Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 409/2008, de 24 de Setembro

Partilhar:

Sumário

Não julga inconstitucional a norma constante do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção dada pelo artigo 95.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, interpretado no sentido de que pode o tribunal de julgamento determinar a notificação aí prevista

Texto do documento

Acórdão 409/2008

Processo 361/08

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - Relatório. - José Manuel Valdez da Silva Cepeda foi condenado, por sentença de 19 de Abril de 2007 do Tribunal Judicial da Comarca de Ovar, como autor de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 24.º, n.os 1 e 5, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa pelo período de 3 anos, com a obrigação de o arguido pagar, durante o período da suspensão, ao Estado Português a quantia de (euro) 35 333,33.

Desta sentença interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação do Porto, suscitando na respectiva motivação, para além do mais (prescrição do procedimento criminal, errado enquadramento legal dos factos praticados, violação dos artigos 40.º e 70.º do Código Penal e verificação de circunstâncias que imporiam a atenuação especial da pena), questões relativas: (i) à nulidade da decisão por violação do artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal; (ii) à nulidade da decisão por da acusação não constarem factos suficientes para condenar o arguido e por violação do princípio do acusatório, por a condenação ter sido proferida com base em factos não compreendidos naquela peça processual e ocorridos após a sua prolação; e (iii) à violação do princípio da legalidade - com base em argumentação sintetizada nas seguintes conclusões:

«1.ª Foi o recorrente condenado como autor de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, em pena de prisão de um ano e seis meses, suspensa na sua execução, e subordinada à condição do pagamento da quantia de (euro) 35 333,33.

2.ª Sucede, no entanto, que não só deveria o arguido ser absolvido da prática de tal crime, como também enferma a douta sentença em recurso de nulidade insanável.

3.ª De facto, a 1 de Janeiro de 2007 entrou em vigor a Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro, que veio introduzir alterações ao RGIT.

4.ª A alteração em causa incidiu sobre o n.º 4 do artigo 105.º do invocado diploma legal, através do acrescento de uma nova alínea b).

5.ª Confrontando o regime legal resultante da invocada alteração com o regime legal anterior, constata-se então que, para que se verifique a ocorrência de um crime de abuso de confiança fiscal é sempre necessário que ocorra uma notificação para que o agente, em 30 dias, proceda ao pagamento da prestação tributária em falta, acrescida dos juros e eventual coima.

6.ª Tal alteração consubstancia uma verdadeira despenalização dos factos que, face à anterior lei, constituía crime de abuso de confiança fiscal.

7.ª Na verdade, no regime anteriormente vigente, o tipo de ilícito reconduzia-se a uma mora qualificada no tempo, sendo a mora simples punida como contra-ordenação, ilícito de menor gravidade.

8.ª Presentemente, o legislador aditou uma circunstância que, por referir-se ao agente, encontra-se no cerne da conduta proibida.

9.ª Com efeito, na nova lei, impõe-se agora que o agente não entregue à Administração Tributária, total ou parcialmente, prestação tributária, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigada a entregar, pelo prazo superior a 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação e desde que não tenha procedido ao pagamento da prestação comunicada à Administração Tributária, através da correspondente declaração, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

10.ª E, deste modo, o legislador até agora criminalizava uma mora qualificada relativamente a um objecto material do crime, o imposto, atendendo aos fins deste. Actualmente, pretende estabelecer como crime uma mora específica e um contexto relacional qualificado.

11.ª Ora, de acordo com o artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal, o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número de infracções.

12.ª Assim, ao não determinar a extinção do procedimento criminal, e, ao invés, ao ter condenado o aqui recorrente em pena de prisão, violou a douta sentença o disposto no referido artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal.

Sem conceder,

13.ª Mesmo que se não entenda que ocorreu despenalização dos factos imputados ao recorrente, o que é certo é que nunca a douta sentença ora em recurso deveria ter condenado o arguido, enfermando a mesma de nulidade.

14.ª Assim, mesmo que se entenda que a nova alteração veio, não configurar despenalização, mas sim acrescentar uma nova condição de punibilidade, o que é certo é que da acusação não constavam factos suficientes para que, mesmo que provada, viesse o procedimento criminal a terminar, tal como terminou, na condenação do arguido aqui recorrente.

15.ª De facto, não obstante não ter ocorrido qualquer alteração ao conteúdo da acusação, nos termos do disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal, o que é certo é que, já após a realização da audiência de julgamento, o tribunal notificou o arguido para efectuar o pagamento dos tributos em causa, acrescido da respectiva coima e encargos legais, sendo que, após tal notificação, e após ter ultrapassado o prazo sem que o pagamento se verificasse, veio a douta sentença a incluir tais factos e assim veio a condenar o recorrente.

16.ª Ora, a inclusão destes factos, que no fundo traduzem os factos consubstanciadores das novas condições de punibilidade, viola a lei, consubstanciando nulidade.

17.ª Na verdade, de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal, a acusação considerar-se-á infundamentada quando não contenha a narração dos factos ou quando os factos não constituírem crime.

18.ª Por outro lado, e de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, a sentença será considerada nula quando condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia ou quando o tribunal conheça ou se pronuncie sobre questões de que não podia tomar conhecimento.

19.ª Ora, conforme decorre do exposto, o tribunal, de facto, conheceu de factos não constantes da douta acusação, e concretamente avaliou e ponderou a falta de pagamento dos tributos por parte do arguido, no prazo de 30 dias.

20.ª Com efeito, face à lei actual, os prazos que ora são consignados fazem parte integral do ilícito penal do crime de abuso de confiança fiscal, pois que para que se verifique o crime de abuso de confiança fiscal é sempre necessário, para além do decurso do prazo legal da entrega da prestação, existir o não pagamento na sequência de uma notificação para que o agente, em 30 dias, proceda ao pagamento da prestação comunicada à Administração Fiscal, acrescida de juros e do valor da coima aplicável.

21.ª Ora, se as novas condições de punibilidade respeitantes ao tipo de ilícito em causa se não encontram na acusação, não pode o Tribunal substituir-se ao Ministério Público, ou à Administração Fiscal, aditando os elementos em falta.

22.ª Consequentemente, não só, no caso em apreço, a acusação se demonstrava infundada, como também o tribunal se pronunciou sobre factos não constantes na mesmíssima acusação.

23.ª Como tal, enferma a douta sentença de nulidade de acordo com o preceituado nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP.

24.ª Por outro lado, viola ainda a douta sentença o princípio do acusatório, já que tal sentença condenatória foi proferida com base na falta de pagamento dos tributos no prazo de 30 dias após notificação efectuada pelo Tribunal, sendo que, não só tais factos se não compreendiam na acusação, como, inclusivamente, são factos posteriores à prolação de tal acusação e mesmo, até, da audiência de julgamento.

25.ª Para além de violar o princípio do acusatório, violou também a sentença em causa o princípio da legalidade.

26.ª Com efeito, ao substituir-se o Tribunal ao Ministério Público, e deste modo à Administração Fiscal, notificando o ora recorrente para efectuar o pagamento dos tributos e demais acréscimos, ofendeu os ditames constitucionais consagrados nos artigos 202.º e 219.º da Constituição da República Portuguesa, incorrendo deste modo em interpretação inconstitucional do preceito legal resultante da nova redacção introduzida pelo artigo 95.º da Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro, ao n.º 4 do artigo 105.º do RGIT.»

Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12 de Dezembro de 2007, foi concedido parcial provimento ao recurso, ficando o recorrente condenado, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punível pelo artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho (cujo regime foi considerado mais favorável para o arguido que o constante do artigo 24.º, n.º s 1 e 5, do RJIFNA), na pena de 14 meses de prisão, com suspensão da sua execução pelo período de 14 meses, subordinada à condição de o arguido pagar ao Estado a quantia de (euro) 35 333,33 durante o período de suspensão. Relativamente às questões suscitadas nas conclusões da motivação atrás transcritas, expendeu o referido acórdão:

«II - Nulidade da decisão recorrida por violação do artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal.

O arguido imputa à decisão recorrida a violação do artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal, isto porque com a entrada em vigor da Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro, ocorreu uma verdadeira despenalização dos factos que, face à lei anterior, integravam o tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal.

O artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias contém a previsão do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal. Nos termos do seu n.º 1, 'quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias'.

E dispõe o actual n.º 4: 'Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito'.

Foi este n.º 4 que viu a sua redacção alterada pela Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro. Antes desta alteração a norma dispunha que 'os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação'.

Como todos sabemos, esta alteração tem gerado muita polémica, centrando-se a discussão à volta da questão de saber se a nova lei despenalizou, ou não, os anteriores comportamentos enquadráveis naquele tipo legal de crime, ou se a previsão da alínea b) constitui, tão-só, uma nova condição de punibilidade.

Não obstante a grande valia do entendimento contrário, a verdade é que entendemos que a nova lei não despenalizou as condutas que, face à lei antiga, constituíam crime de abuso de confiança fiscal.

Usando as palavras do acórdão do STJ, de 21 de Março de 2007, processo 06P4079, diremos que "na descrição do artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a construção do tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal define uma conduta que consiste na simples não entrega à administração fiscal de uma prestação tributária que o agente deduziu nos termos da lei como substituto tributário, e que estava, também nos termos da lei, obrigado a entregar em determinado prazo. (...) A conduta prevista no tipo traduz-se, pois, em uma omissão pura (...) esgota-se no não cumprimento de um dever. (...) Sendo uma infracção omissiva pura, consuma-se com a não entrega, dolosa, nos termos e no prazo da entrega fixado para cada prestação - artigo 5.º, n.º 2, do RGIT. Os factos descritos no artigo 105.º, n.os 1 a 3, do mesmo diploma, só são, porém, puníveis - dispõe o n.º 4 desse preceito - se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação [alínea a)], ou 'se a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos respectivos juros e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após comunicação para o efeito' [alínea b)]. (...) As condições de que depende, no caso, a punibilidade da conduta ('os factos [...] só são puníveis') constituem, pela natureza com que se apresentam na estrutura da norma, e pela função e finalidades a que, aí, estão determinadas, elementos que não integram a tipicidade, a ilicitude ou a culpa, mas que se ligam apenas, por circunstâncias adjacentes à natureza relevantemente funcionalista da infracção, à finalidade da pena, diminuindo a intensidade ou eliminando as necessidades da punição. (...) Os elementos que não fazem parte do tipo, da ilicitude ou da culpa, isto é, que não integram nem contendem com a dignidade penal do facto, mas apenas com a admissibilidade do procedimento ou com a (des)necessidade circunstancial da punição, constituem ou pressupostos processuais ou condições objectivas de punibilidade. Com efeito, em determinados casos, para que possa ter lugar o efeito sancionador, atende-se a outros elementos para além daqueles que integram o ilícito que configura o tipo. Por vezes, essas inserções ocasionais da lei entre a prática do facto ilícito e a sanção concreta inscrevem-se no direito material, hipótese em que se fala de condições objectivas ou externas de punibilidade; noutros casos, constituem parte do direito processual e denominam-se pressupostos processuais. As condições objectivas de punibilidade são aqueles elementos situados fora da definição do crime, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção antijurídica tenha consequências penais. Apesar de integrarem uma componente global do acontecer, e da situação em que a acção incide, não são, não obstante, parte desta acção. (...) São elementos situados fora do tipo, cuja presença constitui um pressuposto da actuação das consequências penais de uma acção típica e antijurídica; sendo componentes globais da situação sobre que incide a acção, não são, porém, propriamente parte da acção. (...) Não fazendo parte da acção, integram, todavia, o complexo facto-condições de que depende a aplicação de uma sanção penal (a punição), mas estão fora do perímetro de delimitação da infracção penal enquanto categoria autónoma de tipo de ilícito e de culpa (...)."

Assim sendo, não tem sentido convocar o contributo do artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal (vide ainda o acórdão deste Tribunal, de 10 de Outubro de 2007, processo 0713172).

Improcedem, pois, as conclusões 1.ª a 12.ª

III - Nulidade da decisão porque da acusação não constam factos suficientes para condenar e violação do princípio do acusatório porque esta foi proferida com base em factos não compreendidos naquela peça processual e ocorridos após a sua prolação.

O arguido alega, ainda, que mesmo entendendo-se que não ocorreu despenalização, a verdade é que a acusação não contém factos suficientes para a condenação. A consideração de factos ocorridos após a sua prolação, e mesmo após o julgamento, para condenar viola a lei e consubstancia nulidade: as novas condições de punibilidade respeitantes ao tipo de ilícito em causa não se encontram na acusação, pelo que não podia o tribunal conhecê-las.

Nos termos do n.º 5 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, 'o processo penal terá estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório'.

Com o princípio do acusatório o processo equivale, como diz Germano Marques da Silva, a um duelo judiciário entre a acusação e a defesa e onde o juiz, numa situação de supremacia e equidistância, disciplina a actuação 'das partes', não podendo intervir nos autos nem extravasar o conteúdo da acusação (Curso de Processo Penal, vol. I, 4.ª edição, pág. 58 e segs.)

A lei de autorização de revisão do CPP - Lei 43/86, de 26 de Setembro - referia que a autorização concedida visava a parificação do posicionamento jurídico da acusação e da defesa e incrementação da igualdade material de «armas» no processo. No entanto, ao mesmo tempo que dizia que o processo penal devia apontar para a máxima acusatoriedade, acrescentava que esta seria temperada com o princípio da investigação judicial. Portanto, princípio do acusatório temperado pelo princípio do inquisitório, tudo em nome da verdade material.

Em obediência àquele preceito constitucional, o poder de cognição do julgador é delimitado pelos factos que constam da acusação: 'o objecto do processo penal é, pois, essencialmente, o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (actividade cognitória) e a extensão do caso julgado (actividade decisória), ao que se chama de vinculação temática do tribunal, nele se consubstanciando os princípios da identidade (o objecto do processo deve manter-se o mesmo desde a acusação até ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade (o objecto do processo deve ser conhecido e julgado pelo tribunal na sua totalidade, é indivisível) e da consunção (o objecto do processo deve considerar-se irrepetivelmente decidido na sua totalidade)' - acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 3 de Outubro de 2007, recurso penal n.º 3707/07.

Tudo quanto expusemos vale relativamente aos elementos do tipo.

Mas, para além dos elementos do tipo, para que um determinado facto seja punido pelo direito penal terão que se verificar, também, as condições objectivas de punibilidade. Como dissemos já, estas, apesar de terem uma relação directa com o facto, estão fora dele: não pertencem nem ao tipo legal nem à culpa.

O tipo legal, no caso em análise, está plasmado no n.º 1 do artigo 105.º do RGIT e consubstancia-se na não entrega à Administração Tributária de prestação tributária, deduzida nos termos da lei, e que estava legalmente obrigado a entregar. Quanto ao n.º 4, aqui introduzem-se limites à punição nos casos em que os elementos do tipo se verificam, o que já acontecia anteriormente, com a anterior redacção do n.º 4 desta norma.

No caso em análise, estamos, portanto, perante uma condição objectiva de punibilidade, cujo accionamento está na disponibilidade do agente, e que, não integrando o tipo, não tem, por isso, que integrar a acusação.

Face ao exposto, conclui-se que a decisão recorrida não padece das nulidades apontadas, improcedendo as conclusões 13.ª a 24.ª

IV - Violação do princípio da legalidade.

O arguido imputa à decisão recorrida a violação do princípio da legalidade. Alega, para tanto, que o juiz, ao notificar para pagar os tributos devidos e demais acréscimos, em substituição ao Ministério Público e à Administração Fiscal, ofendeu os ditames constitucionais consagrados nos artigos 202.º e 219.º da Constituição da Republica Portuguesa, incorrendo deste modo em interpretação inconstitucional do preceito legal resultante da nova redacção introduzida pelo artigo 95.º da Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro, ao n.º 4 do artigo 105.º do RGIT.

Em direito penal, o princípio da legalidade é retratado, essencialmente e por regra, pelo princípio nullum crimen, nulla poena sine lege, ou seja, pelo princípio segundo o qual não há crime nem sanção sem que uma lei preexistente qualifique determinado comportamento como tal e preveja a respectiva punição.

Do mesmo princípio decorrem outras consequências, quais sejam, por exemplo, a proibição da interpretação extensiva das normas penais incriminadoras, a proibição de integração de lacunas por analogia, a imposição de efeitos retroactivos às leis penais mais favoráveis, a proibição de uma dupla condenação pelo mesmo facto.

No entanto, o arguido invocou aquele princípio num sentido bem diferente.

Não obstante, vejamos se lhe assiste razão.

O arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada.

Estatui o artigo 105.º do RGIT, que prevê e pune o crime em questão, que:

'1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.

3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.

4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação:

b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

(...)'

Como já se referiu, esta alteração convoca um problema de sucessão de leis no tempo, havendo que aplicar a nova lei aos casos pendentes, porquanto com esta pode o arguido eximir-se à condenação.

A questão que aqui se põe é a de saber qual a entidade competente para ordenar aquela notificação.

Nos termos do n.º 1 do artigo 105.º pratica um crime de abuso de confiança 'quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar [...]'

No entanto, anteriormente estes factos descritos só eram puníveis se tivessem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.

Até aqui tudo claro.

Vejamos, agora, a situação face à nova redacção da lei.

Tal como antes, pratica um crime de abuso de confiança fiscal 'quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ...' (n.º 1).

No entanto, estes factos só serão puníveis se 'tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação' [n.º 4, alínea a)] e se 'a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito' [n.º 4, alínea b)].

O funcionamento desta nova causa de exclusão depende de elementos concretos, a apurar com recurso a diligências complementares: há que apurar os juros devidos, dar a conhecer ao agente o montante global da quantia a pagar e aguardar o prazo de pagamento. A manutenção da punição dos factos descritos no n.º 1 depende da persistência do não pagamento, feita aquela notificação e decorrido este prazo.

Havendo pagamento, extingue-se o procedimento criminal. É esta, manifestamente, a intenção da lei.

Refere o relatório do Orçamento Geral do Estado para 2007 que a falta de entrega da prestação tributária pode estar associada ao incumprimento declarativo ou decorrer, tão-só, da falta de pagamento do imposto liquidado na referida declaração. No primeiro caso, existe clara intenção de ocultar os factos tributários à Administração Fiscal. Já no segundo não sucede o mesmo. Daí a introdução de tratamentos diferenciados para cada uma destas situações, não devendo "ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em prazo a conceder, evitando-se assim a 'proliferação' de inquéritos por crime de abuso de confiança fiscal que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do Ministério Público na sequência do pagamento do imposto".

O que a lei pretendeu, pois, foi dar mais uma oportunidade aos devedores.

Caso paguem, o problema termina. E termina ou na alçada da autoridade administrativa, ou na alçada do Ministério Público, se aquela já tiver comunicado o caso, ou termina na alçada do tribunal, caso já tenha sido proferida acusação.

Não fixando a lei a competência para proceder à notificação, significa que a concede a qualquer das entidades acima mencionadas: parece-nos que esta será a melhor leitura a fazer da lei. Quando assim não é, por exemplo no caso previsto no n.º 6 daquela norma, a lei refere-o expressamente.

Portanto, a notificação para os termos do n.º 4 do artigo 105.º será feita, em cada caso, pela entidade que detiver o processo quando a questão se coloque.

Aqui, como o processo já estava no tribunal, aquela notificação foi validamente feita por este. A decisão de notificar não colide com nenhuma norma legal, nem com princípios imanentes ao sistema, nomeadamente o da separação de poderes.

Em casos como o dos autos, entendemos não ser razoável que o processo regrida até à autoridade administrativa para que esta dê cumprimento àquela norma.

Afinal, o que esta notificação significa 'é que os arguidos têm o prazo de 30 dias para junto da Administração Fiscal regularizarem o pagamento a que alude a norma do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, comprovando-o, depois, nos autos, se estes já estiverem em fase judicial. Isto nada tem a ver com a entidade competente para determinar a notificação, que será a que, em cada caso, superintender no processo (autoridade fiscal, Ministério Público, juiz de instrução ou juiz de julgamento)' - acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 18 de Junho de 2007, processo 983/07 (no mesmo sentido vide, entre outros, os acórdãos do STJ, de 21 de Fevereiro de 2007, processo 06P4097, e deste Tribunal, de 11 de Julho de 2007 e de 24 de Outubro de 2007, processos n.os 0713147 e 0713235).

Assim, não tem fundamento a pretensão exposta pelo recorrente: a decisão recorrida não extravasou a competência da entidade que a proferiu, pois que se limitou a determinar a notificação dos arguidos nos exactos termos constantes da lei.

Portanto, a notificação efectuada pelo tribunal para os termos do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT apenas significa que o agente tem 30 dias para regularizar a sua situação tributária.

Recebida a notificação e caso pretenda pagar, o que o devedor terá que fazer é dirigir-se à autoridade administrativa credora, indagar junto desta sobre o montante global da dívida e proceder ao pagamento no prazo determinado na lei.

Naturalmente que não é o tribunal que vai fornecer aqueles elementos. Mas estes também não são fornecidos pela entidade administrativa através da notificação para os termos do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT. O montante da dívida integra, também, os juros de mora e o montante dos juros depende do dia em que a dívida for paga. Parece-nos, assim, que apenas aquando do pagamento é que o arguido terá conhecimento do montante exacto a pagar.

Pelo exposto, improcedem as conclusões 25.ª e 26.ª»

É contra este acórdão que, pelo arguido, vem interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), tendo por objecto a questão da inconstitucionalidade, por violação dos «princípios constitucionais da legalidade e da separação dos poderes, ofendendo, assim, os ditames constitucionais consagrados nos artigos 202.º e 219.º da Constituição da República Portuguesa», da interpretação do artigo 105.º do RGIT, na redacção dada pelo artigo 95.º da Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro, que teria sido aplicada no acórdão recorrido, «consubstanciada na substituição por parte do tribunal de 1.ª instância em relação às atribuições da Administração Fiscal e do Ministério Público».

Neste Tribunal, o recorrente apresentou alegações, formulando a final as seguintes conclusões:

«Foi o recorrente condenado, em 1.ª instância, pela prática de um crime continuado de abuso de confiança fiscal.

Por não se conformar com o teor da douta sentença proferida em 1.ª instância, recorreu o aqui também recorrente para o Tribunal da Relação do Porto, suscitando, em tal sede, a errada e inconstitucional interpretação do disposto no artigo 105.º do RGIT, interpretação essa que viola os princípios constitucionais de legalidade e da separação dos poderes, ofendendo, deste modo, os ditames constitucionais consagrados nos artigos 202.º e 219.º da CRP.

Não obstante a invocação de tal inconstitucionalidade, o que é certo é que manteve o douto Tribunal da Relação do Porto a condenação do recorrente, não obstante ter procedido a uma redução da pena de prisão aplicada.»

Ora, as razões invocadas em sede de recurso para o Tribunal da Relação mantêm-se, após a prolação do consequente acórdão.

Assim, havia sido o recorrente acusado da prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, punido então pelo artigo 24.º do RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção que lhe foi introduzida pelo Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro, e que posteriormente veio a ser punido nos termos do artigo 105.º do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho.

Os referidos regimes legais, e particularmente o invocado artigo 105.º do RGIT, foram objecto de alteração legislativa decorrente da entrada em vigor da Lei do Orçamento para o ano de 2007.

Assim, por força de tal diploma legal, o normativo em causa foi objecto de alteração através do aditamento de novas alíneas.

Concretamente, com a entrada em vigor da Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro, o n.º 4 do dito artigo 105.º do RGIT passou a ter a seguinte nova redacção:

«Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;

b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.»

Ora, quer na douta sentença proferida em 1.ª instância, quer no douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, foram incluídos factos e circunstâncias, não constantes da acusação, que vieram a resultar em decisões que ferem princípios constitucionais.

Na verdade, e mesmo que se entendesse que a alteração legislativa sub judice não configurou uma verdadeira despenalização, mas sim um aditamento de novas condições de punibilidade, o que é certo é que da acusação não constavam tais condições de punibilidade, ou, melhor dizendo, os factos que preenchiam tais condições de punibilidade.

No entanto, não tendo ocorrido qualquer alteração à douta acusação, o que é certo é que, na douta decisão de 1.ª instância, veio consignado que o arguido, embora notificado para tal, não veio liquidar o tributo, com acréscimos, e coima, no prazo de 30 dias consignados na nova lei.

Ora, a inclusão destas últimas circunstâncias na douta decisão, que, em síntese, traduzem os factos consubstanciadores das novas condições de punibilidade aditadas pela lei, viola desde logo os princípios da irretroactividade, da legalidade e da independência, vazados na nossa Lei Fundamental.

De facto, de acordo com os artigos 202.º, 203.º e 219.º, entre outros, da CRP, os tribunais exercem os seus poderes de forma independente, estando apenas sujeitos à lei.

No caso em apreço nos autos, não obstante ter entrado em vigor a nova lei, o que é certo é que não foi promovida qualquer alteração ou aditamento à acusação.

Por outro lado, nem a Administração Tributária, nem o Ministério Publico, promoveu a notificação do aqui recorrente para que, no âmbito da nova lei, e no cumprimento do prazo de 30 dias aí consignado, procedesse o mesmo à entrega dos valores tributários em apreço.

Contrariamente, tal notificação foi efectuada já após a audiência de julgamento, pelo Meritíssimo Juiz de Direito de 1.ª Instância, em notória violação dos princípios constitucionais da legalidade, da independência e da separação de poderes.

Deste modo, o tribunal de 1.ª instância, ao substituir-se ao Ministério Público e à Administração Fiscal, na notificação a que alude o n.º 4, alínea b), do artigo 105.º do RGIT, incorreu em interpretação inconstitucional deste último referido normativo, violando, assim, os princípios da legalidade e da separação de poderes, consignados no artigo 2.º da CRP, bem como o disposto nos já invocados artigos 202.º, 203.º e 219.º da referida Lei Fundamental.

Por outro lado, de acordo com o disposto nos artigos 262.º, 263.º, 264.º, 267.º e 283.º, todos do Código de Processo Penal, compete ao Ministério Publico, não só a realização e a condução do inquérito, como também a formulação da acusação, em caso de constatação da prática de ilícito criminal, passível do respectivo procedimento.

Por outro lado, compete ao tribunal julgar os factos constantes da acusação, com independência e imparcialidade.

Ora, ao ter incluído na douta sentença factos que não constavam da douta acusação, e que consubstanciavam as novas condições de punibilidade previstas na lei, e ao ter o julgador efectuado ele mesmo a notificação aludida pelo artigo 105.º, n.º 4, do RGIT, fez o mesmo inconstitucional interpretação dos preceitos constantes do Código de Processo Penal, atrás referido, violando assim o princípio da separação de poderes consagrado constitucionalmente.

Sem conceder, violou, quer a douta decisão de 1.ª instância, quer a douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, o princípio constitucional da proibição da retroactividade da lei penal.

Com efeito, a partir da entrada em vigor do artigo 105.º, n.º 4, do RGI, na sua nova redacção, a punibilidade de facto criminoso passou a depender, para além de terem decorrido mais de noventa dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação, de a prestação comunicada [à administração] tributária, através da correspondente declaração, não ser paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

Assim, o facto criminoso só é [punível], se verificadas essas duas condições.

Com efeito, nalguns tipos de crime, tal como o que está em causa nos presentes autos, impõe-se a verificação de outras circunstâncias além da culpa por uma actuação típica e ilícita, para que haja punibilidade, e, noutros casos, a concorrência de determinadas circunstâncias exclui essa mesma punibilidade.

Estes elementos adicionais ou excepcionais são incluídos em sede sistemática própria, que configura uma categoria de teoria geral do crime.

Nesta dita categoria inserem-se, pois, uma série de elementos ou pressupostos que o legislador por razões diversas exige, para fundamentar ou excluir a imposição de uma pena.

Consequentemente, ter-se-á de concluir que na categoria da punibilidade incluem-se, assim, os pressupostos adicionais que a fundamentam e os pressupostos que a excluem.

Em síntese, poder-se-á dizer, então, que as condições objectivas de punibilidade são circunstâncias que devem adicionar-se à acção ilícita para que se gere a punibilidade.

Ora, no caso em apreço nos autos, ou seja, no caso previsto actualmente no n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, a punibilidade da acção criminosa está subordinada à ocorrência de duas condições cumulativas.

Ora, se assim é, também estas duas condições como condições objectivas de punibilidade se encontram subordinadas ao princípio da legalidade, e ao princípio da proibição da retroactividade desfavorável ao agente, e como tal ao abrigo do princípio vazado no artigo 29.º da CRP.

No caso em apreço, com a alteração legislativa que se vem de invocar, é forçoso concluir-se que, a partir de 1 de Janeiro de 2007, a punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal reclama a verificação dos dois referidos pressupostos consignados na invocada lei.

Ora, como a notificação para pagamento em 30 dias não tinha ainda ocorrido aquando da prolação da douta acusação, a aplicação da lei nova, por imperativo constitucional, sempre terá como consequência a determinação da descriminalização da conduta ilícita que era imputada ao recorrente.

Por isso, e por se tratar, no caso sub judice, da aplicação do n.º 2 do artigo 2.º do Código Penal, proceder-se, nos presentes autos, à notificação do aqui recorrente para efectuar o pagamento dos tributos em causa não mais traduz do que uma aplicação retroactiva da lei, proibida pela lei constitucional.

E assim, pelos fundamentos expostos, enferma, quer a douta decisão proferida em 1.ª instância, quer o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, de errónea e inconstitucional interpretação do artigo 105.º, n.º 4, do RGIT, bem como dos preceitos penais e processuais atrás referidos, interpretação essa que viola princípios consagrados na Constituição da República Portuguesa, e concretamente os princípios da independência, da legalidade, da proibição de retroactividade da lei penal e da separação de poderes, impondo-se pois a sua revogação e reforma para os devidos e legais efeitos, baixando os autos ao tribunal recorrido para que este revogue a decisão, de acordo com o juízo inconstitucional que vier a ser proferido."

O representante do Ministério Público neste Tribunal contra-alegou, concluindo:

«1 - Não é inconstitucional a interpretação normativa do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias levada a cabo pela decisão recorrida, relativa à nova condição de punibilidade constante da alínea b) do n.º 4 do preceito, cuja redacção lhe foi introduzida pelo artigo 95.º da Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro.

2 - Termos em não deverá proceder o presente recurso.»

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

2 - Fundamentação:

2.1 - Na definição (inalterada) do n.º 1 do artigo 105.º do RGIT, comete o crime de abuso de confiança fiscal quem não entrega à Administração Tributária, total ou parcialmente, prestação tributária (com a extensão que a este conceito é dada nos subsequentes n.os 2 e 3) deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar. Na redacção originária do n.º 4 deste preceito, os factos descritos nos números anteriores só eram puníveis se tivessem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação. O artigo 95.º da Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2007), alterou a redacção desse n.º 4 do artigo 105.º da RGIT, convertendo a condição que constava do corpo desse número em alínea a), e inserindo uma nova alínea b), nos termos da qual os referidos factos também só seriam puníveis se «a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito».

A introdução desta nova «condição» suscitou divergências doutrinais e jurisprudenciais, tendo, na sequência destas últimas, sido interposto recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, que veio a ser decidido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008, de 9 de Abril de 2008 (Diário da República, 1.ª série, n.º 94, de 15 de Maio de 2008, p. 2672), que fixou a jurisprudência nos seguintes termos:

«A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT).»

Esse acórdão de uniformização de jurisprudência começa por assinalar que, na sequência da apontada alteração de redacção do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, surgiram fundamentalmente duas linhas de orientação relativamente à sua interpretação: para uns a inovação consistiu na criação de uma nova condição de punibilidade; para outros, ela acarretou uma despenalização. A primeira orientação - uniformemente adoptada, desde o início, pelo STJ - considera que à anterior condição de punibilidade, agora plasmada na alínea a), foi aditada, na alínea b), uma nova condição, mas com a manutenção do recorte do tipo legal de crime: não obstante a alteração do regime punitivo, o crime de abuso de confiança fiscal consuma-se com a omissão de entrega, no vencimento do prazo legal, da prestação tributária, nada tendo sido alterado em sede de tipicidade; porém, há que ressalvar a aplicabilidade do disposto no artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, uma vez que o regime actualmente em vigor é mais favorável para o agente, quer sob o prisma da extinção da punibilidade pelo pagamento, quer na óptica da punibilidade da conduta (como categoria que acresce à tipicidade, à ilicitude e à culpabilidade). Diversamente, a segunda orientação - defendida por aqueles para quem, no regime anteriormente vigente, o tipo de ilícito se reconduzia a uma mora qualificada no tempo (90 dias), sendo a mora simples punida como contra-ordenação, ilícito de menor gravidade - entende que o legislador aditou agora, com a referida alteração legal, uma circunstância que, por referir-se ao agente e não constituindo assim um aliud na punibilidade, se encontra no cerne da conduta proibida: existe algo de novo no recorte operativo do comportamento proibido violador do bem jurídico património fiscal e que se traduz precisamente no facto de a Administração Fiscal entrar em directo confronto com o eventual agente do crime, pelo que, enquanto anteriormente o legislador criminalizava uma mora qualificada relativamente a um objecto material do crime, o imposto, atendendo aos fins deste, agora pretendeu estabelecer como crime uma mora específica e num contexto relacional qualificado - concluindo, consequentemente, pela despenalização.

O citado acórdão uniformizador de jurisprudência consagrou aquela primeira linha de orientação, que, aliás, já fora a adoptada no acórdão ora recorrido. E em ambos se invoca o Relatório do Orçamento Geral de Estado para 2007, no qual o legislador justifica a introdução de distinção entre, por um lado, os casos em que a falta de entrega da prestação tributária está associada ao incumprimento da obrigação de apresentar a declaração de liquidação ou pagamento do imposto e, por outro lado, os casos de não entrega do imposto que foi tempestivamente declarado, entendendo o legislador que no primeiro grupo há uma maior gravidade decorrente da «intenção de ocultação dos factos tributários à Administração Fiscal», postura esta que já não se verificaria nas situações em que a «dívida» é participada à Administração Fiscal, isto é, nas situações em que há o reconhecimento da dívida tributária, ainda que não acompanhado do necessário pagamento. Estando em causa condutas diferentes, portadoras de distintos desvalores de acção e a projectar-se sobre o património do Fisco com assimétrica danosidade social, elas merecerão, de acordo com o citado Relatório, «ser valoradas criminalmente de forma diferente». E acrescenta-se: «neste sentido, não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em prazo a conceder, evitando-se a 'proliferação' de inquéritos por crime de abuso de confiança fiscal que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do Ministério Público na sequência do pagamento do imposto».

A consideração destes elementos teleológico e histórico conduziram a que no citado acórdão uniformizador de jurisprudência se concluísse que - perante uma vontade do legislador que, claramente, assume o propósito de manutenção do recorte do ilícito típico, mas o conjuga com a possibilidade de o agente, nos casos em que tenha havido declaração da prestação não acompanhada do pagamento, se eximir da punição pela efectivação do pagamento no novo prazo concedido - nem a letra nem o espírito da lei permitiam a afirmação de que a conduta, que se traduz numa omissão pura, se encontrava descriminalizada. A alteração legal produzida, repercutindo-se na punibilidade da omissão, é, todavia, algo que é exógeno ao tipo de ilícito, devendo ser qualificada como condição objectiva de punibilidade, que deve ser equacionada na medida em que configure um regime concretamente mais favorável para o agente. Constata, assim, o referido acórdão uniformizador de jurisprudência, que, tendo sido «intenção publicitada do legislador, expressa de forma inequívoca na letra da lei, o objectivo de conceder uma última possibilidade de o agente evitar a punição da sua conduta omissiva», «a nova lei é mais favorável para o agente pois que lhe proporciona a possibilidade de, por acto dependente exclusivamente da sua vontade, preencher uma condição que provoca o afastamento da punição por desnecessidade de aplicação de uma pena», pelo que «a conclusão da aplicação da lei nova é iniludível face ao artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal».

2.2 - Delineado o quadro de fundo de que emerge a problemática subjacente ao presente recurso, cumpre, antes de mais, precisar que resulta inequivocamente do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional que a única questão de inconstitucionalidade aí identificada como integrando o seu objecto se reporta à interpretação do artigo 105.º do RGIT, na redacção dada pelo artigo 95.º da Lei 53-A/2006, que teria sido aplicada no acórdão recorrido, «consubstanciada na substituição por parte do tribunal de 1.ª instância em relação às atribuições da Administração Fiscal e do Ministério Público» e que, segundo o recorrente, desrespeitaria os «princípios constitucionais da legalidade e da separação dos poderes, ofendendo, assim, os ditames constitucionais consagrados nos artigos 202.º e 219.º da Constituição da República Portuguesa».

Aliás, fora essa a única questão de inconstitucionalidade normativa adequadamente suscitada pelo recorrente na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação (cf. conclusão 26.ª, atrás transcrita).

Assim sendo, não podem integrar o objecto do presente recurso outras questões de inconstitucionalidade não arguidas perante o tribunal recorrido e nem sequer mencionadas no requerimento de interposição de recurso, que o recorrente veio suscitar, pela primeira vez, nas alegações apresentadas neste Tribunal, como, designadamente, a reportada à pretensa violação dos «princípios da proibição da retroactividade da lei penal, da legalidade e da independência», derivada da consideração, na sentença, de factos não constantes da acusação. Questão esta que, aliás, nos termos em que é colocada, carece de natureza normativa por se reportar directamente à referida decisão judicial, em si mesma considerada.

Constitui, assim, objecto do presente recurso, a questão da inconstitucionalidade, por violação dos princípios da legalidade e da separação de poderes, consagrados nos artigos 202.º e 219.º da CRP, da interpretação do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção dada pelo artigo 95.º da Lei 53-A/2006, no sentido de que pode o tribunal de julgamento determinar a notificação aí prevista.

Os invocados artigos 202.º e 219.º da CRP respeitam, respectivamente, à definição da função jurisdicional e das funções e estatuto do Ministério Público. O primeiro preceito define os tribunais como os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, incumbindo-lhes, nessa função, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados. O segundo comete ao Ministério Público a representação do Estado e a defesa dos interesses que a lei determinar, bem como a participação na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, o exercício da acção penal orientada pelo princípio da legalidade e a defesa da legalidade democrática.

O critério adoptado no acórdão recorrido de que competente para determinar a notificação prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT é a entidade titular do procedimento ou do processo (Administração, Ministério Público, tribunal de instrução criminal ou tribunal do julgamento), consoante a fase em que ele se encontre quando surge a necessidade de proceder a essa notificação, em nada colide com os preceitos constitucionais citados, nem mesmo com o princípio da separação de poderes, na perspectiva da constituição de uma reserva da Administração.

Quando o Ministério Público, na fase do inquérito, determina essa notificação, ele visa, não a prossecução da tarefa de cobrança de receitas típica da Administração Tributária, mas o apuramento, que lhe incumbe enquanto titular da acção penal, da verificação dos requisitos que o habilitem a tomar uma decisão de acusação ou de não acusação. Similarmente, quando o juiz de instrução ou o juiz do julgamento determina idêntica notificação, ambos se limitam a praticar um acto instrumental necessário à comprovação da existência, ou não, de uma condição de punibilidade, que determinará a opção entre pronúncia ou não pronúncia e entre condenação ou absolvição (ou arquivamento). Isto é: em todas essas hipóteses, a determinação da notificação pelo Ministério Público ou por magistrados judiciais insere-se perfeitamente dentro das atribuições constitucionais dessas magistraturas (exercício da acção penal e administração da justiça, respectivamente), sem qualquer invasão da reserva da Administração, nem, consequentemente, com violação do princípio da separação de poderes, invocado pelo recorrente (quanto à alegada violação do «princípio da legalidade», torna-se impossível proceder à sua apreciação, dada a absoluta falta de substanciação das razões por que o recorrente entende ocorrer tal violação, sendo, aliás, incerto o sentido que ele pretende atribuir a tal princípio, neste contexto).

Improcedem, assim, na totalidade, as alegações do recorrente.

3 - Decisão. - Em face do exposto, acordam em:

a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho, na redacção dada pelo artigo 95.º da Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro, interpretado no sentido de que pode o tribunal de julgamento determinar a notificação aí prevista; e, consequentemente,

b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.

Lisboa, 31 de Julho de 2008. - Mário José de Araújo Torres, relator - Benjamim Silva Rodrigues - João Cura Mariano - Joaquim de Sousa Ribeiro - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1705779.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1986-09-26 - Lei 43/86 - Assembleia da República

    Autorização legislativa em matéria de processo penal.

  • Tem documento Em vigor 1990-01-15 - Decreto-Lei 20-A/90 - Ministério das Finanças

    Aprova o regime jurídico das infracções fiscais não aduaneiras.

  • Tem documento Em vigor 1993-11-24 - Decreto-Lei 394/93 - Ministério das Finanças

    ALTERA O DECRETO LEI 20-A/90, DE 15 DE JANEIRO (APROVA O REGIME JURÍDICO DAS INFRACÇÕES FISCAIS NAO ADUANEIRAS - RJIFNA). PREVÊ A PENA DE PRISÃO A TÍTULO PRINCIPAL ATE 5 ANOS, DEIXANDO DE VIGORAR O SISTEMA DE MERA MULTA CRIMINAL. ESTABELECE A CRIMINALIZAÇÃO DA SONEGAÇÃO DOLOSA DE BENS OU VALORES AS NORMAS DO IMPOSTO SUCESSÓRIO, EM OPOSIÇÃO AO QUE PRÉVIA O DECRETO LEI 20-A/90, DE 15 DE JANEIRO. ALARGA A COMPETENCIA TERRITORIAL PARA O CONHECIMENTO DAS INFRACÇÕES E POSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO TRI (...)

  • Tem documento Em vigor 1998-02-26 - Lei 13-A/98 - Assembleia da República

    Altera a lei orgânica sobre a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 2001-06-05 - Lei 15/2001 - Assembleia da República

    Reforça as garantias do contribuinte e a simplificação processual, reformula a organização judiciária tributária e estabelece um novo Regime Geral para as Infracções Tributárias (RGIT), publicado em anexo. Republicados em anexo a Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98 de 17 de Dezembro, e o Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/99 de 26 de Outubro.

  • Tem documento Em vigor 2006-12-29 - Lei 53-A/2006 - Assembleia da República

    Aprova o Orçamento do Estado para 2007.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda