre outros, do "n.º 3 do artigo 188.º da Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro - Orçamento do Estado para 2013", apresentado por um grupo de Deputados do Grupo Parlamentar do Partido Socialista na Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores (cf. Acórdão 767/2013), o Tribunal começou justamente por retomar o entendimento seguido no Acórdão 412/2012, que se pronunciou sobre a norma contida na Lei 49/2011, de 7 de setembro, que, com fundamento nas exigências de cumprimento do défice estabelecido para esse ano no âmbito do programa de ajustamento económico e financeiro (PAEF) acordado com as instituições europeias e com FMI, aprovou uma sobretaxa extraordinária sobre os rendimentos sujeitos a IRS auferidos em 2011.

A respeito da sobretaxa extraordinária de 2011, escreveu-se em tal Acórdão 412/2012, o seguinte:

"A sobretaxa em causa é de facto um imposto extraordinário (ou, se se preferir um adicional extraordinário a um imposto), o que é comprovável para lá da etiqueta "sobretaxa extraordinária". Em primeiro lugar, é justificada pela ocorrência de circunstâncias excecionais na Exposição de motivos da Proposta de lei que deu origem àquele diploma, onde se lê o seguinte: "A prossecução do interesse público, em face da difícil situação económico-financeira do País, exige um esforço de consolidação que requererá, além de um maior ativismo na redução da despesa pública, a introdução de medidas fiscais adicionais, inseridas num conjunto mais vasto de medidas de combate ao défice orçamental, que permitirão a obtenção de receita fiscal adicional estimada em cerca de oitocentos milhões de euros já em 2011 [...]. Em segundo lugar, a sobretaxa tem caráter marcadamente temporário ao incidir exclusivamente sobre os rendimentos auferidos em 2011, o que é assumido expressamente naquela Exposição de motivos e tem letra de lei no n.º 3 do artigo 2.º da Lei 49/2011, nos termos do qual o artigo que a cria aplica-se apenas aos rendimentos auferidos durante o ano de 2011, cessando a sua vigência após a produção de todos os seus efeitos em relação ao ano fiscal em curso».

5.3 - Conforme expressamente se reconheceu no Acórdão 767/2013, a questão de constitucionalidade objeto de análise no Acórdão 412/2012 é idêntica àquela que ali se suscitou relativamente ao n.º 3 do artigo 188.º da Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro, esta por seu turno coincidindo, nos seus precisos e integrais termos, com aquela que é aqui colocada, desta feita por iniciativa do Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira.

Tal como agora volta a suceder, tratava-se então de saber se uma norma com o teor do atual artigo 188.º, n.º 3, da Lei 66-B/2012, que determina a reversão integral para o Orçamento do Estado das receitas da sobretaxa extraordinária sobre os rendimentos sujeitos a IRS auferidos em 2013, viola o artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da CRP, que atribui às regiões autónomas o poder de dispor, nos termos dos estatutos e da lei de finanças das regiões autónomas, das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas.

Mais do que a invocação de especificidades associáveis ao contexto em que ocorre a destinação fixada no n.º 3 do artigo 188.º da Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro, os argumentos que servem de fundamento ao pedido apresentado pelo Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira exprimem, no essencial, uma discordância relativamente à posição que vem sendo seguida na jurisprudência do Tribunal.

Contra a tese em que se apoia o pedido - de acordo com a qual a "reserva constitucional de receitas tributárias das regiões autónomas" consagrada na alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º da Lei Fundamental, para além de se traduzir na "titularidade/disponibilidade das "receitas fiscais nelas cobradas ou geradas"», "abrange qualquer receita fiscal, seja ela obtida através de impostos principais ou de impostos acessórios (adicionais, sobretaxas, etc.), seja a obtida em "regime de normalidade fiscal" (impostos ordinários), seja a obtida em "regime de anormalidade fiscal" (impostos extraordinários)» -, este Tribunal vem entendendo, de forma firme e reiterada (Acórdãos n.os 11/83, 66/84 e 141/85 e 412/12), que normas do teor daquela que o requerente convoca como parâmetro de invalidação da solução legal impugnada "não podem deixar de ser interpretadas no sentido de consentirem o lançamento de impostos de caráter extraordinário cujo produto reverta inteiramente para o Estado, quando ocorram circunstâncias excecionais, nomeadamente de crise económico-financeira, que justifiquem esse comportamento legislativo. Decerto que o legislador constitucional, ao estabelecer os princípios constantes dos artigos atrás mencionados, teve basicamente presente um quadro de normalidade financeira e, consequentemente, tão-só os impostos ordinários correntes, razão pela qual devem poder haver-se por excluídos daquele quadro os impostos extraordinários e não permanentes ditados por razões de manifesta excecionalidade» (cf. Acórdão 11/83, para o qual remete, por exemplo, o Acórdão 412/12).

Enfrentando diretamente os argumentos doutrinários que ao entendimento seguido foram sendo opostos - em particular o que aponta para a equiparação entre impostos ordinários e impostos extraordinários para efeitos de delimitação do âmbito do poder de disposição das receitas fiscais cobradas ou geradas nas regiões autónomas a estas atribuído pela alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição -, o Acórdão 412/2012 rejeitou-os de forma expressa, reafirmando a ideia segundo a qual a "norma constitucional sobre reserva regional das receitas tributárias cobradas ou geradas nas regiões autónomas, na medida em que pretende garantir um poder orçamental autónomo relativamente aos órgãos da República e, concomitantemente, a autonomia financeira destas pessoas coletivas territoriais, consente o lançamento de impostos de caráter extraordinário cujo produto reverta inteiramente para o Estado (para o Orçamento do Estado)", não vedando por isso ao legislador nacional o "lançamento de um imposto que afete logo a receita, excecionalmente, à prossecução de uma finalidade específica de âmbito nacional", nem obstando, por consequência, a que "a receita fiscal cobrada ou gerada nas regiões autónomas" não possa ser neste caso "afetada às suas despesas". Conforme teve então o Tribunal ocasião de precisar, este "tipo de impostos, porque vão além do quadro de normalidade financeira, onde se inscrevem os impostos ordinários correntes, não subtrai às regiões autónomas as receitas fiscais que tornam efetivo o poder de aprovação (a liberdade de conformação) de um orçamento próprio, financiado com receitas regionais próprias, constitucionalmente enquadrado na autonomia financeira regional" (cf. Acórdão 412/2012).

5.4 - A posição assumida no Acórdão 412/2012 foi seguida sem reservas no Acórdão 767/2013, que, conforme se referiu, apreciou a validade constitucional da norma constante do n.º 3 do artigo 188.º da Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro, aqui impugnada.

Retomando uma vez mais o entendimento segundo o qual as receitas provenientes da fixação de uma sobretaxa extraordinária sobre os rendimentos sujeitos a IRS auferidos no decurso de determinado ano fiscal, cobrada nas regiões autónomas, se situam fora do âmbito de aplicação do artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da CRP, o Tribunal recusou assim, também em relação ao n.º 3 do artigo 188.º da Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro, a perspetiva defendida pelo aqui requerente, de acordo com a qual a dimensão fiscal da autonomia político-administrativa das regiões autónomas, tal como ali definida, coloca sob reserva regional simultaneamente indisponível e irrestringível todas e quaisquer receitas fiscais cobradas ou geradas na região, vedando consequentemente ao legislador nacional a possibilidade de reverter para o Orçamento do Estado receitas provenientes de impostos lançados a título extraordinário e temporário, ainda que destinados - e por isso constitucionalmente legitimados - a fazer face a uma situação de emergência financeira nacional.

Ao contrário do requerente, que considera que a solução preconizada nos Acórdãos n.os 11/83, 66/84, 141/85 e 412/12, e entretanto retomada no Acórdão 767/2013, pressuporia que o legislador constitucional tivesse subtraído expressamente à reserva regional fixada na alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP as receitas geradas ou cobradas por impostos extraordinários, o Tribunal vem afirmando que tal solução sempre resultaria de uma interpretação "da alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP que não desconsidere outras normas e princípios constitucionais", em particular o "princípio da solidariedade nacional», na dimensão em que o mesmo surge consagrado no n.º 2 do artigo 225.º da CRP.

Conforme se escreveu ainda no Acórdão 412/2012, o n.º 2 do artigo 225.º da CRP estabelece que "a autonomia das regiões visa também o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses, pelo que o princípio da solidariedade nacional "não pode ser perspetivado por forma a dele se extrair uma só direccionalidade, qual seja a da solidariedade representar unicamente a imposição de obrigações do Estado para com as Regiões Autónomas"», devendo antes acomodar a ideia de que ""não poderão deixar de ser ponderados também os interesses das populações do território nacional no seu todo" (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 11/2007, cujo entendimento foi reiterado nos Acórdãos n.os 581/2007 e 499/2008, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt. Na doutrina, no mesmo sentido, Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., anotação ao artigo 229.º, ponto II)».

Afastando-se da tese em que o requerente fundamenta a sua pretensão, de acordo com a qual a justificação e o fundamento invocados pelo legislador nacional para o lançamento da sobretaxa extraordinária em sede de IRS apenas pode habilitar, "nos termos da Constituição, a uma participação menor das regiões autónomas nas receitas tributárias da titularidade do Estado em relação àquela que, em regra, seria esperável não fosse a ocorrência de circunstâncias excecionais", o Tribunal vem considerando, em suma, que a alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP, seja por ter por referência um quadro de normalidade financeira, seja por não poder deixar de se sujeitar à influência do entendimento de que ""a ideia de solidariedade coenvolve a de reciprocidade" (Acórdão 581/2007) e que esta coenvolve a contribuição das regiões "para o cumprimento dos objetivos de política económica a que o Estado Português esteja vinculado por força de tratados ou acordos internacionais, nomeadamente os que decorrem de políticas comuns ou coordenadas de crescimento, emprego e estabilidade e de política monetária comum da União Europeia"» (cf. Acórdão 412/2012), não veda ao legislador nacional a "afetação prévia da receita em causa à prossecução de uma finalidade específica a nível nacional", que obste, de acordo com a razão que a justifica, "à afetação da mesma às despesas das regiões autónomas" (cf. idem).

Para tal efeito, não carece o legislador nacional de demonstrar, para além dessa finalidade específica, a impossibilidade de "adoção de medidas nacionais menos ofensivas para a autonomia regional", contrariamente ao que se sustenta no pedido.

III - Decisão

6 - Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 3 do artigo 188.º da Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro.

Lisboa, 18 de março de 2014. - Maria José Rangel de Mesquita - Pedro Machete - Ana Guerra Martins - Fernando Vaz Ventura - Maria Lúcia Amaral - José da Cunha Barbosa - Carlos Fernandes Cadilha - Lino Rodrigues Ribeiro - Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida, nos termos da declaração junta) - Catarina Sarmento e Castro [vencida, nos termos da declaração de voto aposta ao Acórdão 412/2012 e ao Acórdão 767/2013 (n.º 3)] - João Cura Mariano (vencido pelas razões constantes das declarações de voto apostas por mim e pela Conselheira Catarina Sarmento e Castro no Acórdão 412/2012) - Joaquim de Sousa Ribeiro.

Tem voto de concordância da Conselheira Maria João Antunes que não assina por entretanto ter cessado funções neste Tribunal.

Declaração de voto

Vencida nos termos do ponto 4. da declaração de voto aposta ao Acórdão 767/13.

Renovo, também, a divergência expressa no ponto 2. da minha declaração de voto constante do Acórdão 767/13, no que respeita à metodologia seguida na verificação da legitimidade processual das entidades regionais para formularem pedidos de fiscalização abstrata de constitucionalidade, de acordo com o previsto no artigo 281.º, n.º 2 alínea g) da Constituição. - Maria de Fátima Mata-Mouros

207790827

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/316942.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1983-10-20 - Acórdão 11/83 - Tribunal Constitucional

    Referente à apreciação pelo Tribunal Constitucional da constitucionalidade dos artigos 1.º e 3.º do Decreto n.º 32/III da Assembleia da República, que cria um imposto extraordinário sobre rendimentos colectáveis sujeitos a contribuição predial, imposto de capitais e imposto profissional.

  • Tem documento Em vigor 2001-08-20 - Lei 91/2001 - Assembleia da República

    Estabelece as disposições gerais e comuns de enquadramento dos orçamentos e contas de todo o sector público administrativo - Lei de enquadramento orçamental.

  • Tem documento Em vigor 2011-09-07 - Lei 49/2011 - Assembleia da República

    Aprova uma sobretaxa extraordinária sobre os rendimentos sujeitos a IRS auferidos no ano de 2011, alterando o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro.

  • Tem documento Em vigor 2011-10-13 - Lei 52/2011 - Assembleia da República

    Altera (sexta alteração) a lei de enquadramento orçamental, aprovada pela Lei 91/2001, de 20 de Agosto, procedendo à sua republicação, e determina a apresentação da estratégia e dos procedimentos a adoptar até 2015 em matéria de enquadramento orçamental.

  • Tem documento Em vigor 2012-12-31 - Lei 66-B/2012 - Assembleia da República

    Aprova o Orçamento do Estado para o ano de 2013.

  • Tem documento Em vigor 2013-04-22 - Acórdão do Tribunal Constitucional 187/2013 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos art.s 29.º, 31.º, 77.º e n.º 1 do art. 117.º, da Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2013), e não declara a inconstitucionalidade, das normas constantes dos art.s 27.º, 45.º, 78.º, 186.º (na parte em que altera os art.s 68.º, 78.º e 85.º e adita o art. 68.º-A do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Dec Lei 442-A/88, de 30 de novembro) e art. 187.º, todas (...)

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda