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Acórdão 603/2005/T, de 31 de Janeiro

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Texto do documento

Acórdão 603/2005/T. Const. - Processo 182/2005. - Acordam, na 3.ª Secção, do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Joaquim Ferreira Vaz da Silva, ora recorrente, foi acusado, pelo Ministério Público, da prática de um crime de emissão de cheque sem provisão - previsto e punido nos termos do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, com referência aos artigos 313.º e 314.º, alíneas a) e c), do Código Penal de 1982, na versão originária, a que correspondia uma pena de prisão de 1 a 10 anos -, o qual se teria consumado, segundo a acusação, em 28 de Fevereiro de 1994. Entretanto, por despacho de 30 de Outubro de 1995, a fl. 54, o arguido foi declarado contumaz.

2 - Por despacho de 7 de Dezembro de 2004, a fls. 137 e seguintes, foi indeferido o requerimento, apresentado pelo arguido, no sentido de ser declarado extinto, por prescrição, o procedimento criminal, afirmando-se, para o que agora releva, o seguinte:

"No caso em apreço, o arguido, no seu requerimento, sustenta que a declaração de contumácia, no Código Penal de 1982 que é a legislação aplicável, não integra uma causa de suspensão da prescrição.

Sucede, porém, que no Acórdão, de fixação de jurisprudência, n.º 10/2000, já supra-referido, reconheceu-se que a declaração de contumácia do arguido implica a suspensão do procedimento criminal no domínio de vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987.

Assim, decidiu-se neste acórdão, com pertinência para o que ora se decide, que "ao preceituar-se no n.º 1 do artigo 119.º 'para além dos casos especialmente previstos na lei' não se pode deixar de considerar abrangidos quer aqueles casos que de momento já se encontrem previstos em leis quer aqueles que, de futuro, venham a ser consagrados em diplomas legais. Na verdade, nada impede que, desde logo, se preveja a possibilidade de, em normas avulsas ou não, se venha a consagrar situações que determinem suspensão da prescrição do procedimento criminal. [...] Dizendo o artigo 336.º do Código de Processo Penal que a declaração de contumácia implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação do arguido, só poderá querer ter tido em vista aquela suspensão relacionada com a prescrição do procedimento criminal. O efeito visado coincide com o previsto no artigo 119.º, n.º 3: desde o momento de declaração da contumácia até àquele em que caduca - n.º 3 do artigo 336.º - a prescrição não corre".

Quer isto dizer que o facto de ser desconhecido à data da entrada em vigor do Código Penal de 1982 o instituto da contumácia, tal circunstância por si só não legitima a orientação de que o n.º 1 do artigo 119.º não se podia referir ao mesmo.

É esta, aliás, a solução mais consentânea com a interpretação do legislador, que no Código Penal de 1995 veio consagrar na alínea c) do n.º 1 do artigo 120.º que no caso de vigorar declaração de contumácia tal pressupõe a suspensão da prescrição em curso.

Pelo exposto, conclui-se que, no caso vertente, a declaração de contumácia do arguido (de fl. 54 a fl. 55) suspendeu a verificação da prescrição, pelo que, se indefere tal fundamento, invocado pelo arguido, como causa de extinção do procedimento criminal."

3 - Inconformado, veio o ora recorrente, afirmando renunciar "ao direito de interpor recurso ordinário", recorrer para o Tribunal Constitucional, "ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1, n.º 2 e n.º 4 do artigo 70.º da Lei 28782, de 15 de Novembro", para apreciação da inconstitucionalidade:

"Material das normas contidas nos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugadas com o n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal de 1982 (versão originária) na interpretação adoptada segundo a qual a declaração de contumácia constitui causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal, por violação dos princípios da legalidade e tipicidade consagrados nos n.os 1 e 3 do artigo 29.º da CRP e dos princípios do poder punitivo do Estado baseado em critérios objectivos e protecção dos arguidos contra abusos processuais, consagrados no n.º 4 do artigo 20.º, n.º 1 do artigo 27.º e n.º 1 do artigo 30.º da CRP;

Orgânica da norma contida no artigo 336.º (actualmente artigos 335.º e 337.º) do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei 78/87, de 17 de Fevereiro, no uso da autorização conferida pela Lei 43/86, de 26 de Setembro, por violação do n.º 2 do artigo 112.º e da alínea c) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 165.º da CRP."

4 - Notificado para o efeito, o recorrente apresentou as respectivas alegações, que concluiu da seguinte forma:

"1 - Os artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987 na redacção da Lei 59/98, de 25 de Agosto, e artigo 336.º na versão originária do mesmo diploma, conjugadas com o n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal de 1982 (versão originária), na interpretação que lhes é dada pelo tribunal recorrido, segundo a qual a declaração de contumácia constitui causa de suspensão do procedimento criminal, viola o disposto no n.º 4 do artigo 20.º, no n.º 1 do artigo 27.º, no n.º 1 do artigo 30.º, no n.º 2 do artigo 112.º e na alínea c) dos n.os 1 e 2 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa,

2 - E estão, por isso, feridos de inconstitucionalidade material e orgânica.

3 - O que deve ser declarado por este Tribunal Constitucional.

4 - Ao aplicar as normas deles constantes, o douto despacho do Tribunal Judicial da Comarca de Braga violou o disposto no artigo 204.º da lei fundamental."

5 - O Ministério Público, por seu turno, formulou as seguintes conclusões:

"1 - A causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal não foram definidas no Código Penal de 1982, de forma taxativa e fechada, admitindo-se a existência de outras especialmente previstas na lei.

2 - Entre estas, encontra-se a declaração de contumácia estabelecida inicialmente no artigo 336.º do Código de Processo Penal de 1987, implicando a suspensão dos termos ulteriores do processo e que viria a ser expressamente consagrada, a partir da reforma do Código Penal de 1995, no seu artigo 120.º, n.º 1, alínea c).

3 - A suspensão dos termos ulteriores do processo não comportando qualquer ambiguidade, abrange necessariamente a suspensão do prazo prescricional em curso, sob pena de deixar de ter sentido o regime de contumácia consagrado a partir de 1987 e sem que isso implique violação de normas ou princípios constitucionais.

4 - A existência legal de uma causa suspensiva do prazo de prescrição verificada em data posterior à prática do facto criminoso mas aplicada a processo pendente não merece a censura constitucional, mesmo na dimensão da exigência da não retroactividade in pejus.

5 - Atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, não é de conhecer a invocada inconstitucionalidade orgânica, uma vez que qualquer que fosse o sentido da decisão, nenhum efeito útil teria na decisão da questão de mérito relativa à prescrição do procedimento criminal, sendo que a declaração de contumácia ocorreu já na vigência da reforma de 1995, que a consagrou expressamente como causa suspensiva do prazo de prescrição, na alínea c) do n.º 1 do artigo 120.º do Código Penal.

6 - Termos em que não deverá proceder o presente recurso."

6 - Admitindo-se, porém, como plausível que o Tribunal Constitucional viesse a não tomar conhecimento do objecto do recurso, foi, pela relatora, proferido o seguinte despacho:

"1 - [...], afirmando renunciar 'ao direito de interpor recurso ordinário', veio recorrer para o Tribunal Constitucional, 'ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1, n.º 2 e n.º 4 do artigo 70.º da Lei 28 782, de 15 de Novembro', para apreciação da inconstitucionalidade:

'Material das normas contidas nos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugadas com o n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal de 1982 (versão originária) na interpretação adoptada segundo a qual a declaração de contumácia constitui causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal, por violação dos princípios da legalidade e tipicidade consagrados nos n.os 1 e 3 do artigo 29.º da CRP e dos princípios do poder punitivo do Estado baseado em critérios objectivos e protecção dos arguidos contra abusos processuais, consagrados no n.º 4 do artigo 20.º, n.º 1 do artigo 27.º e n.º 1 do artigo 30.º da CRP;

Orgânica da norma contida no artigo 336.º (actualmente artigos 335.º e 337.º) do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei 78/87, de 17 de Fevereiro, no uso da autorização conferida pela Lei 43/86, de 26 de Setembro, por violação do n.º 2 do artigo 112.º e da alínea c) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 165.º da CRP.'

2 - Como resulta da leitura do requerimento de interposição de recurso, das alegações apresentadas no Tribunal Constitucional e do requerimento a fl. 133, o recorrente refere inconstitucionalidade que invoca aos 'artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987 na redacção da Lei 59/98, de 25 de Agosto, e artigo 336.º na versão originária do mesmo diploma, conjugadas com o n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal de 1982 (versão originária)'.

É, porém, plausível que o Tribunal Constitucional apenas possa considerar objecto do presente recurso a questão de constitucionalidade que lhe é colocada enquanto se refere somente às normas dos artigos 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982 e do artigo 336.º, n.º 1, da versão originária do Código de Processo Penal de 1987, já que foram estes os preceitos aplicados na decisão recorrida (artigo 79.º-C da Lei 28/82).

3 - Para além disso, verifica-se que o recorrente suscita duas questões de inconstitucionalidade, relativamente às normas conjugadas do n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal de 1982, na versão originária, e do n.º 1 do artigo 336.º do Código de Processo Penal, também na versão originária do mesmo diploma, na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia constitui causa de suspensão do procedimento criminal.

Acusa as referidas normas, em primeiro lugar, de inconstitucionalidade material, por violação do disposto nos artigos 29.º, n.os 1 e 3 , e 20.º, n.º 4, 27.º, n.º 1, e 30.º, n.º 1, da Constituição; e, em segundo lugar, de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto nos artigos 112.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, da Constituição.

No primeiro caso, o que estaria em causa, segundo o recorrente, seriam os 'princípios da legalidade e da tipicidade na sua exigência de proibição de retroactividade in pejus' e 'dos princípios do poder punitivo do Estado baseado em critérios objectivos e protecção dos arguidos contra abusos processuais, consagrados no n.º 4 do artigo 20.º, n.º 1 do artigo 27.º e n.º 1 do artigo 30.º da lei fundamental'.

No segundo caso, o que o recorrente questiona é a circunstância de, ao interpretar-se, como alegadamente faz a decisão recorrida, o artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987, na versão originária, nos termos do qual a declaração de contumácia 'implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido', como implicando também a suspensão da prescrição, por se tratar de um dos 'casos especialmente previstos na lei' a que se refere o citado artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal, na versão originária, se estar a atribuir àquele artigo 336.º, n.º 1, 'uma dimensão normativa que não se encontra compreendida na Lei, de autorização legislativa, n.º 43/86, de 26 de Setembro'.

4 - Nos Acórdãos n.os 331/2003 (Diário da República, 2.ª série, de 17 de Outubro de 2003) e 336/2003, desta mesma 3.ª Secção, o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido de não poder conhecer de recursos cujo objecto era uma questão semelhante à que agora está em apreciação.

Recorrendo ao primeiro dos acórdãos, estava em causa o 'complexo normativo constituído pelos artigos 335.º e 337.º, estes da versão originária do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei 78/87, de 17 de Fevereiro, e 120.º, n.º 1, alínea d), este da versão originária do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei 400/82, na interpretação de harmonia com a qual a declaração de contumácia pode ser equiparada à marcação do dia para o julgamento em processo de ausentes'. Entendeu-se, então, não se tratar de uma questão normativa, susceptível de ser apreciada pelo Tribunal Constitucional.

Admite-se, nos mesmos termos, a hipótese de decidir não conhecer da questão da inconstitucionalidade material agora colocada.

7 - Finalmente, o recorrente aponta, ainda, a inconstitucionalidade orgânica da norma do n.º 1 do artigo 336.º do Código de Processo Penal. Tendo em conta os termos em que a questão é colocada pelo recorrente, considera-se plausível que venha a entender-se que se verifica a mesma dificuldade apontada para o conhecimento da inconstitucionalidade material.

8 - Nestes termos, convidam-se as partes a pronunciar-se sobre a eventualidade de se não conhecer do objecto do recurso, pelo menos parcialmente, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 704.º do Código de Processo Civil (aplicável por força do artigo 69.º da Lei 28/82)."

7 - O Ministério Público veio então reiterar o que afirmara nas contra-alegações, "no sentido do não conhecimento da invocada inconstitucionalidade orgânica e da não procedência do recurso relativamente à inconstitucionalidade material". Acrescentou, todavia, que "a seguir-se [...] um entendimento semelhante ao que foi obtido na jurisprudência citada do Tribunal Constitucional, admite-se como plausível o não conhecimento do objecto do recurso, nos termos que foram expostos".

8 - O recorrente, por seu turno, veio sustentar o conhecimento do recurso, objectando que "no caso em apreço não se pretende a verificação da concreta constitucionalidade da decisão judicial, mas sim a das normas jurídicas contidas nos artigos 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982 e do artigo 336.º, n.º 1, da versão originária do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação e com o sentido e alcance que o Tribunal 'a quo' lhes atribuiu".

9 - Tendo havido mudança de relator por vencimento, cumpre formular a decisão do Tribunal Constitucional.

II - Fundamentação. - 10 - Como resulta da leitura do requerimento de interposição de recurso, das alegações apresentadas no Tribunal Constitucional e do requerimento a fl. 133, o recorrente refere a inconstitucionalidade que invoca aos "artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987 na redacção da Lei 59/98, de 25 de Agosto, e artigo 336.º na versão originária do mesmo diploma, conjugadas com o n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal de 1982 (versão originária)". Acontece, porém, que decisão recorrida aplicou apenas as normas constantes dos artigos 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982 e 336.º, n.º 1, da versão originária do Código de Processo Penal de 1987.

Assim sendo, independentemente da questão de saber se deveria ou não ter sido aplicada a norma do artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, na redacção decorrente da reforma de 1995, como sustenta o Ministério Público, tendo em conta a data da declaração de contumácia, o facto é que, tendo a decisão recorrida indeferido o requerimento de extinção do procedimento criminal, por prescrição, à luz do disposto no artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, na versão originária, o Tribunal Constitucional apenas pode considerar objecto do presente recurso as questões de constitucionalidade que lhe são colocadas enquanto se referem somente às normas dos artigos 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982 e 336.º, n.º 1, da versão originária do Código de Processo Penal de 1987.

11 - Admitido o recurso, definido o seu objecto e não obstante ter sido determinada a produção de alegações, cumpre, porém, antes de mais, na sequência do parecer emitido pela relatora inicial e das respostas do recorrente e do Ministério Público, decidir se dele se pode conhecer.

O recorrente suscita duas questões de inconstitucionalidade, relativamente às normas supracitadas, na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia constitui causa de suspensão do procedimento criminal. Acusa as referidas normas, em primeiro lugar, de inconstitucionalidade material, por violação dos "princípios da legalidade e da tipicidade na sua exigência de proibição de retroactividade in pejus" e "dos princípios do poder punitivo do Estado baseado em critérios objectivos e protecção dos arguidos contra abusos processuais", consagrados nos artigos 29.º, n.os 1 e 3 , e 20.º, n.º 4, 27.º, n.º 1, e 30.º, n.º 1, da Constituição, e, em segundo lugar, de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto nos artigos 112.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, da Constituição, questionando a circunstância, de ao interpretar-se, como alegadamente o faz a decisão recorrida, o citado artigo 336.º, n.º 1, nos termos do qual a declaração de contumácia "implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido", como implicando também a suspensão da prescrição, por se tratar de um dos "casos especialmente previstos na lei" a que se refere o citado artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal, na versão originária, se estar a atribuir àquele artigo 336.º, n.º 1, "uma dimensão normativa que não se encontra compreendida na Lei, de autorização legislativa, n.º 43/86, de 26 de Setembro".

Vejamos.

11.1 - Questão semelhante à que agora está em análise, no que se refere à inconstitucionalidade material, foi apreciada nos Acórdãos n.os 331/2003 (Diário da República, 2.ª série, de 17 de Outubro de 2003) e 336/2003 (disponível na página na Internet do Tribunal, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos), desta mesma 3.ª Secção, nos quais o Tribunal Constitucional se pronunciou no sentido de não poder conhecer de recursos. Fundamentou-se assim, neste último, a decisão:

"[Parecer do relator]:

"[...]

2 - Na verdade, entende-se que não é questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de ser apreciada pelo Tribunal Constitucional, a que se refere à forma ou ao modo como o direito ordinário é interpretado, isto é, a um processo interpretativo que, por não ter respeitado os limites da interpretação da lei criminal ou fiscal, decorrentes do princípio da legalidade, constante dos n.os 1 e 3 do artigo 29.º da Constituição, conduz a uma aplicação analógica ou extensiva de determinados preceitos, ultrapassando o campo semântico dos conceitos jurídicos empregues pelo legislador. Esse entendimento teve expressão no Acórdão 674/99 (publicado na 2.ª série do Diário da República de 25 de Fevereiro de 2000) e em jurisprudência maioritária posteriormente reafirmada, que aqui se acolhe integralmente, por manter inteira validade.

Escreveu-se, a este propósito, no referido acórdão:

'[...]

Com efeito, o recorrente não questiona que o conteúdo da norma, com a interpretação adoptada, seja compatível com o texto constitucional - nomeadamente, não questiona que a norma em causa pudesse proceder, por opção expressa do legislador, à referida incriminação quando ocorresse apenas reserva mental de incumprimento. O que vem questionado pelo recorrente nos presentes autos é tão-só que o julgador possa alcançar esse mesmo conteúdo normativo através de um processo interpretativo, já que, ao fazê-lo através de uma forma desrespeitadora dos limites fixados à interpretação da lei criminal, viola necessariamente o princípio da legalidade penal. Ou seja, não se questiona que o comportamento do recorrente possa ser objecto de uma incriminação, apenas se questiona se ele preenche efectivamente o tipo legal do crime de burla.

Conclui-se, assim, inequivocamente, que o que vem impugnado pelo recorrente não é a norma, em si mesma considerada, mas antes, a decisão judicial que a aplicou, por via de um processo interpretativo constitucionalmente proibido.

Ora, tal questão - por não respeitar a uma inconstitucionalidade normativa, mas antes a uma inconstitucionalidade da própria decisão judicial - excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, uma vez que, entre nós, não se encontra consagrado o denominado recurso de amparo, designadamente na modalidade do amparo contra decisões jurisdicionais directamente violadoras da Constituição.

De todo o modo, mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma operação equivalente, designadamente a uma interpretação baseada em raciocínios analógicos (cf. declaração de voto do conselheiro Sousa e Brito ao citado Acórdão 634/94, bem como o já mencionado Acórdão 205/99), o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade.

Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal). E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um ínvio caminho, teria de se confrontar com a necessidade de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se dedicam os tribunais - designadamente os tribunais supremos de cada uma das respectivas ordens -, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu sentido natural (e qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica.

Ora, um tal entendimento - alargando de tal forma o âmbito de competência do Tribunal Constitucional - deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na lei fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade normativa.

[...]'

3 - Esta jurisprudência foi produzida no âmbito de um recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade fundamentado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, em que a decisão recorrida aplicou uma 'norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'. Ela é, todavia, inteiramente transponível para o caso dos autos, em que, ao invés, nos encontrarmos face a uma situação de 'recus[a] de aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade' e, consequentemente, no âmbito de um recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade fundamentado na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da mesma lei. Na verdade, não deixaria de constituir uma situação anómala se o Tribunal considerasse que uma determinada questão não é de inconstitucionalidade normativa, susceptível de ser apreciada pelo Tribunal Constitucional, se suscitada no âmbito de um recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade fundado na referida alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, mas já assim não entendesse se da alínea a) se tratasse.

Ora, na verdade e em rigor, o que a decisão recorrida considerou violador da Constituição foi o facto de uma determinada interpretação das normas constantes dos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal (versão de 1987), conjugadas com a da alínea d) do n.º 1 do artigo 120.º do Código Penal (versão de 1982), já tentada nos tribunais, ter sido obtida através de um processo interpretativo 'extensivo' ou 'analógico', do qual resultou, a final, um entendimento que extravasa o campo semântico dos conceitos utilizados pelo legislador, o que conflituaria com o princípio da legalidade consagrado nos n.os 1 e 3 do artigo 29.º da Constituição. A ser assim, verifica-se que, na decisão recorrida, o que é confrontado com a Constituição não é o resultado normativo obtido, mas sim o referido processo interpretativo, que terá conduzido alguns tribunais àquela interpretação. Mas então haverá que concluir que, também neste caso, não estaremos perante uma questão de inconstitucionalidade normativa."

[...]

Essencialmente, e como resulta do parecer do relator, a decisão em crise considerou ofensiva da lei fundamental determinada interpretação das normas ínsitas nos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal (versão citada naquele mesmo despacho), em conjugação com o artigo 120.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei 400/82 (interpretação essa que teria sido tentada por alguns tribunais), já que a mesma teria sido alcançada por meio de um processo que conduziria a uma aplicação 'extensiva', 'analógica' ou 'actualista' que, por força do princípio da legalidade penal, ultrapassava o campo semântico dos conceitos que o legislador utilizou ao redigir aqueles preceitos.

Mas, se isto é assim, então há que concluir que é o próprio processo interpretativo que porventura teria sido levado a efeito pelas decisões dos tribunais que 'tentaram' a dita interpretação que é o questionado pelo despacho ora recorrido. E, neste contexto, nenhuma diferença se depara relativamente aos casos em que este Tribunal (embora não unanimemente) tem considerado como não podendo constituir uma questão de inconstitucionalidade normativa sobre a qual possam recair os seus poderes cognitivos e que têm tradução no já citado Acórdão 674/99. É que, como se reafirma, não cabe no âmbito do controlo normativo cometido ao Tribunal Constitucional a verificação da ocorrência de uma alegada interpretação, seja ela 'criativa' ou 'extensiva', de uma norma penal, em invocada colisão com os princípios da legalidade e da tipicidade."

Esta jurisprudência é integralmente transponível para os presentes autos, pelo que, reiterando-a, haverá que concluir pela impossibilidade de conhecimento do recurso, a isso não obstando o facto de o recorrente alegar ainda, sem que, todavia, fundamente minimamente tal alegação, a violação dos "princípios do poder punitivo do Estado baseado em critérios objectivos e protecção dos arguidos contra abusos processuais, consagrados no n.º 4 do artigo 20.º, n.º 1 do artigo 27.º e n.º 1 do artigo 30.º da CRP", limitando-se apenas a acrescentá-la à acusação de violação dos princípios da legalidade e da tipicidade.

11.2 - O recorrente invoca, ainda, a inconstitucionalidade orgânica da norma do n.º 1 do artigo 336.º do Código de Processo Penal por considerar que, ao fazer-se a interpretação constante da decisão recorrida, se está a atribuir àquele artigo 336.º, n.º 1, "uma dimensão normativa que não se encontra compreendida na Lei, de autorização legislativa, n.º 43/86, de 26 de Setembro". Constata-se, porém, que se verificam aqui, rigorosamente, pelo menos, as mesmas dificuldades que foram apontadas para fundamentar a impossibilidade de conhecimento da questão da inconstitucionalidade material, o que, tendo em conta os termos em que a questão é colocada pelo recorrente, implica também o não conhecimento da questão da inconstitucionalidade orgânica.

12 - Assim sendo, não pode efectivamente o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do recurso, por se entender que as questões colocadas perante este Tribunal não são questões de constitucionalidade normativa, não cabendo nos poderes de cognição do mesmo.

III - Decisão. - Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 10 unidades de conta.

Lisboa, 2 de Novembro de 2005. - Gil Galvão - Bravo Serra - Maria dos Prazeres Beleza (vencida em parte, nos termos de declaração junta) - Vítor Gomes (vencido em parte, nos termos da declaração junta) - Artur Maurício.

Declaração de voto. - Como primitiva relatora, pronunciei-me no sentido do conhecimento da inconstitucionalidade material e no sentido da inconstitucionalidade, por entender que a interpretação adoptada na decisão recorrida excede o sentido possível das "palavras da lei" - no caso, no n.º 1 do artigo 336.º do Código de Processo Penal (versão relevante). Ler na expressão "implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido" a consagração de um caso de suspensão da prescrição do procedimento criminal ultrapassa o sentido possível da letra da lei, interpretada com as limitações próprias da lei penal "incriminadora".

Julgaria, pois, inconstitucional a norma do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987, na redacção originária, conjugada com a norma do artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, também na sua versão originária, quando interpretada no sentido de a declaração de contumácia constituir causa de suspensão de prescrição do procedimento criminal, por violação do princípio da legalidade penal (n.º 1 do artigo 29.º da Constituição). - Maria dos Prazeres Beleza.

Declaração de voto. - Votei, em divergência com o entendimento que fez vencimento, que o Tribunal deveria conhecer do objecto do recurso no que respeita à alegada inconstitucionalidade orgânica, por não considerar que procedam as mesmas razões que foram apontadas para não tomar conhecimento da questão da inconstitucionalidade material (o Ministério Público opôs a tal conhecimento razões de outra natureza, que foram afastadas no n.º 10 do acórdão, que acompanho).

Determinado o sentido com que a norma foi aplicada no caso concreto, é o sentido normativo assim adquirido que cumpre confrontar com a autorização legislativa para saber se o legislador autorizado poderia editá-la com tal conteúdo. A circunstância de o Tribunal não poder sindicar, por desrespeito aos limites constitucionais de interpretação da lei penal, o processo interpretativo mediante o qual o tribunal da causa alcançou esse sentido normativo é irrelevante para as operações que lhe cumpre efectuar na averiguação da inconstitucionalidade orgânica. Esse conteúdo passa, então, a apresentar-se ao Tribunal como um dado indiscutível do direito ordinário; constitui, para efeitos do presente processo, a norma imputável ao legislador autorizado, não colocando o seu confronto com a lei de autorização legislativa, no que respeita à submissão ao valor paramétrico dessa lei, problemas distintos daqueles que se deparariam se aqueloutra questão não tivesse sido debatida. - Vítor Gomes.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1465211.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-09-23 - Decreto-Lei 400/82 - Ministério da Justiça

    Aprova o Código Penal.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1986-09-26 - Lei 43/86 - Assembleia da República

    Autorização legislativa em matéria de processo penal.

  • Tem documento Em vigor 1987-02-17 - Decreto-Lei 78/87 - Ministério da Justiça

    Aprova o Código de Processo Penal.

  • Tem documento Em vigor 1991-12-28 - Decreto-Lei 454/91 - Ministério da Justiça

    Estabelece normas relativas ao uso do cheque e fixa o regime penal e contra-ordenacional do cheque.

  • Tem documento Em vigor 1998-08-25 - Lei 59/98 - Assembleia da República

    Altera o Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro, na redacção introduzida pelos Decretos-Leis 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho e 317/95, de 28 de Novembro. Republicado na integra, o referido código, com as alterações resultantes deste diploma.

Aviso

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